domingo, 28 de junho de 2009

Sobre a história de Christian, o leão

Pensando na história de Anthony Bourke e John Rendall.(1)



Em um dia de viagem, quando se está esperando no aeroporto, nada melhor do que entrar numa livraria e 'sapear' o que existe de bacana. Pena que a qualidade das livrarias nos aeroportos brasileiros seja algo bastante discutível. Mas, às vezes, algumas surpresas nos são reveladas. Hoje foi um desses dias. Estava em Cumbica, naquelas esperas inevitáveis (felizmente, tudo deu absolutamente certo, mas eu gosto de chegar bem cedo para prevenir eventuais problemas), quando resolvi dar uma olhada na livraria local. Estava a fim de uma leitura leve, mas que não fosse essas tradicionais bobagens com que nos bombardeiam constantemente. Em meio aos best sellers, autoajudas e tantas outras superficialidades, bati o olho em Dewey, um gato entre livros. Muitos amigos já haviam comentado sobre a boa leitura que seria este livro e eu mesmo havia lido uma matéria no Estadão sobre ele. Peguei-o, folhei-o e quando já estava me virando para me dirigir ao caixa, meu olho bateu rapidamente num outro livro, uma prateleira abaixo, que me chamou a atenção: a fotografia de um filhote de leão, com uma carinha pra lá de meiga, com as patonas em cima de um aparelho de TV (um aparelho com cara de anos 60, certamente). Não tive dúvidas. Era ele mesmo: o leãozinho dos vídeos do Youtube, Christian. Peguei o livro e, logo na capa, já havia esta referência ao vídeo que só vim a conhecer no meio do semestre por indicação de alunos numa aula que estava dando sobre a questão da Cultura e do Instinto. Ao folhear Um leão chamado Christian, fiquei encantado com as fotos e acabei comprando o livro. A princípio, mais motivado por elas do que propriamente pela certeza de que seria um texto de boa qualidade (claro, levando em conta que você é um neófito em "felinofilia"). Mas também quis conhecer melhor a história, escrita pelos próprios protagonistas, para além de todas as fantasias veiculadas desde que o vídeo se tornou popular, há menos de dois anos.

Logo nas primeiras páginas, percebi que estava diante de uma história, no mínimo, curiosa e que, pelo menos para mim, só de se reportar a um animal (e a um felino, em especial), me deu vontade de entrar mais ainda.

À medida em que ia avançando a leitura, outro tema me chamou a atenção: o quanto a internet tem sido um poderoso instrumento no resgate de certos fatos prosaicos que seguramente se perderiam no tempo. Porém, dada a sua difusão (geralmente por algum anônimo) na rede, acaba encontrando simpatia de muitos e, prontamente, uma legião de admiradores (os números são realmente impressionantes) acabam tendo acesso a ele. Numa sociedade da comunicação como consumo, certamente este é um parâmetro que não dá para negligenciar.

Um bom exemplo é o que ocorreu com o vídeo que projetou mundialmente a anônima interiorirana Susan Boyle(2) num rastro de mais de 100 milhões de expectadores que acessaram as muitas versões de sua apresentação no show de calouros Britain´s got talent. Aparecendo pela primeira vez em público, aos 47 anos de idade, a senhora que confessa nunca ter beijado alguém, vivendo com um gato (olhem os felinos aí) e querendo ser Elaine Paige explode em popularidade graças não somente ao poder de sua voz, mas à própria edição muito bem feita de sua exibição no programa.

Com o fenômeno Christian não foi diferente. Um dos pontos que mais me impressionou foi saber que os dois autores (Anthony e John) nem sequer sabiam da postagem do vídeo no site.

Foi uma leitura agradável. Principalmente pela segunda parte do livro, que narra o retorno de Christian ao Quênia e os personagens envolvidos. Uma lição de vida muito interessante. Muitos ainda acham que a preocupação e o investimento na preservação de espécies animais é um assunto de segundo plano por conta da grande miséria em que 1/3 da humanidade ainda se encontra. Claro que isso é um sofisma. Os dois temas não só não são excludentes como fazem parte de uma mesma e única questão (e contradição): a de que para satisfazer nossos desejos, sacrificamos o outro (seja este outro o planeta ou o próprio semelhante).

Histórias como essas de Christian, Anthony e John falam, de forma simples porém direta, sobre isso.

É uma boa leitura.



Algumas indicações na internet:

1) Para saber mais sobre a história de Christian como sempre, um artigo na velha e boa Wiki.

2) Sobre George Adamson, vale a pena ver este artigo e este outro sobre a história de "Elsa, a Leoa".

3) Um belo material também está disponível no site do canal
Animal Planet
.


4) Uma das versôes da história de Christian pode ser vista neste vídeo no Youtube mencionado pelos autores no livro. Nela, uma sequência da história é perpassada por uma interpretação de Whitney Huston de "We´ll always love you".

5) Há uma interessnte matéria na ABC News.

6) Anthony e John 35 anos depois e também neste outro vídeo


Notas:

(1) Bourke, Anthony e Rendall, John. Um leão chamado Christian. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2009.

(2) A popularidade da história de Susan Boyle pode ser atestada, entre outras coisas, pelo volume de informações e análises sobre o fenômeno que podem ser encontrdas na internet. Como referência, o verbete da Wikipedia pode ser um bom começo para se trilhar o rol de informações ali contidado e que dali deriva.

sábado, 20 de junho de 2009

Case: A verdade sobre a beleza – um relatório global.


Este case foi publicado, com aprovação da Unilever, originalmente na Revista da ESPM e está disponível no portal
da Central de Cases da ESPM.

Introdução[1]
Em 2005, Dove, importante marca da Unilever ligada a produtos de higiene e beleza, veicula no Brasil uma interessante campanha publicitária. Mulheres sorridentes, escancarando sua felicidade e bem-estar com a vida por meio de brincadeiras e gestos livres, exibindo seus corpos numa praia ensolarada, para o deleite daqueles que as queiram admirar, ao som do ritmo alegre e contagiante embaladas por Fernanda Abreu. Um convite mesmo ao prazer, à diversão, à alegria. Conduzida pelo lema “O sol nasceu para todas”, a trilha sonora convida-as para um “verão sem vergonha”, curtindo-se, amando-se, sendo feliz na sua autenticidade.

Pela descrição feita, pode-se pensar, à primeira vista, que se tratava de mais uma peça publicitária convencional, se não fosse por um aspecto bastante inusitado: as mulheres que protagonizavam a cena descrita não se encaixavam, nem de longe, no estereótipo tradicional das modelos usualmente presentes neste tipo de campanha. De estaturas diversas, algumas baixinhas, outras gordinhas, cabelos de diversas texturas, pele exibindo marcas do tempo e mesmo fora dos padrões de perfeição estética, ou ainda com sardas, algumas com seios pequenos ou até mesmo volumosos... enfim, mulheres diversas, variadas, desiguais e, nem por isso, sem deixar de ser belas. Uma ode à diversidade humana. Absolutamente felizes, saudáveis e fazendo questão de exibir publicamente essa felicidade.

Esta campanha, braço de uma estratégia mundial da Unilever intitulada Campanha pela Real Beleza, trabalha, em cada contexto sócio-cultural, alguns produtos diferentes. No caso do Brasil, o foco mais acentuado recai sobre a linha Dove Verão, uma vez que esta é a estação em que as mulheres mais temem exibir seus corpos, quase sempre fora dos padrões preconizados pela mídia e cobrados pelas convenções sociais. Ousada, inusitada e ao mesmo tempo sensível aos anseios e desejos da mulher moderna, a campanha representou um marco na qualidade da veiculação publicitária. De uma certa forma, revela um importante sintoma que há algum tempo vem crescendo no cenário empresarial e publicitário: a certeza de que ao vender um produto ligando-o ao conceito (e atitude) de respeito e valorização do bem-estar e da vida de seu consumidor, a empresa passará a assumir, por meio de sua marca, uma presença muito mais eficaz na vida das pessoas. Brincando com as palavras, cumpriria efetivamente o seu papel de marcar presença. Valorizá-las como elas são, e não apenas a partir de imagens padronizadas por uma estética imaginária e inatingível, é valorizar suas vidas e valorizá-las integralmente como pessoas. E nisso, a campanha é extremamente bem sucedida.

O significado da estética corporal na modernidade.
Vivemos uma civilização do culto ao corpo como valor imponente de sociabilidade. Em dois trabalhos recentes publicados no Brasil, especialistas em Antropologia (Goldenberg 2002) e em análise de imagens na publicidade (Hoff 2005) investigam as repercussões desse valor na criação de alguns mitos contemporâneos relativos ao corpo, em especial no ambiente da mídia. Entre eles, o fato de que alguns padrões estéticos precisariam ser atingidos pelos indivíduos sob pena da não realização social plena. Encarcerada nesta concepção, a própria idéia de beleza física passa a se constituir como um fragmento de um todo mais complexo que é a existência humana tornando metonimicamente esta parte (o aspecto físico do belo) pelo todo (a vida, o bem-estar, a sua realização profissional e pessoal, a segurança etc.). Desta maneira, a existência física é que condicionaria as demais formas de existência (moral, profissional, espiritual...). E o que é mais curioso: cada vez mais, ser belo efetivamente parece importar menos do que parecer belo. Além disso, como se trata de uma sociedade de consumo, em que o valor da posse (ter) é a medida principal para o valor da existência (ser), ter um corpo belo passa a ser uma exigência imperativa desta realização social.

Se isto é uma verdade para a sociedade metropolitana em geral, a questão da beleza física assume proporções bem mais acentuadas com relação ao universo feminino, já que este, pelas próprias convenções sociais vigentes na atualidade, é o público mais suscetível a essas pressões. Um truísmo muito presente hoje é a constatação de que a beleza veiculada pela mídia não é nem natural, nem alcançável. Mulheres sempre magras, silhuetas e rostos tão precisamente simétricos como que traçados pelas hábeis mãos do mais talentoso artista plástico, expressando uma elegância próxima à perfeição platônica. Além disso, esta imagem de beleza “artificial” – porque construída por técnicas estéticas e cosméticas, sem mencionar as alimentares (de salubridade duvidosa) – está quase sempre associada a ideais de qualidade de vida, bem-estar, sucesso e, por fim, à felicidade última. Tudo se passa como se, ao atingir tal beleza, poder-se-ia atingir a plenitude da felicidade. Ou, o que muitas vezes é pior: para se atingir a felicidade plena, é preciso atingir tal perfeição estética. Como resultado da difusão generalizada em escala global desses valores inalcançáveis e sua conseqüente frustração, no cenário de uma sociedade em que, como se afirmou, o culto ao corpo torna-se uma febre cada vez mais consolidada, sobretudo nas grandes metrópoles, pode-se asseverar que a angústia proveniente do conflito entre a imagem ideal de corpo construída por padrões sociais e reforçada pela mídia está se tornando um dos grandes problemas que aflige a mulher moderna.

A concepção da campanha:
Preocupada com as repercussões e conseqüências concretas que estas idéias têm sobre o universo feminino, cujos personagens dificilmente se encaixam nesses estereótipos veiculados pela mídia em geral, Dove resolveu investigar a fundo esta questão, promovendo um estudo para o entendimento global sobre a relação entre as mulheres, a beleza e o bem-estar. Ao investigar empiricamente o significado da beleza para as mulheres de hoje, o estudo procurou um referencial mais autêntico e satisfatório para se falar e pensar a beleza como valor e conceito. O propósito não era tanto o de discutir o que é a beleza em si (tarefa mais apropriada ao campo da Estética, em Filosofia), mas o de averiguar os descompassos entre a imagem (em especial a imagem desejada e/ou veiculada pela mídia) e a realidade efetivamente encontrada sobre a beleza. Foi com base nos resultados deste estudo que Dove reuniu elementos consistentes para formular a bem sucedida Campanha pela Real Beleza.
Gerenciado pela Strategy One, uma das mais sérias empresas de pesquisa dos Estados Unidos, sediada em Nova York, o estudo contou com a colaboração de pesquisadores da Universidade de Harvard, do Hospital de Massachussetts e da London School of Economics. Sua metodologia consistiu de um extenso e denso trabalho de campo, realizado em 10 países (Estados Unidos, Canadá, Argentina, Brasil, Portugal, França, Inglaterra, Itália, Países Baixos e Japão), nos meses de fevereiro e março de 2004, em que foram entrevistadas cerca de 3200 mulheres, na faixa etária dos 18 aos 64 anos. Para que pudesse ganhar consistência e melhor se adequar aos distintos padrões estéticos nos diferentes países analisados, além da pesquisa de campo em si, o estudo promoveu uma revisão da literatura mundial sobre o assunto, examinando pesquisas, ensaios e textos em geral, até então existentes, em 22 idiomas provenientes de 118 países, com o objetivo de rever o conhecimento público sobre o tema.


A realidade mostrada pelo estudo:
Um dos resultados mais marcantes deste estudo foi a constatação de que, em todos os lugares pesquisados, as mulheres desejam uma idéia de beleza que seja menos estreita do que aquela que é veiculada pela mídia. Desejam algo mais próximo de suas realidades. Este foi, portanto, o principal indicador de que as hipóteses iniciais que inspiraram o estudo eram válidas.
Ao constatar que apenas metade das mulheres entrevistadas relata que está razoavelmente satisfeita com sua vida e bem estar social, a pesquisa procurou investigar o que seria mais importante em suas vidas. A partir daí, passou a considerar os aspectos envolvidos diretamente na concepção feminina de beleza, não hipoteticamente, mas com base nos depoimentos das entrevistadas. Tópicos como saúde, relacionamentos de diversos tipos, beleza e aparência física, sucesso profissional e financeiro e religiosidade foram os mais abordados. Vejamos a seguir alguns destes resultados.

Em linhas gerais, o estudo revelou que nos lugares pesquisados (e pelo grau de sua representatividade, poder-se-ia supor que no mundo todo) as mulheres têm um relacionamento complexo e às vezes difícil com a beleza. Uma das descobertas relevantes do estudo é que “beleza” é uma palavra dificilmente empregada pelas mulheres como suas (menos que 2% escolhem se descrever como “belas”). Outro aspecto importante é a identificação entre os conceitos de beleza e atratividade física: as mulheres pesquisadas tendem a classificar sua beleza e o seu significado da mesma maneira com que classificam sua atratividade física, o que aponta para um vínculo estreito entre os dois conceitos.

Uma outra constatação curiosa é que mesmo que quase a metade das mulheres concorde fortemente que quando se sente menos bela, se sente pior em relação a si mesma de forma geral, mais de 75% não se sentem à vontade para se descreverem como belas. Do mesmo modo, ainda que sintam que não podem possuir beleza, a falta da mesma ainda pode provocar um impacto negativo em sua auto-estima.

Uma grande maioria das mulheres está somente “um tanto” satisfeita com sua beleza e atratividade física, sendo a insatisfação em relação ao peso e forma do corpo maior ainda. Os dados mostram que a maioria das mulheres está insatisfeita com sua beleza e atratividade física. Para elas o peso e a forma do corpo ainda incomodam. As mulheres japonesas têm o maior índice de insatisfação física (59%), seguidas pelas brasileiras (37%), inglesas e norte-americanas (36%), argentinas (27%) e holandesas (25%). Tudo indica que esta situação está relacionada a preceitos da cultura popular que constrói alguns valores de atratividade física muito distantes do que é possível encontrar na sociedade industrial contemporânea. O estudo revelou também que as mulheres têm consciência disso e resistem a essa imposição. Um dado relevante, proveniente da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética revela que Estados Unidos, México e Brasil lideram o ranking mundial de cirurgia plástica no mundo.
Mulheres concordam fortemente que “os atributos de beleza feminina ganharam uma definição muito estreita no mundo atual.” Ao mesmo tempo, uma vasta maioria também queria que a beleza feminina fosse retratada na mídia como se consistisse em mais do que simples atratividade física, e concorda que a mídia e propaganda estabelecem padrões irreais de beleza que a maioria das mulheres jamais conseguirá alcançar.

É possível, segundo o estudo, que as mulheres respondam de maneira muito positiva a uma idéia de beleza feminina com múltiplas nuanças e facetas. As mulheres entrevistadas concordam fortemente que a beleza inclui itens muito mais fortes e profundos do que aquilo que uma pessoa é em comparação com a presença pura e simples da atratividade física. Para elas, a beleza da mulher é derivada muito mais de atributos como gentileza, confiança, dignidade, humor e inteligência.

Outra constatação interessante é que qualquer mulher pode ser detentora de beleza, sendo que muitas concordam fortemente que “toda mulher possui algo que seja belo” e que “uma mulher pode ser bela com qualquer idade.” As mulheres também exprimem um desejo de reivindicar esta idéia de uma beleza com mais nuanças, variedade e diversificação.

De maneira contundente, as mulheres também associam esta idéia alternativa de beleza com bem estar.
Enxergam a felicidade como o componente mais importante de beleza e concordam fortemente que “se sentem mais belas quando estão felizes e realizadas em suas vidas”.

Uma outra revelação curiosa é o fato de que as mulheres não somente pensam que a beleza leva à felicidade, mas vão mais longe: pensam que a própria felicidade é a beleza.

Finalmente, segundo os dados conclusivos do estudo, as mulheres expressaram o desejo de que esse entendimento mais complexo das nuanças de beleza seja reforçado através de representações de mulheres na cultura popular. Nisso, o papel da mídia é muito forte, já que é uma das grandes responsáveis pela veiculação desta imagem. Concordam fortemente que gostariam de ver mulheres de formas, tamanhos, idades e etnias diferentes retratadas na mídia. Elas afirmam que admiram as modelos, mas além delas, também querem ver mulheres comumente belas e mulheres ativas em suas vidas cotidianas. A beleza está na riqueza e na diversidade e não na padronização.

Com base nestas constatações, o estudo revelou que seria necessário que a publicidade provesse às mulheres uma representação de beleza altamente desejável e ao mesmo tempo relativamente acessível e passível de ser alcançada.

Na avaliação da própria Unilever, Dove possui a vantagem estratégica de ter sido pioneira no entendimento deste espaço. A pesquisa realizada identifica de maneira clara os componentes da nova beleza, incluindo felicidade, relacionamentos, auto-realização e auto-cuidado. Além disso, a nova beleza deve englobar diversidade de idade, etnicidade e aspectos físicos variados. Assim, é preciso colocar a atratividade física – e não simplesmente a estética – como essencial ao conceito dessa nova beleza natural, autêntica e presente na vida das mulheres. Sem esse componente, a nova beleza irá perder sua autoridade e legitimidade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Uma reflexão sobre a beleza do corpo, no âmbito da pesquisa feita por Dove, leva-nos a pensar na relação das pessoas (e aqui o foco é a mulher) com seu próprio corpo. “Elo de ligação entre o indivíduo e o coletivo, capaz de fortalecer os vínculos sociais tanto quanto a própria saúde e beleza do indivíduo” (Sant’anna 2005:122), o corpo é a condição e a principal marca da presença do indivíduo no mundo. Esta reflexão pode nos levar a refletir sobre as formas em que se dá esta presença e esta singularidade. A historicidade do corpo está repleta da historicidade do próprio indivíduo. O corpo humano assume, desta maneira, um caráter menos biológico e mais social e, diria até mesmo existencial.

Uma das questões mais evidentes que podem surgir destas considerações é aquela que diz respeito à maneira como se dá esta relação entre o que o indivíduo e o coletivo, por meio da comparação entre o que ele pensa, acredita e percebe sobre o seu próprio corpo e o que o grupo social no qual ele está inserido pensa, acredita e percebe. Em qualquer época e sociedade, conceitos e padrões de beleza do corpo são freqüentemente estabelecidos. Herdeiros da tradição grega, para nossa cultura, a beleza do corpo passa a ser uma manifestação da própria beleza e equilíbrio do ser como um todo: a beleza expressaria saúde, enquanto que a feiúra, doença, ou no mínimo, desequilíbrio. E essas idéias estão muito fortemente fixadas no imaginário social.

Por outro lado, relacionados à pulsão sexual, esses padrões de beleza são associados a determinadas possibilidades de satisfação dessas mesmas pulsões, o que, em última instância, remete à própria satisfação pessoal. E isso adquire força e importância maiores numa sociedade em que, como a contemporânea, a construção da imagem tem um papel central na definição da identidade do indivíduo.
Constatando que a imagem do belo criada e veiculada por meio da mídia não corresponde de fato àquela presente no cotidiano das pessoas (e ainda mais, a que desejariam ver retratadas), o estudo encarregado por Dove, consolida a comprovação empírica para esta hipótese, o que pode levar a estratégias publicitárias mais ousadas e atrativas. Desta maneira, ao investigar a relação real e concreta da mulher com sua própria beleza e os ideais de beleza que possuem, investigou itens bem concretos e importantes, tais como: a sua a relação com sua própria beleza, sua auto-avaliação da beleza e aparência física, seu grau de satisfação pessoal com a sua beleza, sua aparência física e sua vida em geral, suas percepções de como a beleza é tratada na cultura popular; sua visão do quê faz as mulheres se sentirem bonitas, suas visões sobre beleza, atratividade física e o papel do cuidado coma aparência e da cirurgia plástica, suas opiniões sobre a verdade sobre a beleza, suas visões sobre o quê as mulheres querem, confrontando a mídia e a verdade sobre a beleza.

O resultado deste trabalho foi a produção de uma campanha extremamente criativa, simpática ao público e que, de quebra, assume um caráter de responsabilidade social da marca que procura, ao anunciá-la aos consumidores, transmitir uma mensagem de valorização de sua beleza natural e autêntica, diversa e heterogênea, enfim, valorização de sua própria vida. Se, de início, as mulheres não conseguiam (como constatou a pesquisa) associar a palavra bonita consigo mesmas, o estudo constatou que isso se devia ao fato de elas não conseguirem valorizar o lado natural da beleza, mas terem como referência o lado padronizado de uma beleza inatingível. Seguramente, um dos grandes ganhos da Campanha pela Real Beleza tenha sido o de levar as pessoas a refletirem sobre estes (e, quiçá, outros) padrões estabelecidos pela sociedade e veiculados pela mídia.

O Estudo demonstra claramente que as mulheres que conseguem abraçar um conceito mais amplo de beleza são mais propícias a estarem satisfeitas com suas vidas e seu bem estar.
Com certeza, esta perspectiva poderá posicionar a marca Dove de maneira única, singular, que acolhe as diversas maneiras segundo as quais as mulheres querem pensar e se sentir em relação a elas mesmas. É, em última instância, um instrumento poderoso para ajudá-las a refletir sobre sua própria felicidade.

Agradecimentos:
Ismael Rocha Jr., pela revisão técnica.


[1] A fundamentação estatística para esta análise é baseada nas informações contidas em Etcoff et alli, 2004.


[2] Segundo o relatório Dove, a pesquisa de campo, realizada por telefone, foi formulada em inglês por uma das mais renomadas empresas de pesquisa a distância, sediada em Londres, e traduzida para outros 7 idiomas. Como cuidado adicional, os tradutores locais revisaram as traduções para assegurar suas consistência em relação à entrevista original. Para outros detalhes metodológicos da pesquisa, conferir o relatório supracitado.


[3] Conferir a esse respeito as discussões feitas por Hoff, 2005, baseada na concepção de corpo no pensamento de Michel Foucault.HHans


Bibliografia:SITES CONSULTADOS:
1- Pesquisa para a Campanha pela Real Beleza. (em inglês)
2- Em português, Real Beleza

Textos:
ETCOFF, Nancy et alli. A verdade sobre a beleza: um relatório global. Descobertas de um estudo global sobre mulheres, beleza e bem-estar. Relatório para Dove. 2004. Publicado em: http://www.realbeleza.com.br, acessado em 19/03/2007.
CUKIERT, Michele e PRISZKUKNIK, Léia. “Considerações sobre o eu e o corpo em Lacan”. Estudos de Psicologia. 2002. 7(1), 143-149.
GOLDENBERG, Miriam e RAMOS, Marcelo Silva. “A civilização das formas: o corpo como valor”. In: GOLDENBERG, Miriam (org.). Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Ed. Record. 2002.
HOFF, Tânia. “O corpo imaginado na publicidade”. Cadernos de Pesquisa. Vol. 1. Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Práticas do Consumo. São Paulo:ESPM. 2005.
LAZZARINI, Eliana Rigotto e CAMARGO VIANNA, Therezinha. “O corpo em psicanálise”. Psicologia: teoria e pesquisa. Brasília. 22(2):241-50.
SANT´ANNA, Denise Bernuzzi de. “Horizontes do Corpo”. In: BUENO, Maria Lúcia e CASTRO, Ana Lúcia de. Corpo: território da cultura. São Paulo. Anna Blume. 2005.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Trabalhos universitários: Variações sobre o tema da Responsabilidade.

A estrutura da vida universitária, como em qualquer campo social no qual estamos inseridos, possui certas prerrogativas éticas que são tidas como princípios básicos de orientação daquilo que se considera o "bom comportamento" no seu interior. O que se espera dos seus membros e que é desejável (sendo o seu contrário, condenável). Assim como em qualquer outra esfera da vida social, tais pressupostos que, justamente por serem "princípios" e "básicos", deveriam ser do conhecimento público e praticados por todos os que nela estão inseridos, mesmo sem uma orientação explícita e formalizada para tal. Por certo, seu conhecimento não advém de um processo "natural", mas adquirido em nossa formação como seres sociais que somos, como já chamava a atenção (no texto "Sociologia e Educação") um dos trabalhos pioneiros que refletem sobre as relações entre Sociedade e Educação, do célebre sociólogo Émile Durkheim. Este processo é o que sustenta, por exemplo, um dos fundamentos da normativa do Direito: "o não conhecimento da lei não é justificativa para que ela seja infringida ou tampouco isenta o infrator das responsabilidades decorrentes de sua ação".

Com a pretensão de se firmar como a Sociedade da Informação e do Conhecimento, a Civilização do Século XXI consolidou uma das maiores conquistas tecnológicas da história da humanidade: a rede mundial de computadores, popularizada como internet. Nunca o valioso patrimônio do conhecimento esteve tão acessível, com uma facilidade nunca antes alcançada(1), o que é exaustivamente debatido, há pelo menos 10 anos, por clássicos das ciências humanas como Manuel Castells, Pierre Lévy e Zygmunt Bauman (para citar apenas alguns). No entanto, o uso pedagógico que se tem feito desse instrumento está repleto de inúmeros exemplos (não disponho de dados estatísticos ou de pesquisa para afirmar que se trata "da maioria") que atestam que, ao invés de servir como um potencializador do conhecimento, do desenvolvimento da criatividade, da capacidade intelectual, acaba funcionando no caminho contrário: ao oferecer a informação em grande quantidade, numa enorme variedade de formas, de fácil acesso e semiacabada, praticamente ocorre uma substituição do trabalho intelectual que deveria produzir algo novo, mesmo a partir de um repertório já preestabelecido, por um trabalho mecanicista em que estão ausentes os requisitos de um processo verdadeiramente intelectual. Uma vez que as consequências desse processo contribuem para minimizar esta capacidade, creio ser possível fazer um juízo de valor não tão relativo sobre este fenômeno como algo ruim, especialmente quando ele tolhe o desenvolvimento do intelecto. Gosto de pensar o processo de construção do conhecimento como a imagem levistraussiana do "bricoleur" (apresentada por ele em O pensamento selvagem )(2), que cria sentidos múltiplos e não necessariamente estabelecidos a partir de um conjunto fixo e determinado de matérias-primas (fontes) disponíveis. Em muitos processos de ensino-aprendizagem, acabamos por negar a máxima kantiana de que deveríamos aprender a pensar e não aprender "pensamentos" pois a invasão do princípio mecanicista do conhecimento predomina onde o construtivismo piagetiano deveria ter assento. No campo do conhecimento, a visão sistêmica (de natureza holística) é substituída por uma visão fragmentada e mecânica. Perde-se a noção de integração das partes num todo sistêmico, focando-se em cada parte isolada em si mesma, como se estas fossem o universo de referência e não existisse uma conexão com outras esferas. Essa concepção consolida aquela idéia do pragmatismo e utilitarismo do conhecimento: este deveria ser um instrumento para a execução de algo e não o campo (e o processo) por meio do qual as competências e habilidades são intrinsecamnte relacionadas potencializando a capacidade do sujeito de lidar com a realidade (incluindo aí a profissional). Em um outro texto, eu refleti s obre o papel que a filosofia deveria desempenhar na formação de pessoas com potencial racional crítico e desenvolvido(3), quebrando este paradigma mecanicista e fragmentário do conhecimento, facultando a veiculação da perspectiva mais holística e sistêmica.


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Neste semestre letivo, vivi uma situação que há algum tempo não experimentava: um certo "estresse" com relação ao diagnóstico que fiz em que afirmava que, na produção de alguns grupos de alunos, haveria trechos mais que significativos copiados literalmente de fontes da internet. Tais trechos inundavam as redações de muitos trabalhos. Em alguns casos, o índice chegou a 89% do texto constituído de material literalmente transcrito de vários sites, montados num mosaico de informações cujo único mérito, talvez, tenha sido a arquitetura de um móbile textual com peças múltiplas e alheias. E o que é pior: nem o material consultado chegava a ser propriamente original e muito menos demonstrava domínio, por parte de seus autores, do seu conteúdo.

Já bem versado na utilização do Safe Assignment (ou simplesmente SA)(4), um software disponibilizado por uma plataforma eletrônica, o Blackboard, venho submetendo todos os trabalhos solicitados ao que ficou conhecido, entre colegas, como "verificação de plágios". Os alunos entregam os trabalhos em versão digitalizada e o SA fornece um relatório minucioso contendo percentuais de cópia e apontando a construção de textos a partir da justaposição de trechos de outros textos prontos disponibilizados na rede mundial de computadores.

Anexado o trabalho à plataforma (há mecanismos que podem ser criados para que o próprio aluno faça isso, dispensando o professor desta tarefa "mecânica"), o SA vasculha toda a rede e emite um relatório sobre o texto indicando, para cada trecho detectado, o site do qual foi retirado e o percentual de matching que ele contém. Foi com base neste processo que o percentual indicado acima (89%) foi obtido, por exemplo. Isso é particularmente interessante para os casos em que alguns textos são propositalmente alterados em sua forma para disfarçar o mecanismo de cópia; ainda assim, o programa consegue detectar essas alterações, indicando suas fontes. Claro que cabe ao professor verificar se o trecho indicado como potencial "plágio" foi devidamente citado entre aspas e referenciado, o que descaracterizaria, em princípio, o plágio em si. Entretanto, não nos livra de um outro problema: o da total falta de criação intelectual, na medida em que, mesmo citado e referenciado, o trabalho é uma simples compilação de trechos alheios. Nesse sentido, creio que fica a cargo do bom senso (acadêmico ou não) verificar a incidência e o índice de trechos copiados, mesmo que referenciados. Afinal, um texto produzido com uma incidência muito alta de cópias, ainda que estejam de acordo com os parâmetros éticos exigidos (referenciados), desqualifica o valor do trabalho, pois este seria praticamente uma montagem a partir de material produzido por outrem. Entre outras coisas, isso revela um outro ponto relevante no processo de elaboração de trabalhos acadêmicos por parte desses jovens: é como se o foco passasse a ser a montagem de um mosaico e não uma produção intelectual própria. O foco no produto (independentemente do meio como se chegou a ele) substitui o foco na produção. Coerente com o que Bauman afirma sobre a liquefação da modernidade, o "produto" apresentado (independentemente do processo pelo queal se chegou a ele) é tido como "o" relevante. Se o processo foi lícito ou não, se foi criativo ou não, se há ou não produção, é algo que parece não ter relevância.

Evidentemente que é ponderável o fato de que há algumas poucas situações bem específicas em que algumas compilações são altamente produtivas e criativas. Como exemplo, cito não um texto, mas um belíssimo filme do cineasta Marcelo Masagão intitulado Nós que aqui estamos por vós esperamos feito inteirinho numa "colagem" de material produzido por terceiros. Como indica a resenha de Nicolau Sevcenko, longe de ser simplista e superficial, a elaboração do filme envolveu uma enorme e exaustiva pesquisa e uma construção da montagem que revela uma sofisticação intelectual e um estilo que poucos poderiam produzir, o que tornou o filme único e o diretor reconhecido pela belíssima obra. Pelo que se depreende das resenhas críticas a que remeti o leitor (além do texto do Sevcenko, vale a pena ler as outras resenhas no link disponibilizado), jamais esta obra poderia receber qualquer desqualificação ou demérito por ser uma "colagem". Aliás, nessa perspectiva, ela está mais para o conceito de "bricolagem" a que me referi anteriormente. Aqui, a produção faz todo o diferencial para a qualidade do produto

Para se ter uma idéia de como funciona na prática o SA, seguem dois exemplos de textos a ele submetidos: um é este mesmo texto em uma versão "rascunho"; o outro, um dos trabalhos que recebi.

a) No Exemplo 1 é mostrado o relatório gerado para este texto. Observe que os "2%" indicados se referem a frases óbvias que podem ser encontradas em qualquer lugar. Quando isso ocorre em um trabalho, claro, o relatório é desprezado;

b) No Exemplo 2, o texto submetido é de um dos trabalhos que recebi (sem a identificação da IES e/ou dos autores). Note que aqui é revelado que o percentual de "cópias" é elevadíssimo (82%), com as respectivas indicações das fontes utilizadas. Ao abrir o arquivo, verifique que os trechos grafados em "azul" são os copiados. Se o "mouse" for posicionado em cada uma das indicações (marcadas pelo algarismo), no texto será iluminado o trecho correspondente a este endereço. Se o trecho indicado for "clicado", aparece na tela o endereço do site, um quadro com o texto original e o do arquivo em questão com o percentual de proximidade entre os dois. Quando se solicita a impressão, via ícone disponível, o documento gerado aponta o percentual de cada trecho (entre colchetes) inclusive por aproximação (isso só é possível, no entanto, na área 'logada' do SA).

Com base neste relatório como "prova material" da cópia (indevida ou não), procurando ser rigoroso, porém não radical, adotei o seguinte critério: quando o trabalho apresentava até 55% de cópias sem referências, recebia a nota correspondente à sua qualidade (considerada independente das cópias) e tinha, desta nota, um desconto que era proporcional ao valor de matching indicado pelo programa (assim, se um trabalho mereceria 7,0, passava a ter a nota 3,5). Acima deste percentual, a nota era zero. Nestes casos específicos, enviei um e-mail aos autores, com um pequeno texto informando sobre o eventual plágio e o link para que eles pudessem verificar o relatório gerado pelo SA.


Claro que alguns poucos alunos preferiram, ao invés de refletir sobre o ato praticado, direcionar imprecações e revoltas contra o professor por ter diagnosticado o problema. Foram poucos os que assim agiram, é verdade. Esse comportamento foi, no mínimo, curioso. Principalmente se levarmos em conta que os elementos que compõem sua natureza foram amplamente discutidos na disciplina em questão, à luz de vários teóricos da interpretação do Brasil como cultura: a questão do Moderno e do Arcaico, o personalismo, o "jeitinho", "a culpa não é minha" etc. Um mar de justificativas e críticas ocupou o lugar que deveria ser da autocrítica e da reflexão diante de um comportamento, se não intencional, involuntariamente duvidoso pelas razões já expostas até aqui. Realmente acredito que, em muitos casos, não houve esta intenção, mas uma reprodução quase mecânica do que chamaria de vícios escolares adquiridos no ensino médio. Mas o resultado estava ali e era inconteste! E era para isso que eu chamava a atenção. Alguns me argumentaram que isso ocorreu devido à pressa e ao excesso de atividades o que é, em si, um argumento pouco defensável se formos rigorosos com a maneira segundo a qual se dá, de fato, o aproveitamento do tempo e o planejamento (ou a ausência dele) das atividades por parte desses estudantes (mas isso é um capítulo à parte). Um outro elemento que ajuda corroborar esta crítica é o fato de que dos 45 trabalhos recebidos, em apenas 9 (20%) foi detectado o problema. Se 80% fizeram um trabalho moralmente decente, o que justificaria o comportamento inadequado dos 20%? Creio que, por mais que possamos explicar, justificar tal ação se torna algo difícil (pra não usar a ideia de "impossível").

Na tentativa de levantar a reflexão, respondi a alguns dos e-mails que me foram enviados, contendo afirmações interessante. Pérolas como "Nunca nos foi mencionado que não se poderia copiar trechos da internet". Ou então "Se fizemos a pesquisa, que mal há em transcrever os trechos?" e assim por diante. A partir da constatação do problema, da troca de e-mails e das discussões feitas em sala, achei que o assunto mereceria, pelo menos à guisa de levantamento e introdução da reflexão do problema, uma carta mais generalista, enviada a todos. Nela, não tive mais que a pretensão de levar os alunos a pensar sobre o problema, contribuindo para o melhor aproveitamento da sua vida acadêmica (eram todos alunos do segundo semestre de um curso superior, os quais ainda considero neófitos na vida universitária). Minha intenção (e pretensão) era ser mais didático e pedagógico do que punitivo ou cerceatório. Na carta, sugeri que procurássemos manter o foco não nas tentativas de justificativas (o que, no meu entendimento, não nos leva muito longe - e que sabia seria a primeira reação de muitos), mas na reflexão sobre o real e profundo significado que este tipo de atitude pode nos legar e suas vinculações com outras esferas anti-éticas que estamos tão acostumados a condenar e das quais quase não nos vemos participando. E, para além do caráter ético da questão, há aquele sobre o tipo de relação que temos com o conhecimento: estamos focados no processo de produção de um conhecimento próprio, ou apenas consideramos o produto final como algo mecânico, do qual eu apenas participo com o trabalho braçal de digitar (às vezes nem isso) e montar? Em nenhuma das correspondências recebidas, eu percebi esta preocupação por parte dos alunos que escreveram.

Nesta carta, apresentei alguns pontos para reflexão a fim de orientá-los na vida acadêmica na qual eles estavam ingressando. Certamente, para a grande maioria haverá muitos MBA, pós-graduações etc. pela frente. Além dos próprios desafios da vida profissional. Dicas estas que são baseadas em princípios básicos da vida acadêmica e que eles já deveriam ter trazido do ensino médio.

Resumidamente, eis as que considero mais relevantes das que foram apontadas.
1) Os trabalhos universitários (ditos acadêmicos) devem primar pela demonstração de uma capacidade analítica e reflexiva do aluno. Capacidade esta que deve ser "Produtiva" (no sentido de produzir algo novo) e não meramente "Reprodutiva" (no sentido de reproduzir o que já está pronto). É fundamental que no seu processo de elaboração ele demonstre a pesquisa feita, mas ao mesmo tempo, a construção de algo próprio;

2) Assim, a pesquisa a fontes (primárias ou secundárias) é o seu pressuposto. Mas, como o próprio nome indica, estas devem ser consideradas "fontes" (origem para a reflexão) e não o "destino" (resultado final, como se o trabalho fosse o que está escrito e não a reflexão feita). As informações coletadas deveriam ser usadas como matéria-prima e não como uma sua substituição do pensamento, da reflexão. O trabalho que se pede e que se avalia (ou pelo menos deveria assim ser) não é o mero texto entregue, mas sim, justamente o processo que levou à construção daquele texto. Quanto mais "colado" às (e das) fontes, menos demonstra capacidade analítica e intelectual. [Nesse sentido, é até bem curioso que alguns alunos usem a expressão "Nossa, deu trabalho!!!" como demérito para a atividade solicitada.];

3) De acordo com estes dois princípios anteriores, a transcrição de trechos pesquisados (claro que estou me referindo àqueles devidamente referenciados e credenciados) deve ocupar o espaço de uma "ilustração" do argumento desenvolvido e não se constituir no argumento em si. Caso esta substituição aconteça, o trabalho é desqualificado como de autoria de quem o apresenta pois, longe de ser uma produção intelectual própria, passa a ser apenas "braçal": compilação de dados existentes, nada mais;

4) Cópias de trechos literais, sem referência, montando aquilo que popularmente se chama de "colcha de retalhos" ou um mosaico de informações não devem ser característicos de trabalhos universitários por ferirem o princípio básico descrito no item 1: além de não serem "criados" pelo próprio autor do trabalho apresentado, caem na grosseira falha ética de "usurpação de conhecimento", um verdadeiro engodo, uma vez que é caracterizado como autor aquele que apresentou o texto e não aquele que realmente o elaborou.

Por estes motivos, fiz uma exortação para que eles entendessem que a crítica feita por mim cumpriria um preceito ético inequívoco. Era mais orientadora e pedagógica. Compreendo que isso tenha causado transtorno e despertado a ira de muitos. Mas não acredito que a função pedagógica básica deva sucumbir diante de uma visão superficial que insiste em ver o ensino universitário como algo mecânico e meramente reprodutivo. Infelizmente, até mesmo pelo pouco hábito da leitura atenta, típico desta geração, creio que meu e-mail não surtiu o efeito que eu gostaria.

No entanto, este episódio acabou gerando esta reflexão. Espero que aquele que a lê possa refletir sobre o que significa, de fato, a formação acadêmica/universitária. Se isto acontecer, já terá cumprido o seu papel. Estou aberto a crítica, sugestões e reflexões dos internautas que, porventura, quiserem aprimorar esta discussão.



*** *** *** *** *** ***


NOTAS:
(1)Não estou aqui entrando no ufanismo simplista de presumir que esta "facilidade de acesso" significa democratização do acesso (como muitos pretendem). Apenas me refiro ao fato constatável de que, para aqueles que possuem os mecanismos de acesso à rede, sobretudo nas universidades que investem em pesquisa, o acesso à informação se tornou efetivamente fácil e ágil. Sempre cito aos meus alunos um episódio pelo qual passei, em 1992, quando estava finalizando um projeto para ser submetido à FAPESP. Para levantar informações do que já havia de conhecimento a respeito dos índios Karitiana (em Rondônia, sociedade sobre a qual fiz o meu mestrado), eu tive que obter um financiamento da Unicamp para uma viagem a São Paulo (pesquisando nos arquivos do MAE- USP) e ao Rio de Janeiro (para pesquisas no Museu Nacional e no Museu do Índio). Esse processo , além de consumir recursos públicos, consumiu também muito tempo, cerca de quinze dias percorrendo os três arquivos. Hoje, a mesma pesquisa pode ser feita em algumas horas e não somente nesses três acervos, mas em muitos outros espalhados pelo Brasil e pelo mundo.

(2)Como indica o verbete a que remeti o leitor, este é um conceito desenvolvido por Claude Lévi-Strauss nesta sua obra. Algumas referências importantes sobre o autor:
a) Biografia e principais referências;
b) Entrevista a Beatriz Perrone Moysés, com foco na sua visão sobre Brasil;
c) Uma referência importante sobre o desenvolvimento do conceito de bricolage pode ser encontrada no
verbete na Wiki.

(3) Escrevi um capítulo no livro Administração para não administradores, organizado por meu colega Edmir Kuazaqui, intitulado "Filosofia, Ética e Administração de Em presas".

(4)Mais informações podem ser obtidas clicando aqui.

domingo, 24 de maio de 2009

Babette: uma ode aos sentidos


Há muitos anos, quando ainda morava em Campinas e vivia com mais efervescência o clima universitário como aluno da graduação e pós-graduação simultaneamente (fazia meu segundo curso universitário - Ciências Sociais - e o mestrado em Antropologia), tomei contato com uma das obras mais simples e ao mesmo tempo mais sofisticadas e complexas do cinema moderno. Naquela época, e durante muitos anos depois, minha visão desse filme tinha me levado quase que exclusivamente a pensá-lo com o foco na gastronomia (seu mote, pelo menos aparentemente, principal) e as várias questões a que a ela são reportadas. Muitos anos depois, já com olhos (e ouvidos) abertos para outras questões eu o revi num grupo de sarau cinematográfico do qual faço parte.

Talvez na melhor linha epicurista, tentando manter o que o culto, a filia (no sentido literal do termo grego, de amor, apreço), ao conhecimento tem de lúdico, nós nos reunimos uma vez por mês, sempre na vesperal de domingo, para assistir a um filme. Levamos uma prenda (que pode ser um texto, um trecho de algum outro filme, um poema, uma música), aquilo que é considerado importante, na ótica de quem oferece, para fazer a partilha. Pensamos, divagamos e, principalmente, discutimos livremente sobre o filme proposto, relacionando a ele, livremente, a prenda oferecida. Claro que não falta um bom vinho e uma boa comida, esta quase sempre à cargo do anfitrião da vez. Sem dúvida alguma, nosso momento de "culto" ao conhecimento e à amizade. O grupo, bastante heterogêneo (somos três psicanalistas, um semioticista, uma médica, um poeta e eu, um antropólogo), tem produzido belas reflexões e esse tem sido um momento muito bom de descontração e, ao mesmo tempo, de veiculação de excelentes idéias. Uma deliciosa maneira de se encerrar o domingo, preparando-se para a semana que está entrando. A partir do próprio sarau, escolhemos o nosso próximo objeto. Tudo muito despretensioso pois funde-se, ao desejo de sorver aquilo que a comensalidade mais tem de precioso - o prazer do encontro -, o exercício do pensamento e a consolidação da amizade.

Em nossa última sessão, fui brindado com o reencontro com este que, apesar de relativamente jovem, já se tornou um clássico. Ao rever o filme em casa, antes do sarau, fui tocado por um detalhe, logo no início da história, que me havia passado completamente desapercebido. Acho que isso ocorrera devido ao excesso de textos que li que atentavam sempre para "Babette" como um filme sobre comensalidade. Comida no seu sentido lato, naquilo que evoca de ritualístico (antes, durante e depois), de renovação, de dádiva, de acolhida e, porque não dizer, de sagrado. Desta vez, percebi que o filme também é riquíssimo para a exploração de todos os sentidos e não apenas do paladar. Aqui, nesta breve divagação, desejo focar num dos seus aspectos que me pareceram mais singelos (e sobre o qual, confesso, não vi ainda nenhuma alusão feita): o da presença sutil, porém definitiva, da música na construção da trama.

Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1987, o filme do dinamarquês Gabriel Axel (baseado na obra homônima da escritora, também dinamarquesa, Isak Dinesen1) é um deleite que nos convida a aguçar os sentidos. Frequentemente lembrado pelo seu tema mais explícito, evidenciado no título, não é um filme que se limita ao "paladar". Resgatando a relação profundamente humana entre o corpo e o prazer, Axel nos conduz pelas sendas dos sentidos (em seus múltiplos sentidos). É uma ode à estética: o belo no que tem de mais abstrato, sublime e poético. Humano.

Associando a excelência artística culinária de Babette (a bela atriz Stéphane Audran)2 com a beleza da voz de Philippa 3, Axel nos conduz aos meandros de histórias amorosas que se entrelaçam com toques e ares de Destino (no sentido mesmo de predeterminação), religiosidade, circunspecção, austeridade, pecados e prazeres proibidos carcterísticos daqueles fiéis de uma seita luterana de ares autóctones e autônomos da pequena vila costeira de Frederikshavn4 (da qual a pequena aldeia era um distrito), naquele final de século XIX. Por este motivo, talvez seja relativamente corrente a reflexão sobre o caráter profundamente religioso (enraizado no cristianismo dos seguidores do Pastor) de que o filme é objeto.5

Levar o expectador a navegar pelos caminhos da sensualidade que brota na confrontação do prazer iminente, porém proibido, ou que emana da estética do corpo oculto, marcada pelas belezas de Martina e Philippa (ressaltada logo nas primeiras sequências do filme); sensualidade despertada pela estética da mesa bem posta, dos talheres e louças finas; ou aquela provocada pela textura de alimentos ricamente preparados, de odores e sabores mais diversos (o quê, para nós expectadores, é um estímulo à imaginação). E, claro, sensualidade (implícita e explícita) do dueto La ci darem la mano, do Don Gionvanni, de Mozart. O filme é um convite à experiência do corpo. Este dueto é um dos raros momentos do filme (talvez o único, se considerarmos que faz parte da sequência inicial em que Achille Papin é apresentado) em que a música protagoniza uma cena cujo desenrolar vai desencadear o mote principal da história: desiludido pelo fracasso na tentativa de seduzir Philippa, Papin retorna a Paris de onde, anos mais tarde, encaminha a misteriosa, porém célebre, chef do renomado Café Anglais.

Instigando a dubiedade na própria tradução do seu título para o português, A festa de Babette (Le festin de Babette)6 tem, no meu entendimento, nesta cena um dos mais belos e singelos momentos do cinema contemporâneo. Cena esta que conjuga a aludida circunspecção, o amor sensual que consegue extravasar por meio do canto: assim como o banquete, este marcará a fruição e a fluência do prazer sensorial pela música que surge como instrumento e veículo da sedução. Aqui, a bela interpretação do dueto é um marco para o desenrolar da história. Percebendo a volúpia contida nas palavras (e, mais que nestas, nos gestos) sedutoras de Papin, Philippa decide interromper suas aulas de canto, graciosamente concedidas pela paixão de Papin. Desencantado, esse gesto abrupto e inesperado de sua amada leva-o a retornar ao fausto dos grandes teatros parisienses de onde viera em busca de tranquilidade. Muitos anos depois, é por meio (e por causa) desse amor contido que Babette chega ao vilarejo dando lugar ao desenrolar da história que tão bem conhecemos.

Transposto para o francês (o original, como sabemos é em italiano), e guardando o profundo clima de amor contido - ao mesmo tempo belo e assustador -, a cena explode na bem trabalhada voz do soprano.7 Em sua segunda lição de canto, Philippa deixa extravasar seus sentimentos através da jovem plebéia Zerlina, que se deixa encantar e seduzir pelo nobre Don Giovanni. No filme de Gabriel Axel, não sabemos ao certo se esse amor é direcionado a Achille Papin - mestre e sedutor - ou simplesmente sem um alvo específico, liberando o que estava contido. O prazer do canto. Há muito o que falar - e muito já se fez - sobre o Amor no filme. Para mim, o que ficou marcado foi a ternura desse momento que me tocou mais do que o próprio banquete em si. Certamente, o amor de Martina pelo antigo soldado (e agora, general) Lorenz Lowenhielm (o ator Jarl Kulle) que se entrecruza ao de Papin e Philippa. Quatro personagens que, de alguma forma, estão vinculados a Babette.

Inspirado pela presença desse Mozart inesperado (não havia sido tocado por isso da primeira vez que assistira ao filme, há 20 anos), fechamos nosso próximo programa de sarau: o Pedro vai nos trazer algumas montagens do D. Giovanni. Falemos, pois, de paixões, seduação, música e prazer. Que venha o próximo!

Enquanto isso, numa obsessão tardia para saber como é feito o principal prato do festin, consegui encontrar uma receita. Ela foi tirada de um blog francês de onde, apesar de estar disponível, eu transpus para o meu blog para o caso de, por algum motivo, o site original sair do ar. Você vai encontrá-la em uma outra página que criei para conversar sobre Curiosidades da Culinária, "Culinariosidades".


Confira o vídeo com este trecho do filme no site do barítono Jean-Philippe Lafont. Caso não entre (às vezes falha), há uma versão com definição sonora e visual inferiores no Youtube.



O recitativo e o dueto em Babette

Achille Papin e Philippa:
"Vous serez comme une étoile dans ce firmament. Vous serez l’unique
étoile. L’empereur viendra vous entendre. Consolez les pauvres de leur
misère."

Don Giovanni:
Viens qu´une voix t´appelle
Qui chante dans mon coeur
Viens ne sois pas rebèlle
C´est bien la voix du bonheur.

Zelina:
Je tremble mais j´écoute
J´ai peur de ma bonheur
Désir, amour et doute
Combattent dans mon coeur.

Don Giovanni:
Viens, ma beauté que j´adore.
Mazetto m´aime encore!
Je te ferai grande damme.

Zerlina:
Ah! Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.

Don Giovanni:
Viens! Viens! Viens!
Viens, une voix t´appelle.

Zerlina:
Je tremble, mais j´écoute.
Viens, ne sois pas rebelle.
J´ai peur de ma bonheur.

Don Giovanni:
Partons, ma beauté!
J´ai peur de ma bonheur.

Don Giovanni:
Viens, tout mon coeur t´appelle.
Tu seras grande damme.

Don Giovanni e Zerlina:
Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.

Oh, viens! Viens!
Allons!

Don Giovanni e Zerlina:
C´est toi, c´est toi que j´aime.
Ton coeur est mon coeur même. L´amour, nous unira.

Duas interpretações magníficas de Zerlina: Kathleen Battle e Cecilia Bartoli.

Kathleen Battle: Dueto interpretado por Samuel Ramey(Don Giovanni) e Kathleen Battle (Zerlina) com a Wiener Philharmoniker regida por Herbert Von Karajan.


Cecilia Bartoli - mezzo-soprano; Bryn Terfel - baixo-baritone;The London Philharmonic Orchestra; Myung-Whun Chung - regente



Algumas referências sobre o filme:
1) Você encontra aqui uma leve resenha de Rubem Alves sobre o filme.

2) O artigo de Pedro Vicente Costa Sobrinho traz importantes dicas gastronômicas para melhor compreender as referências feitas durante o jantar: o que era o Café Anglais, alguns dos pratos e bebidas etc. O que me chamou a atenção foi o resgate feito por ele do clássico A fisiologia do gosto de Brillat Savarin.




NOTAS:

1 Isak Dinesen (pseudônimo de Karen Dinesen) escreveu, além deste, um outro romance também transformado em filme: o premiado Out of Africa ("Entre dois amores", cuja personagem, com o nome de Karen Blixen, é interpretada por Meryl Streep), que são memórias de sua vida ao longo de 17 anos no Quênia.

2 Stéphane Audran atuou, entre outros filmes, em O discreto charme da burguesia. Foi casada com Claude Chabrol e Jean-Louis Trintignant.

3 Personagens centrais no filme, as irmãs Martina (interpretada pela atriz Birgitte Ferdespiel) e Philippa (a atriz Bodil Kjer), como já indica a abertura da história, recebem seus nomes em homenagem a Martinho Lutero e a seu grande amigo Philipp Melanchthon.

4 Frederikshavn é um município da Dinamarca, localizado na região norte, no condado de Nordjutlândia. Atualmente, o município tem uma área de 180 km² e uma população de 34 416 habitantes, segundo o censo de 2003.

5 São várias as referências ao filme como uma metáfora da Eucaristia. Em minhas divagações internáuticas, encontrei um belo texto extraído de um livro que reflete sobre a presença de "Deus" no cinema (chama-se God in the Movies): no Capítulo 5 (intitulado Babette´s feast of love: Symbols - subtle but patent), seus autores - Albert Bergesen e Andrew Greeley - fazem um belo paralelo entre Babette e Cristo (tomando o autossacrifício por amor, presente nos dois casos, como fio condutor). Em outro texto, uma pequena resenha crítica, Carlos Augusto (sem sobrenome) retoma este paralelo que, apesar de não ter as devidas referências, sintetiza de forma bem objetiva: "O filme é repleto de simbolismos cristãos. O banquete em memória do pastor é uma alusão clara à 'Última Ceia' e, por extensão, à liturgia cristã. Para o mesmo, sentam-se à mesa doze pessoas, representando os doze apóstolos. Babette é claramente uma imagem de Cristo: pobre, ela chega misteriosamente a uma pequena comunidade, trabalha como criada e, no final, presenteia a todos com um lauto banquete. Por outro lado, o prato principal servido por Babette chama-se 'Codorna no Sarcófago': Codorna significando 'maná' (alimento espiritual de origem divina que consola a alma); e Sarcófago, palavra vinda do latim, 'sarcophagus', que significa 'aquele que come carne'. Assim, o prato principal é uma evidente alusão às palavras de Cristo: 'Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come deste pão, viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, para que o mundo tenha vida' (João 6, 51)". [Trecho transcrito do blog "65 Anos de Cinema", mantido por este autor.]

6 Embora portadora da mesma raiz, o termo"festin" em francês é mais apropriadamente traduzido por "banquete" e não literalmente "festa". Mesmo considerando a natural remissão à idéia da comensalidade que existe na palavra comemoração (o "comer" junto), além da aludida referência à "Última Ceia", o banquete guarda a idéia ritualística e o momento do diálogo, sobretudo da maneira como ocorre o filme. E sem mencionar a remissão explícita ao banquete platônico. Por estas razões, parecer-me-ia mais apropriado que o filme se chamasse efetivamente "O banquete de Babette".

7Não consegui obter o nome da real intérprete de Zerlina, posto que é perceptível a dublagem da cena. A voz (e o papel) de Papin é do barítono Jean-Philippe Lafont.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Uma carta, uma experiência.

Por mais racionais que sejamos, muitas vezes somos incapazes de controlar nossa mente quando é arrebatadas por memórias, lembranças de experiências vividas. Ontem, na aula da disciplina que atualmente curso (Tópicos Especiais em Itinerários Intelectuais e Etnografias do Saber) na Unicamp, foi feito um comentário a respeito de um livro, publicado pela esposa do renomado antropólogo Alfred Kroeber (a Sra. Theodora Kroeber), sobre aquele que, à época, foi alardeado pela mídia não somente como "the last of his tribe" (título, aliás do livro da Sra. Kroeber) mas como o último indígena americano que ainda não teria tido contato com a cultura ocidental(1). Os comentários sobre a síntese do livro (cuja tarefa de expor num seminário a ser apresentado daqui a alguns dias acabei assumindo) me fizeram lembrar de uma experiência de campo que me marcou profundamente: a semana que passei entre os Avá-Canoeiros, na divisa dos estados do Tocantins e Goiás, em julho de 2005 quando, a convite do Guilhermo, fui colaborar na reavaliação do convênio FURNAS/FUNAI, referente à Usina Hidrelétrica da Serra da Mesa. Isso aconteceu logo após o meu retorno da viagem que fizera ao Peru e eu ainda estava meio atordoado com a exuberância de tudo o que havia lá vivido (embora tenha sido uma viagem turística - ao Peru).

Lembro-me bem que, na época, o que mais me tocou foram as histórias ouvidas de um dos sobreviventes da etnia Avá-canoeiro, um homem de nome Iawi (aproximadamente de minha idade - veja algumas fotos neste blog). Além das conversas com ele, os relatos da Eliana Granado (uma antropóloga que há anos tem contato com eles) também foram importantes para ajustar alguns pontos (já que o contato meu com esta etnia foi extremamente rápido).

Pois bem, vasculhando meus alfarrábios cibernéticos consegui, felizmente, localizar o e-mail que havia escrito na época e enviei a algumas pessoas e que dava conta, muito rapidamente do que senti a partir dessa experiência. Foram poucas aquelas que realmente perceberam o valor do que havia escrito. É uma carta simples, sem grandes pretensões, dirigida a alguns alunos de graduação (os que, na época, faziam parte da ESPM Social) e a alguns colegas. Até cheguei a pensar em reescrevê-la com outro olhar (um mais técnico e profissonal), mas resolvi publicá-la do jeito que a escrevi, há quatro anos. Depois, quem sabe, eu me anime a incrementar uma análise mais densa sobre a "experiência" e o "être affecté" ("ser afetado"), dois conceitos fortes vinculados ao próprio exercício etnográfico.

Eis o e-mail:

----Mensagem original-----

De: Prof. Fred Enviada em: domingo, 31 de julho de 2005 10:42 Assunto: Volta das férias, troca de experiência.

"Oi amigos, Tudo bem com vocês??????
Voltei das férias e do trabalho que fui fazer em Goiás. Ainda estou meio nocauteado com tudo o que vivi. A viagem ao Peru foi bem turística e, depois da experiência em Goiás, algo que nem vale muito a pena comentar (tomando uma cervejinha num boteco talvez). Mas o que gostaria de escrever é sobre o que vivi como antropólogo. O Trabalho em Goiás foi além das expectativas. Muito forte e uma das maiores lições que já tive na vida. Posso depois, com calma, contar os detalhes do porquê!!!! Mas o que relato a seguir já dá uma idéia. É realmente algo que deixa nossas vidas renovadas e a certeza de que a relativização da importância de nossos dramas e traumas tem um certo limite. Existem dramas humanos que realmente são, indiscutivel-mente, horríveis. Absolutamente - com todo o sentido que esta palavra possa ter - cruéis. E, no entanto, as pessoas que os sofreram, estão, hoje, de pé, tranqüilas, serenas e, o que é mais importante, super felizes. Quando nos encontrarmos e prosearmos, vocês entenderão o porquê dessas minhas palavras. Há alguns meses fui contratado, como membro de uma equipe da Unicamp, pela CPFL de Campinas para fazer um diagnóstico sobre um programa desenvolvido por Furnas e Funai para compensação do impacto sócio-ambiental da construção da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, na divisa de Goiás com Tocantins (região da Chapada dos Veadeiros). Na época dos estudos para impacto da construção da represa (década de 1980) foi constatada a presença de remanescentes de uma etnia até então dada como extinta no século XVIII: um grupo Tupi-Guarani (etnia sobre a qual tenho um bom conhecimento) chamado Avá-Canoeiro. O fato foi bem noticiado pela mídia da época e a Funai iniciou um processo de aproximação através de uma frente de contato com índios isolados e, por volta de 1983 esses índios foram contatados e iniciou-se um programa para preservação de seu território e cultura, o que resultou, em 1992, na assinatura de um programa oficial coordenado por Furnas e Funai. Atualmente, a CPFL de Campinas possui 49% das ações de Furnas e, com a necessidade de renovação desse programa, ela contratou uma equipe da Unicamp para reavaliar o programa. Eu fui convidado para fazer parte por ser especialista nesta etnia. Todo o processo é bem complicado e técnico demais. O que gostaria de dividir com vocês é algo menos profissional e mais pessoal. Em toda a minha vida – especialmente em meu trabalho em comunidades indígenas - eu nunca tive uma experiência tão singela e, ao mesmo tempo, tão forte. A história dos Avá-Canoeiros é testemunha de algo profundamente humano (no pior e no melhor sentido que essa palavra pode ter). Uma etnia inteira, uma cultura, dizimada por um massacre iolento, com requintes de crueldade que em nada difere (e, às vezes ultrapassa) os piores que já lemos ou ouvimos sobre práticas de torturas. Tudo motivado pelo ódio e o desprezo por aqueles que são diferentes (além, claro, da cobiça por suas terras). Desse massacre (ocorrido em 1969) sobraram alguns poucos indivíduos que fugiram numa diáspora pela imensidão do cerrado, então, quase virgem. Hoje, restam quatro, apenas (seis, contando com dois jovens que nasceram depois do contato pacífico com as frentes de atração de índios isolados, na década de 1980). Representantes de uma cultura que até há 20 anos era dada como desaparecida, exterminada. Gente muito linda, de um bom-humor e um carinho que não vi igual em nenhum povo pelo qual passei, nesses meus anos de trabalho como antropólogo. Uma ingenuidade nobre. Quem os conhece hoje, sem saber de sua história - que dá um sentido bem forte e denso à palavra "sofrimento", não consegue imaginar o que essa gente passou. Depois de ver pais, filhos, irmãos, serem esquartejados diante de seus olhos (o único homem adulto desse grupo, hoje com aproximadamente 42 anos, viu a mãe ser violentada por vários homens e depois ser esquartejada e a cabeça empalada como troféu), viver mais de 20 anos fugindo pelos imensos matagais do cerrado, escondendo-se em cavernas durante o dia, saindo apenas à noite, para caçar e se alimentar.... abortando eventuais filhos que eram concebidos porque as crianças atrapalhavam a fuga (além de seu choro poder denunciar sua presença ao inimigos sempre presentes naqueles matos).E quem são esses inimigos????? Vou usar as palavras do Iawi (este homem do qual falei acima) para um cinegrafista de Goiânia, que fez um documentário sobre eles há alguns anos. O cinegrafista peguntou-lhe: "Mas quem matou sua mãe? Quem atacou o seu povo?". Iawi, tranqüilo, respondeu: "Foi você!!!" Como quem acusa: "Seu mundo, sua sociedade!!!". Essa imagem forte ficou registrada no documentário premiado da Antropóloga Eliana Granado que atualmente trabalha em Furnas e participou da frente de contato com esse grupo, há cerca de 20 anos. Pois é.... essa sociedade, da qual nós tanto nos orgulhamos. Esse mesmo Iawi hoje é um super bem-humorado pai de dois adolescentes lindos (um menino de 18 e uma menina de 16 anos). Futuro???? Bom, para quem tem um passado assim e tem o presente com a qualidade de vida que têm (e isso hoje graças também a essa positiva intervenção do consórcio Furnas/Funai que, com todas as falhas tem conseguido fazer um bom trabalho), não é algo que eu, particularmente, considere tão importante.
Além dos Avá, foi um privilégio ter podido conviver com Eliana, nesse trabalho de campo. E eu fiquei me perguntando todo o tempo: como é que essa gente pode, depois de tudo o que sofreu, ter tanto bom-humor, nos tratar com tanto carinho, como nos trataram?????? Para nós, narcisistas ocidentais, que achamos que nossos problemas são sempre os maiores e mais importantes, é difícil entender. Mas,.... é possível que Rousseau tenha razão. Talvez haja, realmente, algo de bom que seja naturalmente humano. Os Avá hoje vivem um presente bem tranqüilo. Voltamos ontem mato (como se diz no jargão indigenista). Ainda está tudo muito forte - talvez mais do que em nossas mentes, em nossos sentimentos. Enfim..... o que vivi é algo que essas minhas palavras não conseguem expressar nem que fosse possível colocar nelas todo o sentido que eu pretendesse dar. Utilizo-as apenas como uma catarse. Uma forma de dividir com vocês ao mesmo tempo uma indignação, por ser membro de uma cultura tão violenta e, em muitos aspectos, desprezível, mas também uma esperança, por poder fazer parte de uma humanidade capaz de produzir tanta dignidade. Como disse, ainda estou meio nocauteado com tudo. E excitado também. Pensei até na possibilidade de trazer esse caso prá ESPM, como um debate, uma vez que também envolve uma grande empresa (agora, na verdade, duas) e o Estado. Podemos ver isso mais à frente, se considerarem a idéia boa. Deixem-me assentar um pouco mais as idéias. O Eduardo e eu ainda temos o seminário sobre Sartre prá poder organizar. Abração a todos pessoal. obrigado pela paciência de terem lido o email. Até mais.
Fred"


(1) Kroeber, Theodora. Ishi. Last of his tribe. New York. Bantam Books. 1964. Sobre a personagem histórica Ishi, há vários escritos, mas uma boa síntese pode ser encontrada no verbete "Ishi" na Wiki (sobretudo pelas referências de alguns artigos e escritos sobre ele que são feitas no final do verbete). Outro ponto importante mencionado por Suely Kofes é a referência a este personagem feita por Lévi-Strauss nos Tristes Trópicos. Li este livro há muitos anos e não me recordo. Tentarei retomá-lo para localizar esta referência.

sábado, 16 de maio de 2009

Os Fins, os meios e os fins

Uma reflexão sobre Ética e Trabalho1


O universo do trabalho apresenta, em meio a tantas e instigantes contradições, um aspecto bastante interessante: a dificuldade que muitas pessoas encontra em conciliar sua vida profissional com um projeto mais amplo de realização pessoal. Minha idéia é apresentar, neste pequeno ensaio aberto à saudável prática do livre-pensar, alguns pontos para uma reflexão sobre aspectos éticos vividos no mundo do trabalho como forma de contribuição aos estudantes universitários que se preparam para um mercado cada vez mais exigente e complexo, visando chamar sua atenção para este que considero um dos principais problemas no que diz respeito ao comprometimento das pessoas com a atividade que executam.


Antes de prosseguirmos, no entanto, um esclarecimento conceitual é importante. O termo Ética, por ser de uso freqüente no senso comum, está sujeito a imprecisões e incorreções quando se pretende torná-lo um jargão específico, como é o caso aqui. Sobre sua definição, qualquer compêndio introdutório ao tema, vai considerá-lo, principalmente, segundo duas perspectivas clássicas, a saber:


1) Uma primeira abordagem é a da Ética considerada como sendo “o conjunto de regras, princípios ou maneiras de pensar que orientam – ou pretendem certa autoridade para orientar – as ações de um grupo particular”.2

2) Uma segunda, é a de considerar a Ética como um estudo sistemático sobre os princípios morais que regem um determinado sistema de atitudes e condutas. Em outras palavras, uma reflexão sobre “como nós devemos viver; o que faz com que uma ação seja correta e não errada; sobre quais deveriam ser os nossos objetivos...”.3
Nesse sentido, ela adquire um caráter de ciência que foi tratado, ao longo da história da Filosofia, segundo duas concepções fundamentais:

  1. a) a primeira é aquela que considera a Ética tanto como a ciência do fim último (perspectiva teleológica) para o qual a conduta dos homens deve ser orientada, quanto a que estuda os meios (fins imediatos) para atingir esse fim. Aqui a relação entre os meios utilizados para se chegar a determinado fim é deduzida da própria natureza humana;
  2. b) a segunda é aquela que, diversamente da primeira, considera a Ética como a ciência do móvel da conduta humana, ou seja, aquilo que não é determinado pela sua essência, estando portanto, na esfera do contingente. Aqui estão em jogo os motivos ou as causas da conduta humana ou das “forças” (internas ou externas) que a determinam.


Em um outro trabalho, propus uma terceira forma de abordagem (que na verdade é uma extensão da primeira). Isso possibilitaria que fossem ampliadas algumas das perspectivas das questões postas quando se pretende discutir o tema com relação ao universo do trabalho: a da Ética tomada como um sistema de normas e condutas para se atingir um fim específico e idealizado, pautadas em valores que derivam da esfera cultural na qual está inserido o indivíduo e/ou o grupo considerado. Neste sentido, o sistema cultural deve ser tratado como a base que fornece o parâmetro para a definição dos juízos a serem formulados em uma avaliação Ética das condutas de uma forma geral. Esse procedimento é decisivo para uma efetiva tomada de decisões em qualquer processo de escolha, bem como na responsabilização por atitudes. Em contrapartida, os indivíduos – substratos para a existência do sistema cultural – são considerados unidades autônomas, detentoras de vontades, desejos e valores próprios e que, para seu perfeito exercício, precisam conhecê-la da maneira mais consistente possível.


Gosto de pensar no fato de que uma reflexão sobre Ética deve necessariamente comportar uma dimensão utópica. Esta perspectiva nos leva a falar sobre coisas que poderiam ser diferentes de como são; daqueles valores considerados como sendo ideais e que, embora cultuados, muitas vezes estão distantes da realidade vivida pelas pessoas; da concepção idealizada sobre o Bem, a Justiça, a Felicidade; sobre o fim último das ações humanas. Afinal, como definiam os primeiros filósofos da Grécia Clássica, criadores da Ética como uma área sistemática de estudo, o grande objetivo dos “homens de bem” deve ser, em última instância, a busca do bem-estar, da boa-convivência coletiva, em suma, da felicidade a qual todos estão destinados mas que só pode, e deve, ser alcançada na realização plena de uma sociedade justa. Para que isso fosse possível o ser humano deveria ordenar seus desejos e paixões individuais, buscando educá-las, por meio do exercício de uma racionalidade universal. A esse exercício, os gregos chamavam de construção de uma “estética da existência”, mais apropriadamente, uma Ética. Para esses filósofos, falar de Ética, portanto, é falar sobre um estilo de vida, um modo de existência pautado por um princípio primordial: a busca verdadeira da felicidade que implicava, não só em uma realização pessoal, mas principalmente, da realização do indivíduo enquanto inserido em um grupo.
Para alguns dos principais filósofos helênicos – e aqui evoco prioritariamente Epicuro – a fim de que isso fosse possível, deveria ser bastante nítida a necessidade de se estabelecer uma diferença entre os fins últimos das ações humanas e alguns fins mais imediatos (condição para se atingir aqueles), os quais freqüentemente confundimos com os primeiros. E mais, para que se saiba distinguir com mais rigor uns dos outros, é preciso que os homens sejam livres, o que na visão epicurista implicava em saber discernir, entre os desejos que temos, quais são realmente nossos e quais nos foram incutidos de fora, mas que passamos a assumir como nossos. Não que esses últimos não possam existir em nós, mas somente seremos livres se soubermos as reais razões que nos levam a tomar esta ou aquela decisão, o que implica, em última instância, em saber quais os reais motores que impulsionam nossas escolhas.


Tal dimensão utópica resguarda um quê de poesia e lirismo, sem os quais a vida humana estaria fadada à esterilidade típica de uma mediocridade a qual nosso mesquinho cotidiano tenta nos impingir. Aliar prazer e labor parece, à maioria dos comuns mortais, uma fantasia quase inacessível. O que, convenhamos, não é um fenômeno raro em um mundo absurdamente superficial.


No que diz respeito ao processo de escolha de uma carreira profissional, ao longo de minha experiência docente, vejo, com grande preocupação, um certo esvaziamento da capacidade que a maioria de meus alunos tem demonstrado em assumir um vínculo entre a carreira que escolhem e sua própria realização pessoal. Como se houvesse um fosso entre suas vidas e o trabalho que realizam. Ou como se este último fosse algo apartado daquela, que acaba por se transformar em uma realidade árdua e dolorosa que deve ser assumida como a parcela de sacrifício que se deve fazer para (sobre)viver.
Resgatar esse vínculo é, a meu ver, fundamental caso haja uma preocupação mínima com algum bem-estar que seja mais consistente na vida dessas pessoas, isso para não falar em realização pessoal e felicidade de uma maneira mais ampla e verdadeira. O resultado desse processo é que, com muita freqüência, o mundo do trabalho é repleto de pessoas que, se não são propriamente infelizes, não se sentem minimamente realizadas em uma parcela crucial e vital para sua existência. Pessoas que, quando não são amargas, são completamente apáticas e indiferentes no seu universo de trabalho.


Considerado a partir de uma perspectiva bem simplória, porém contundente, o problema assume proporções ainda mais dramáticas se pensarmos que boa parte de nossa existência consciente (pelo menos 50%) é gasto em função do nosso vínculo com o trabalho. Sobre esse fenômeno cada vez mais comum, um dos aspectos importantes que, penso, deve ser considerado, é o grande estresse que as pessoas sofrem ao “escolher” um trabalho, ou mais apropriadamente, uma carreira. Essa pressão pode ser manifesta de múltiplas maneiras (muitas vezes simultâneas): exigências e dificuldades de mercado; pressões familiares (afirmativas – “Gostaria muito que meu filho fosse um grande Xlx!” – ou negativas – “Tal carreira não dá camisa a ninguém!”); influência de modismos etc. Outro tópico relevante diz respeito aos limites e às reais condições e oportunidades que as pessoas têm para concretizar suas convicções profissionais (principalmente nos raros casos em que ela ocorre). Finalmente, porém não menos importante, a falta de uma boa formação fundamental, limita o próprio processo de escolha. Tudo isso sem mencionar o fato de que em geral não se sabe filtrar o que é, de fato, o desejo real do indivíduo, e o que é um desejo que brota de sua relação com o mundo em que vive.


Para pensarmos de fato em uma ética mais apropriada ao exercício do trabalho das pessoas, proponho que façamos duas distinções importantes: a primeira delas é aquela entre fins imediatos e fins últimos nos processos de escolha; a segunda, intimamente vinculada à primeira, entre uma concepção de trabalho e uma outra, a de profissão.
Com respeito à primeira distinção, é fundamental que as pessoas se questionem sobre seus reais desejos e projetos para sua vida como um todo, o que, fatalmente as levaria a estabelecer uma separação do que se quer como perspectiva de vida (fins últimos) e quais são os degraus que é preciso galgar para se chegar lá (fins imediatos). Na sala de aula, como exemplo, costumo lançar a seguinte questão: “Por que trabalhamos?”, e a resposta incontinenti (com suas devidas variações) é: “Para ganharmos dinheiro!”. Ora, isso revela uma total ausência de uma perspectiva mais aprofundada da visão que as pessoas têm do seu próprio trabalho. A preocupação com o bem-estar material, revelada pela idéia de “ganhar dinheiro”, engloba totalmente o que deveria ser a principal preocupação (no sentido de que é a mais densa e está no fundamento da busca pelo dinheiro) que é o bem-estar e a felicidade dessas pessoas. Afinal, para quê queremos ganhar dinheiro? Ao invés desta pergunta, quando interpelados sobre esse fato da superficialidade, os alunos praticamente a invertem: “Mas como seremos felizes se não tivermos dinheiro?” . Essa lógica rasa, inversa e imediatista impera com uma assombrosa força nos vários ambientes de trabalho nos quais já investiguei e freqüentemente é trazida para o universo da sala de aula, muitas vezes sob a forma de angústias, insatisfações e amargura com relação ao ambiente de trabalho.


O segundo aspecto da questão é o que diz respeito à baixa consciência profissional que é comum nos vários ambientes de trabalho. Nas minhas enquetes, foram muito poucas as pessoas que se referiram a si próprias como “profissionais”, ao passo que a maioria se identificava como “trabalhadoras”. A questão que nos interessa aqui é que, ao construírem a categoria “profissionais”, as pessoas demonstravam uma maior consciência do vínculo que deveria ser estabelecido entre o trabalho que desenvolviam e a sua própria perspectiva de vida, o que já não ocorria quando as pessoas se identificavam como “trabalhadoras”, o que implicava em uma visão que estavam realizando uma tarefa para a qual qualquer pessoa poderia ser designada e, mais, hoje faziam aquilo, mas amanhã poderiam estar fazendo uma outra coisa qualquer.


A ética, portanto, tomada no sentido considerado no princípio deste texto, pode ser um instrumento importantíssimo para se pensar esse tipo de questão, auxiliando as pessoas a agirem de forma mais consciente, proporcionando-lhes um instrumental para que, ao escolher uma carreira, escolham e definam um estilo de vida bem condizente com seus desejos mais íntimos.


1 Este ensaio foi originalmente escrito em 1999 e publicado na Revista Interna da Faculdade Paulistana de Ciências e Letras. Está passando por um processo de revisão e alteração de alguns pontos.

2 Singer, Peter (ed.). 1994. A Companion to Ethics. Blackwell. Oxford. p.4

3 Singer, Peter (ed.). idem. p.3

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Um poema, uma janela

Em um dia extremamente agitado como foi o de hoje, receber um poema de presente é um privilégio que não tem qualificativo. Provocar pensamentos, sensações... viagem solta do imaginário. O mais gostoso de tudo: poder sentir a verdade contida em suas palavras. Sem clichês ou lugares-comuns, deixo-o aqui, registrado para quando dele sentir saudade e quiser reviver.




A Arte de Ser Feliz
(Cecília Meireles)

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio,
ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem,
para as gotas de água que caíam de seus dedos magros
e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Às vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela,
uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente,
que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


sexta-feira, 8 de maio de 2009

Sobre conflitos, zoocídio e a imprensa.

É no mínimo curiosa a aparente incapacidade do ser humano de superar a idéia da competição a que me referi em outro artigo aqui neste blog ("Sobre egos e álteres"). Essa sensação de que é necessário (como se uma força "natural" estivesse a nos impulsionar), a todo tempo, provar-se melhor que o outro. É claro que não me refiro à competição saudável, disputa estimulante, aquela comparação que faz com que sejamos impulsionados rumo a um melhor desempenho em nossas próprias concepções. Certamente sou pouco original em afirmar isso, mas a melhor metáfora já inventada para a ela se referir é a do esporte: canalizar a energia competitiva numa arena saudável e construtiva (pelo menos em princípio e tese). No esporte, principalmente quando se trata do esporte não profissional, somos levados a tomarmo-nos como referência para que possamos ir sempre além de nós mesmos. Vencer o outro é um estímulo para que possamos ultrapassar nossos próprios limites, crescendo sempre, na proporção em que investimos em nossa atuação. Ousaria afirmar que vencer o outro é quase uma consequência da superação deste próprio limite.

Em outro lugar já refleti sobre um contraponto entre esta metáfora e a da guerra para falar da competição. Metáforas, aliás, nada originais, bem sei (como já dito). Mas que importa, se elas possuem o vigor das coisas óbvias?

Esta semana começou, pelo menos para mim, com uma imagem - que para mim foi bem forte - veiculada nos noticiários televisivos. Diante da determinação do governo egípcio de exterminar o rebanho porcino em seu território - rebanho este de proporções pequenas, posto que só o possui a minoria cristã, os Coptas(1) - teve início um confronto entre policiais (supostamente alegando a manutenção da ordem e o cumprimento da "lei") e grupos de critãos e muçulmanos.

Não quero aqui me ater às filigranas das muitas discussões que o caso suscita e que remontam aos clássicos pontos das teorias antropológicas a respeito da identidade étnica, ao etnocentrismo e à intolerância à diferença com relação a um "outro" contra quem se insiste em se autoafirmar (voltamos ao tema da competição - a minha afirmação tange, de alguma forma, a "destruição" - física ou metafórica - desse "outro"). A imagem exibida era a de um tumulto e, de repente, no meio dele, uma cena curiosa: um rapaz saca de dentro de um carro, cujo vidro dianteiro havia sido quebrado na confusão, pendurado no retrovisor, um pequeno crucifixo e o exibe para a câmera de um jornalista que estava diante dele. Não conseguia ouvir o que ele bradava por conta da intervenção da narrativa da notícia (mas tampouco iria adiantar se tivesse ouvido, posto que não compreendo o árabe). No entanto isso não era necessário. A imagem falava por si só: seu rosto era suficientemente eloquente na expressão de um misto de fúria, indignação e protesto. Contra quê? Certamente não contra a literal matança dos porquinhos. Esta, na verdade, se constituía como mais um combustível na já longa e infindável história de conflitos étnico-religiosos do Egito. O que conseguia ver naquela cena era um protesto contra a intolerência, contra o ódio. Independentemente do que ele poderia estar a dizer, confesso que gostaria de ter ouvido "Deixem-nos em paz! Queremos respeito pela nossa fé!"

Essa imagem me arrebatou o pensamento com tal intensidade que acabei me desconcentrando e perdendo o restante do noticiário. Tampouco o telejornal que a transmitiu lhe deu qualquer importância (fora o fato de a ter escolhido para a transmissão, mas que se perdeu, em meio a tantas outras - mas não para mim), na medida em que, para o cardápio quase sempre insosso dos noticiários, falar da "nova gripe" era mais importante do que entrar no debate de como esses elementos (gripe e porcos) acabaram por conferir um novo combustível à intolerância étnica. No caso, da maioria muçulmana contra a minoria copta. Mas poderia falar aqui um outro tanto sobre a questão mexicana.

Voltemos aos porquinhos. De repente, os supostos algozes dessa nova atrocidade, como se já não tivessem sofrido estigma de sujidade suficiente ao longo de boa parte da história humana (pelo menos na parte do planeta mais influenciada pela tradição hebraica no seu sentido lato - não nos esqueçamos que, apesar de todos os conflitos de que somos testemunhas, também a tradição islâmica, e não somente a cristã, está visceralmente vinculada à religião dos antigos hebreus), estavam agora em meio a um turbilhão de ódio e intolerância étnicos. Por alimentar o estômago de alguns, os porcos também servem para alimentar o ódio de outros. Parece que, mesmo indiretamente, tentam nos afirmar: "Os porcos são os culpados do conflito, não a intolerância e o ódio humanos".

É óbvio o fato de que os porcos não são o problema. Muito menos para a tal gripe. Pelo menos não para a OMS que faz questão de assim afirmar insistentemente, a despeito da deplorável postura de muitos veículos de comunicação (principalmente os televisivos). Muitos deles, ao mesmo tempo em que noticiam a orientação da OMS de não mais se referir ao novo flagelo com o zoônimo "suíno" (não só pelo motivo de impedir o zoocídio generalizado e completamente desnecessário desses pobres seres) têm nos seus âncoras - pelo menos nas principais emissoras brasileiras(2) - a insistência em repetir, de modo profuso e contundente, o qualificativo para aquilo que alguns dos seus próprios jornalistas, ao dar a notícia, chamam de "nova gripe". Já faz mais de uma semana que saiu a orientação da OMS, fato este acintosamente obliterado pela mídia em geral.

A questão não é somente a de salvar os porquinhos ou mesmo a sua reputação dissociando-os do vírus. Eles já estão fisicamente condenados uma vez que são criados como pasto da ânsia alimentar humana. Nem tampouco a de se adotar uma doutrinária militância anti-etnocêntrica tout court. Mas é a da responsabilidade de se adotar uma postura coerente em que, ao mesmo tempo dê conta da notícia, da informação, seja ética e responsável na formação da opinião de um senso comum que, certamente, ocorrerá.




(1)
Transcrevo aqui uma informação que considerei útil ao leitor, retirada do site de uma editora católica cujo endereço se encontra abaixo: "Os Coptas são os cristãos do Egito, que no século V adotaram o monofisismo condenado pelo Concílio de Calcedônia (451). No século XVI uma parte da população copta reuniu-se à Igreja Católica, reconhecendo o primado de Pedro. Os dissidentes já não professam a heresia que lhes ocasionou a origem. Estenderam sua pregação até a Etiópia, onde também existem comunidades coptas.A palavra copta deriva-se do árabe Qoubt, que é a deformação do grego Aigyptioi. Designa as habitantes do Egito anteriores à invasão árabe (século VIII) aderiram ao Evangelho no início da era cristã, mas no século V abraçaram a heresia monofisita, que o Concílio de Calcedônia (451) condenara. Formaram assim a Comunhão Egípcia Copta com ramificações na Etiópia (Abissínia). A partir do século XVI muitos dos dissidentes se uniram à Sé de Pedro em Roma de modo que há atualmente coptas separados da Igreja Católica e outros (em menor número e somente no Egito) unidos à Santa Sé."
Fonte: Editora Cleofas

(2) Estou me referindo especificamente aos telejornais da TV Globo (aberta e Globonews) e ao Jornal da Band que são os que assisto com mais frequência. Nos jornais impressos e na internet esta questão é menos frequente.

Palavras Iniciais

Olá,

Bem vindo a um espaço que, antes de mais nada, é despretensioso. Ou melhor, se há alguma pretensão é a de exercitar a arte da escrita, refletindo livremente sobre fatos, idéias, cinema, filosofia enfim, tudo o que valer a pena pensar.

Como se não bastasse a exigência da profissão, eu mesmo me impus a necessidade de registrar meus pensamentos os quais, reconheço, considero valiosos pela única e exclusiva razão de serem meus, de representarem meu ponto de vista sobre as coisas. Nada mais. É, pois, nesse exato sentido que me refiro à ausência de pretensão. Quero apenas falar. Falar livremente. E se o transeunte cibernético que por aqui se aventurar sentir que vale a pena iniciar um diálogo a respeito das idéias apresentadas (as quais, já adianto, não serão tão aprofundadas), vou sentir que terá alguma utilidade para além da minha própria extravasão.

Apesar de relativamente antigo, eu me esqueci completamente da criação deste espaço. Nele havia deixado, oculto, um único texto que resolvi publicar mesmo estando inacabado. A ele retorno com o propósito de alimentá-lo com mais frequência, o que para mim será extremamente benéfico, inclusive do ponto de vista pessoal. Vou aproveitar para registrar outros escritos, feitos em outras épocas - pré-internáuticas ainda - que certamente revelarão um outro Fred (principalmente para aqueles que já me conhecem).

Espero que o leitor que por aqui passar possa encontrar alguns pontos sobre os quais pensar. E, se sua generosidade permitir, deixar a contribuição de suas opiniões e seus pensamentos a respeito do que encontrar registrado para, inclusive, provocar minha contrarreflexão.

Boa leitura e obrigado pela visita.
Fred

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