Num dos mais conhecidos de seus ensaios (Dos
Canibais), Michel de Montaigne (1533-1592) nos chama a atenção para juízos
precipitados e hipócritas que fazemos do comportamento alheio, a partir do
horror que o canibalismo dos índios brasileiros provocava nos franceses
antárticos que aqui tentaram fincar raízes. Numa Europa inquisidora e brutal, o filósofo francês, rejeitando
a perspectiva comparativa que coloca o "outro" desconhecido como
estranho e o "eu" como referência superior de valor e comportamento, reconhecia a necessidade de uma crítica desta prática que
considerava "cruel"; mas que isso não cegasse aquele que a condena para seus
próprios defeitos. Afirmou ele:
“não me parece excessivo julgar bárbaros
tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à
cegueira acerca dos nossos. (...) Estimo que é mais bárbaro queimar um homem
vivo em nome da fé, como ocorre entre nossos conterrâneos, do que o comer
depois de morto. E é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o
queimar aos poucos, ou o s entregar a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé.
(...) E isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem
previamente executado. (...) Podemos, portanto, qualificar esses povos como
bárbaros em dando ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós
mesmos que os excedemos em toda sorte de barbaridades.”
Observando a reação das pessoas frente à
identificação como racista de uma torcedora do Grêmio no conhecido episódio do crime de injúria racial praticado contra o
goleiro Aranha, do Santos, não deixo de pensar que acontece algo parecido (guardadas as devidas proporções de tempo e contexto): um verdadeiro "linchamento moral" e a destruição da vida da jovem Patrícia
Moreira por parte de muitas pessoas, ajudadas pela péssima cobertura realizada pela grande imprensa. Ela já foi julgada, condenada e está sendo paulatinamente executada. E aqueles que o fazem, se sentem superiores, corretos, sem enxergar a atrocidade ainda pior que cometem.
É fato que, independentemente de opiniões subjetivas, todos os indícios de registros (imagens, testemunhas etc.) parecem evidenciar que a jovem Patrícia tenha, realmente, cometido um ato racista (injúria racial, prevista na lei Lei nº 7.716/1989 - conhecida como lei Caó) e deva ser julgada e, se for comprovado, condenada e punida. O próprio Grêmio, inclusive, numa atitude inédita e histórica no Brasil, já o foi em primeira instância pelo TSJD, tendo recebido uma pena com um peso simbólico importante: foi expulso da Copa do Brasil. E, de quebra, a sociedade voltou a discutir seriamente um fenômeno tão neglicenciado no Brasil, como se ele fosse de importância menor ou, pior, não ocorresse.
É fato que, independentemente de opiniões subjetivas, todos os indícios de registros (imagens, testemunhas etc.) parecem evidenciar que a jovem Patrícia tenha, realmente, cometido um ato racista (injúria racial, prevista na lei Lei nº 7.716/1989 - conhecida como lei Caó) e deva ser julgada e, se for comprovado, condenada e punida. O próprio Grêmio, inclusive, numa atitude inédita e histórica no Brasil, já o foi em primeira instância pelo TSJD, tendo recebido uma pena com um peso simbólico importante: foi expulso da Copa do Brasil. E, de quebra, a sociedade voltou a discutir seriamente um fenômeno tão neglicenciado no Brasil, como se ele fosse de importância menor ou, pior, não ocorresse.
Entretanto, este diagnóstico, abre portas para um outro problema maior. Independentemente da sua culpa e responsabilidade sobre a atitude racista (e
irresponsável) cometida no episódio - e, reiterando, que cabe à Justiça julgar -, é importante refletir como todos (a mídia e a
sociedade em geral) vem cumprindo e executando uma sentença imaginária, negligenciando a própria noção de Direito, Ética e correção, e caindo na mais absoluta barbárie.
Não é preciso ir muito longe para
encontrar exemplos recentes deste tipo de comportamento condenável. Variações sobre o tema
da justiça feita com as próprias mãos sob forma de linchamento que temos visto
na sociedade brasileira nos últimos tempos. Desses, talvez caso
mais forte e emblemático tenha sido o da dona de casa Fabiane de Jesus, no
Guarujá (SP), morta no início de 2014, em um linchamento promovido por uma turba ensandecida que
a havia identificado como uma aliciadora de crianças para práticas de magia
negra. Um espetáculo de horror, que traduz da forma mais cruel possível a
sandice de uma sociedade que, ao clamar por justiça diante de um ato concretamente ofensivo, comete atrocidades ainda maiores do que aquelas que alegadamente pretendem condenar em seus gritos.
À parte o fato de que a sra. Fabiane de Jesus morreu fisicamente (de forma brutal), vejo muito paralelo com a morte social a que está sendo submetida a jovem Patrícia (e talvez com a mesma crueldade, pois a ela não está sendo dada, por parte da opinião pública e da imprensa, direito de defesa). Este caso nos faz pensar em várias questões envolvendo as noções de Direito, Justiça, Violência e como, apesar de todos os avanços promovidos pela sociedade em vários campos da chamada "civilização", insistimos em retomar este comportamento de barbárie.
Sobre o caso da jovem Patrícia, penso, inclusive, que deveria ser feita uma boa reflexão (aí com base no histórico de vida desta jovem) se de fato ela é racista ou praticou um ato racista. Será que estamos avaliando se esta atitude é realmente uma atitude isolada ou faz parte de algo muito mais denso e supostamente perigoso? Realmente acreditamos que uma única atitude deve rotular a pessoa para o resto da vida? Estamos julgando o ato ou a pessoa? Em assim sendo, qual a função supostamente "redentora" das penalidades aplicadas pela Justiça? Vejo uma enorme diferença entre as duas coisas e, salvo engano, a nossa tradição jurídica também. Uma coisa é um ato racista praticado por uma pessoa com um histórico de envolvimento em práticas deste tipo; outra, bem distinta, é o ato isolado, num contexto fértil para estas atitudes mas que acabam sendo feitas no impulso do momento.
Não que isso atenue o peso do ato praticado por ela e a relevância do fato. Sou totalmente contra práticas racistas. Trabalho com este tema em sala de aula e procuro refletir as consequências (inclusive jurídicas com meus alunos). Acredito firmemente na necessidade de que atos como os praticados pela jovem Patrícia sejam punidos com rigor para que não se repitam. A sociedade precisa aprender (mesmo que seja pela força da lei) a civilidade do respeito pela dignidade alheia. Entretanto, parece-me óbvio que, numa sociedade democrática isso deveria acontecer pelas vias e processos normais do Estado. Agir da forma violenta (pelos relatos não se trata apenas de violência simbólica, mas física e moral) como se está fazendo, torna aqueles que praticam tais atos tão (ou até mais) criminosas do que o suposto crime que tentam combater. Isso cria um círculo vicioso que precisa ser interrompido.
Não se trata de absolver a jovem Patrícia. Antes, como diz Montaigne, não somente não a condenar previamente mas, com essa atitude, não enxergar as próprias atrocidades. Como este linchamento moral que ora ocorre. Eu ainda acredito na racionalidade de uma sociedade baseada na Justiça e no Direito. E que a pena seja proporcional ao contexto do delito praticado.
Racismo é crime. Linchamento é um crime ainda mais grave.
Resgatando o Montaigne do mesmo ensaio:
“Isso mostra a que ponto devemos desconfiar da opinião pública. Nossa razão e não o que dizem, deve influir em nosso julgamento.”
Excerto ótimo pra coroar seu artigo pra lá de pertinente.
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