segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Porque somos racistas: o Direito e a Sociedade no combate à construção da violência simbólica


Mais uma vez o futebol brasileiro é arena para cenas de manifestações racistas por parte do público e o fato reacende um debate sobre o fenômeno em um país que, equivocadamente, parece se conceber como palco da fantasia da "democracia racial". Somente em 2014, foram cerca de 12 casos registrados por injúria racial, de acordo com levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo(1). O último, ainda repercutindo na mídia e na esfera jurídica, envolveu a torcida do Grêmio que ofendeu visivelmente (os fatos foram registrados por câmeras em vários ângulos) o goleiro Aranha do Santos, numa partida no dia 28/08/14. 

Em alguns outros momentos,(2) procurei refletir sobre o fenômeno do racismo e suas relações com aspectos diversos da sociedade. Por que somos racistas? o que significa o racismo? quais os seus fundamentos? Que implicações este fenômeno traz para a democracia? Aqui neste texto, procurei sintetizar um pequeno guia do que as principais leis brasileiras falam sobre o tema. O que o nosso sistema jurídico nos fala sobre o tema e que relações isso guarda com a construção da verdadeira democracia? Quero deixar claro que falo do lugar das Ciências Sociais, não do lugar do Direito. 

Somos uma nação multiétnica. E multirracial (em que pese a grande polêmica sobre o que seja o conceito de raça). Tem sido alvo de muita discussão o fato de que, a despeito disso, nós sejamos um país que oculta os conflitos derivados desta formação. É como se, entre nós, tivéssemos digerido bem aquelas ideias muito fortes até a primeira metade do século, de que fomos construídos a partir da fusão de povos constituídos por raças degeneradas, principalmente aqueles de origem africana. Nossa cara negra (mais até do que a indígena) nunca foi muito bem vista por nós. Além de degenerados, os negros em nossa formação sempre foram identificados com a ideia de subdesenvolvimento, de inferioridade, de brutalidade. Uma cara que nunca gostamos e que escurece nossas pretensões de termos uma origem exclusivamente europeia, sempre presente no imaginário brasileiro. Parece que, de uma certa forma, a política novecentista de branqueamento da população brasileira teria funcionado. Diluímos não só a pigmentação da pele, mas a tensão no espírito. A esse respeito, a literatura em Ciências Sociais está repleta de reflexões. E, ainda que dissimuladas e ocultas, as tensões se proliferaram em formas (às vezes nem tão dissimuladas assim) de discriminação e violência (física e simbólica). No entanto, fingimos que nada disso acontece e que isso não é um problema. Afinal, não praticamos a caracterizada segregação como os norteamericanos ou o Apartheid da África do Sul - porque isso sim seria racismo. Nossas práticas não.  Muito se pode pensar - e se tem pensado - a partir desta constatação. 

Entre tantos outros aspectos é sempre importante ressaltar que, no caso brasileiro, nós temos um edifício jurídico que desde a metade do século passado prevê a figura do racismo e da injúria racial, o que tem trazido importantes resultados para o combate desta forma brutal de violência. 

A primeira lei a reconhecer o fenômeno foi a Lei nº 1.390/1951, conhecida como Afonso Arinos, por ter sido proposta pelo jurista Afonso Arinos de Melo e Franco, que inclui entre as contravenções penais todos atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Apesar de ser considerado um significativa avanço no combate às formas de discriminação resultantes de práticas racistas (na medida em que é um seu primeiro reconhecimento oficial), esta lei sempre foi muito criticada por não prever a efetividade das punições, além de abrandar o racismo sob forma de "contravenção" e não crime efetivo. Ela, na prática, acabou entrando em desuso, sendo raramente acionada. Mas isso não apagou o brilho de sua importância aqui reiterada: pela primeira vez a legislação brasileira reconhece a existência desse fenômeno social e cria um mecanismo para combatê-lo. 

É preciso entender a elaboração desta lei no quadro das discussões internacionais sobre o racismo a partir das consequências bastante conhecidas da Segunda Guerra Mundial neste campo. Assim, fomos forçados a assumir este problema, impelidos por importantes documentos do qual o Brasil é  signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e também o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966)(3) assim como a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (conhecida como Conferência de Durban - 2001).

Lentamente, a figura do racismo foi se consolidando em nossas leis. Em 1967, ela não somente permaneceu, como foi endossada pela Constituição em pleno estado militar. 

Mas foi somente a partir da Constituição de 1988, com a valorização das contribuições das etnias indígenas e africanas (inclusive com reconhecimento de direitos importantes a povos indígenas e quilombolas especificamente) que o corpo jurídico brasileiro encontrou mais sustentação para avançar no combate ao racismo. 

Assim, com o importante suporte constitucional, foi sancionada a Lei nº 7.716/1989 (conhecida como Lei Caó, apelido do deputado proponente - Carlos Alberto de Oliveira). Considerado um dos mais expressivos avanços no combate ao racismo, esta lei o coloca não mais como uma simples contravenção, mas como um crime e, com isso, endurece no estabelecimento de suas punições. É importante sempre lembrar que formas de preconceito, discriminação e outras ações violentas não ocorrem apenas por questões raciais. Por este motivo, algumas alterações à Lei Caó se fizeram necessárias para que fossem contempladas as outras manifestações do fenômeno como problemas relativos à discriminação por idade, sexo e gênero, religião, etnia etc. inclusive já contemplando o espaço virtual da internet. Uma das últimas ações nesse sentido, foi a criação do Estatuto da Igualdade Racial (2010), e a Lei de Cotas (2012). 

Retomando o ponto inicial do texto - o do resgate da valorização da contribuição das culturas africanas na formação do Brasil - Apesar de não diretamente ligada ao racismo, gostaria de finalizar mencionando uma importante iniciativa jurídica que, na minha opinião, é de uma expressividade simbólica sui generis. Ao assumir a presidência da república em 2003, o primeiro decreto assinado pelo então presidente Lula (a lei 10.639, de 09 de janeiro daquele ano) vai alterar a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", incluindo a simbólica data de 20 de novembro (eleita pelos movimentos sociais de autoafirmação da cultura afro-brasileira) no calendário escolar. Pela primeira vez na história do Brasil, pelo menos no nível oficial e jurídico, elevamos a contribuição africana na nossa formação a um patamar que a iguala à contribuição dos povos europeus. Isso, claro, é um instrumento importante no combate ao racismo, uma vez que expressa a valorização desta herança: somos africanos também; não apenas europeus. Nesta linha de ações, também é significativa a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade (a SEPPIR) que vem promovendo esforços nos dois sentidos: valorizar as culturas afro-brasileiras e combater o racismo. 

Valorizar, de um lado, a contribuição africana e, do outro, tratar como crime o problema do racismo (e todas as outras formas de preconceito e discriminação) são mecanismos importantes para o combate do fenômeno. Como em outras esferas do comportamento social, está claro que o Direito desempenha um papel fundamental na construção de um comportamento cultural pois, como sabemos, não somente expressa mas pode gerar valores. Aqui, no caso, o valor do respeito: ainda que eu não queira, sou obrigado por lei a fazê-lo. E isso é extremamente importante na construção de uma democracia verdadeira na medida em que as pessoas são levadas a conviver com as diferenças não apenas de forma passiva (obedeço à lei porque sou obrigado), mas de forma extremamente ativa por meio de uma postura espontânea de respeito (por incorporação, ao longo de algumas gerações, desta obrigatoriedade como um valor, fazendo com que deixe de ser obrigação).  E isso é um valor que se constroi com o tempo. Para isso, sabemos todos, é preciso não apenas a existência da lei, mas a sua efetiva aplicação. E uma discussão de toda a sociedade.

Enquanto casos como o do goleiro Aranha não forem efetivamente punidos e amplamente discutidos, continuaremos a testemunhar episódios lamentáveis de racismo não somente no futebol, mas em todos os campos da sociedade.

Reconhecer a existência do fenômeno, caracterizá-lo de forma jurídica dando-lhe uma materialidade sob a forma de punições concretas, parece-me uma boa forma de acabar com ele. 



NOTAS:

(1) Confira a matéria no portal Folha de São Paulo: Futebol brasileiro já tem 12 denúncias de racismo em 2014








4 comentários:

  1. Adolfo Santos Turbay (via Facebook): Gosto de ler suas ideias. Gosto de suas posições (acadêmicas) por certos assuntos. Não quero polemizar, apenas tentando entender. Racismo? De quem para quem? No caso do Aranha eu vi a manifestação pura e nua e crua de uma torcida, que vai à campo extravasar sua raiva, medo, desespero, ansiedade e... Usa dos palavrões para se expressarem. Xingar o juiz de ladrão o faz ladrão? De filho da puta, o faz filho dela? De viado... Expressar seus medos e sua repressão social, é racismo? Não via assim. Então quando a torcida gritar para um branco (branquelo, litro de leite, macaco albino) ela também é racista? Ou o termo racista só cabe ao preto? Não conheço bem esta área do pensamento e do comportamento humano (não discutindo aqui o Direito ou a questão Social), mas o comportamento em si, de cada ser humano. Respeito, amor, fraternidade, ser igual em qualquer raça, isto é uma construção individual, única e de cunho personalístico. Conheço famílias em que muitos são racistas e alguns nem dão bola para isso, e na verdade, nem pensam nisso. Você escreveu: [...] Aqui, no caso, o valor do respeito: ainda que eu não queira, sou obrigado por lei a fazê-lo. [...] penso (talvez esteja errado), que enquanto o processo for determinado por lei, nunca chegará a lugar nenhum. Acredito que o processo deva vir de dentro, da pessoa, de sua maneira de ver a vida e as pessoas que vivem na Terra. Briga comigo não. Li seu texto. Gostei. Mas enquanto eu lia, essas coisas que escrevi vinham na minha cabeça. Para mim é difícil entender e perceber o Racismo (e que ele exista). Daqui a pouco vamos ter que torcer gritando: Goleiro lindo, eu amo você, você é maravilhoso, está fechando o gol e meu time não consegue fazer gols em você. maravilhosoooooooo! Sei lá. Acho que as pessoas deveriam se valorizar. Olhar-se e se ver como seres humanos e não como um subproduto da vida, por ser preto, branco, amarelo, vermelho, baixo, gordo, magro, alto...

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  2. RESPOSTA via Facebook:
    Caro Adolfo Santos Turbay, muitas de suas dúvidas são as mesmas dos meus alunos e daria um curso, heheehehe... E olha que eu nem abordei a polêmica de que alguns torcedores flagrados insultando o Aranha eram também negros. Isso daria outra discussão muito boa.

    Como disse no texto, muito se tem discutido nas Ciências Sociais e suas dúvidas me evidenciam algo que venho falando há tempos: os cientistas sociais, muitas vezes, dialogam entre si, numa postura autofágica. Os debates ficam herméticos. De uns anos pra cá isso tem mudado com dois fenômenos: aumentou a participação de cientistas sociais e filósofos como comentaristas nos meios de comunicação e espaços como blogs e mídias sociais têm ajudado a difundir e debater algumas ideias.

    Só para tentar ser sintético:

    1) Você não pode menosprezar o fato de que as palavras não são isentas de carga semântica conferida por uma história de dominação e violência. Assim, "Black Power" significa resistência à opressão enquanto "White Power" remete ao nazismo, chacina, ódio, violência e opressão. Não dá pra igualar as duas, a não ser que você tenha a tendência de construir, ainda que inconscientemente um discurso neonazi e vai costurar significados desprovidos de sustentação histórica. "Branco Azedo" não remete, nem de longe ao mesmo peso político e histórico de "Negro Fedido".

    2) Em todo o mundo (os exemplos que citei são apenas alguns) há leis e documentos prevendo isso.

    3) Quanto à questão do direito, convido-o a reler o trecho completo. Sempre que se trata de mudança cultural, a lei tem um papel importante de te "obrigar" a se comportar como o previsto. Ao longo do tempo, esta obrigação passa a se incorporar como um valor se for coerente, porque se não for, muda rapidamente. É um processo cultural natural. Este é o diálogo entre ética, costumes e direito.

    Enfim, daria para ir longe nesta discussão. Ela é, de fato, infindável. Mas, uma coisa é certa (e é este o foco do texto): a lei está aí, prevê punições e isso as pessoas não podem ignorar, ainda que discordem. Façam o debate e proponham alterações e melhorias. Isso é saudável para a democracia. Mas ignorar a lei sob a capa de "brincadeira" não é algo bom a ser feito.

    Super abraço e, mais uma vez, agradeço muito suas leituras e seus comentários. Fazem-me pensar sempre.

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  3. Adolfo Santos Turbay, via Facebook: Adoro te cutucar, pois sempre sai muito mais coisas... Agora sim, seu texto se encaixou. Perfeito. Obrigado! Vale à pena, às vezes, cutucar a onça (ou o leão) com vara curta... rsrsrsrs

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  4. Denise Fabretti (via Facebook) -
    Oi Fred: Está muito bom. O grande problema é a demora nos tramites judiciais: o médico que xingou a funcionaria em de um cinema em brasilia em 2012 só foi sentenciado agora mas vai recorrer. Essa demora vem de outros princípios de direito: todo indivíduo é inocente até prova em contrário, esse é um prinipio de direito:direito ampla defesa,ao duplo grau de jurisdição, etc. Está ótimo. Bjs.

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Olá,

Bem vindo a um espaço que, antes de mais nada, é despretensioso. Ou melhor, se há alguma pretensão é a de exercitar a arte da escrita, refletindo livremente sobre fatos, idéias, cinema, filosofia enfim, tudo o que valer a pena pensar.

Como se não bastasse a exigência da profissão, eu mesmo me impus a necessidade de registrar meus pensamentos os quais, reconheço, considero valiosos pela única e exclusiva razão de serem meus, de representarem meu ponto de vista sobre as coisas. Nada mais. É, pois, nesse exato sentido que me refiro à ausência de pretensão. Quero apenas falar. Falar livremente. E se o transeunte cibernético que por aqui se aventurar sentir que vale a pena iniciar um diálogo a respeito das idéias apresentadas (as quais, já adianto, não serão tão aprofundadas), vou sentir que terá alguma utilidade para além da minha própria extravasão.

Apesar de relativamente antigo, eu me esqueci completamente da criação deste espaço. Nele havia deixado, oculto, um único texto que resolvi publicar mesmo estando inacabado. A ele retorno com o propósito de alimentá-lo com mais frequência, o que para mim será extremamente benéfico, inclusive do ponto de vista pessoal. Vou aproveitar para registrar outros escritos, feitos em outras épocas - pré-internáuticas ainda - que certamente revelarão um outro Fred (principalmente para aqueles que já me conhecem).

Espero que o leitor que por aqui passar possa encontrar alguns pontos sobre os quais pensar. E, se sua generosidade permitir, deixar a contribuição de suas opiniões e seus pensamentos a respeito do que encontrar registrado para, inclusive, provocar minha contrarreflexão.

Boa leitura e obrigado pela visita.
Fred

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