quarta-feira, 19 de junho de 2013

Brasil: Moinho de gastar gentes

Texto originalmente publicado no Blog Nota Alta da ESPM em 25 de outubro de 2012. 


“Por isso mesmo, o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Construímo-nos queimando milhões de índios. Depois, queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões de mestiços brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas do que dá lucro às classes empresariais.” 
(Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro)

Nesta semana, as mídias sociais se viram invadidas por uma enxurrada de posts a respeito do suposto suicídio coletivo da etnia Guarani-Kayowá que teria sido manifesto numa carta enviada à Justiça Federal. A este respeito, algumas informações são necessárias mas, antes de tudo, é muito importante que se leia a carta efetivamente escrita e enviada pelas lideranças indígenas.
Lida a carta, o que se constata é que estão sendo veiculadas pelas mídias sociais duas versões de sua interpretação. Uma indicando que eles estão para “cometer um suicídio coletivo” a outra, é a de que eles mencionam apenas “morte coletiva”. Citando um trecho da carta, depois de expor toda a violência que já sofreram e sobre a decisão da Justiça Federal de que abandonem suas terras: “Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós.  Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. (…) Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. (…) Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para  jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais.”
De fato, se a lermos atentamente, é fácil constatar que eles não mencionam “suicídio”, mas solicitam à Justiça que, ao invés de os expulsarem daquilo que é o seu território ancestral, decretem de uma vez por todas a sua extinção. Muito provavelmente, a ideia de “morte coletiva” acabou sendo deduzida e difundida pelas mídias sociais devido à conhecida trajetória histórica deste povo que os levou a ter mais de 900 casos de suicídio em pouco mais de 20 anos – este indicador por si só, especialmente para uma população razoavelmente diminuta, é extremamente alarmante.
A este respeito, baseado numa nota do CIMI (ONG indigenista que, apesar de confessional e católica, tem uma das tradições mais ilibadas na militância em defesa dos direitos das populações indígenas brasileiras), divulgou uma nota alertando para esta interpretação distorcida de que eles estariam ameaçando cometer “suicídio” coletivo e do desserviço que esta interpretação presta à sua luta.
Durante quatro anos, nos idos de 1980, trabalhei em aldeias e convivi intimamente com a etnia Guarani que, em território brasileiro possui três subdivisões identificadas por etnólogos e linguistas: Guarani-Mbyá, Guarani-Txiripá e Guarani-Kayowá (estes, alvos da polêmica em questão, predominando principalmente em territórios do Mato Grosso do Sul). Para entender a dimensão do problema é preciso entender, como demonstram vários trabalhos acadêmicos (alguns de minha autoria) que a noção de territorialidade é visceral na definição não somente de sua identidade como grupo, mas de sua própria caracterização como seres humanos. Um exemplo simbólico é que a própria palavra território em guarani “teko´á” deriva da palavra “teko”, que é a raiz etimológica que define o seu próprio “modo de ser” (ñhandereko = nosso modo de ser, nossa cultura, nosso “eu” cultural). Na cosmologia deste povo, ser expulso de seu território é ser alijado da própria condição humana e, portanto, não ser digno de continuar vivo.
Finalmente, é importante que se diga ainda que a pretensa polêmica sobre se foi dito “suicídio coletivo” ou “morte coletiva” é uma falácia e em nada diminui a importância da enorme mobilização nas redes sociais para alertar autoridades para a verdadeira tragédia que é alijar estas populações de seu direito básico ao seu território e ao seu modo de vida fundamental. Direito este, aliás, garantido pela nossa Constituição. Não se trata nem de lei ordinária ou decreto: é a própria Carta Magna do país. No Brasil, segundo a Constituição, terra de índio não se vende, não se compra. Nem a Justiça Federal tem o poder de mudar isso. A ocupação sistemática de territórios indígenas, corroborada pela negligência de um Estado que não soube cumprir o seu papel neste quesito é, sim, a grande tragédia que se tem imposto às comunidades indígenas brasileiras como um todo há mais de 40 anos. O primeiro estatuto do índio, ainda é da Ditadura Militar, e já garantia aos índios a posse de suas terras. A Constituição de 1988 incorporou os princípios da lei de 1973 e manteve esta garantia que nunca foi respeitada em sua plenitude por nenhum governo civil que sucedeu o chamado regime de exceção.
Desta forma, a situação atual a que os Guarani-Kayowá estão nos chamando a atenção, diz respeito não somente a eles e à solução de um problema deles, mas ao próprio conceito de Justiça e às manipulações a que o poder judiciário está sujeito, especialmente na esfera federal. Afinal, este deveria ser o primeiro e principal guardião dos princípios estabelecidos pela Carta Magna.

Seguem dois links importantes:

1) Nota do CIMI sobre a distorção da interpretação da carta dos Guarani-Kayowáa (contém também o texto na íntegra da carta escrita pelos Guarani-Kayowá).
http://cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=6578&action=read

2) Nota do Blog do Luís Nassif (do UOL) sobre estes fatos.
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/cimi-nega-suicidio-coletivo-de-guarani-kaiowas

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Palavras Iniciais

Olá,

Bem vindo a um espaço que, antes de mais nada, é despretensioso. Ou melhor, se há alguma pretensão é a de exercitar a arte da escrita, refletindo livremente sobre fatos, idéias, cinema, filosofia enfim, tudo o que valer a pena pensar.

Como se não bastasse a exigência da profissão, eu mesmo me impus a necessidade de registrar meus pensamentos os quais, reconheço, considero valiosos pela única e exclusiva razão de serem meus, de representarem meu ponto de vista sobre as coisas. Nada mais. É, pois, nesse exato sentido que me refiro à ausência de pretensão. Quero apenas falar. Falar livremente. E se o transeunte cibernético que por aqui se aventurar sentir que vale a pena iniciar um diálogo a respeito das idéias apresentadas (as quais, já adianto, não serão tão aprofundadas), vou sentir que terá alguma utilidade para além da minha própria extravasão.

Apesar de relativamente antigo, eu me esqueci completamente da criação deste espaço. Nele havia deixado, oculto, um único texto que resolvi publicar mesmo estando inacabado. A ele retorno com o propósito de alimentá-lo com mais frequência, o que para mim será extremamente benéfico, inclusive do ponto de vista pessoal. Vou aproveitar para registrar outros escritos, feitos em outras épocas - pré-internáuticas ainda - que certamente revelarão um outro Fred (principalmente para aqueles que já me conhecem).

Espero que o leitor que por aqui passar possa encontrar alguns pontos sobre os quais pensar. E, se sua generosidade permitir, deixar a contribuição de suas opiniões e seus pensamentos a respeito do que encontrar registrado para, inclusive, provocar minha contrarreflexão.

Boa leitura e obrigado pela visita.
Fred

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