Por mais racionais que sejamos, muitas vezes somos incapazes de controlar nossa mente quando é arrebatadas por memórias, lembranças de experiências vividas. Ontem, na aula da disciplina que atualmente curso (Tópicos Especiais em Itinerários Intelectuais e Etnografias do Saber) na Unicamp, foi feito um comentário a respeito de um livro, publicado pela esposa do renomado antropólogo Alfred Kroeber (a Sra. Theodora Kroeber), sobre aquele que, à época, foi alardeado pela mídia não somente como "the last of his tribe" (título, aliás do livro da Sra. Kroeber) mas como o último indígena americano que ainda não teria tido contato com a cultura ocidental(1). Os comentários sobre a síntese do livro (cuja tarefa de expor num seminário a ser apresentado daqui a alguns dias acabei assumindo) me fizeram lembrar de uma experiência de campo que me marcou profundamente: a semana que passei entre os Avá-Canoeiros, na divisa dos estados do Tocantins e Goiás, em julho de 2005 quando, a convite do Guilhermo, fui colaborar na reavaliação do convênio FURNAS/FUNAI, referente à Usina Hidrelétrica da Serra da Mesa. Isso aconteceu logo após o meu retorno da viagem que fizera ao Peru e eu ainda estava meio atordoado com a exuberância de tudo o que havia lá vivido (embora tenha sido uma viagem turística - ao Peru).
Lembro-me bem que, na época, o que mais me tocou foram as histórias ouvidas de um dos sobreviventes da etnia Avá-canoeiro, um homem de nome Iawi (aproximadamente de minha idade - veja algumas fotos neste blog). Além das conversas com ele, os relatos da Eliana Granado (uma antropóloga que há anos tem contato com eles) também foram importantes para ajustar alguns pontos (já que o contato meu com esta etnia foi extremamente rápido).
Pois bem, vasculhando meus alfarrábios cibernéticos consegui, felizmente, localizar o e-mail que havia escrito na época e enviei a algumas pessoas e que dava conta, muito rapidamente do que senti a partir dessa experiência. Foram poucas aquelas que realmente perceberam o valor do que havia escrito. É uma carta simples, sem grandes pretensões, dirigida a alguns alunos de graduação (os que, na época, faziam parte da ESPM Social) e a alguns colegas. Até cheguei a pensar em reescrevê-la com outro olhar (um mais técnico e profissonal), mas resolvi publicá-la do jeito que a escrevi, há quatro anos. Depois, quem sabe, eu me anime a incrementar uma análise mais densa sobre a "experiência" e o "être affecté" ("ser afetado"), dois conceitos fortes vinculados ao próprio exercício etnográfico.
Eis o e-mail:
----Mensagem original-----
De: Prof. Fred
Enviada em: domingo, 31 de julho de 2005 10:42
Assunto: Volta das férias, troca de experiência.
"Oi amigos,
Tudo bem com vocês??????
Voltei das férias e do trabalho que fui fazer em Goiás.
Ainda estou meio nocauteado com tudo o que vivi. A viagem ao Peru foi bem turística e, depois da experiência em Goiás, algo que nem vale muito a pena comentar (tomando uma cervejinha num boteco talvez). Mas o que gostaria de escrever é sobre o que vivi como antropólogo.
O Trabalho em Goiás foi além das expectativas. Muito forte e uma das maiores lições que já tive na vida. Posso depois, com calma, contar os detalhes do porquê!!!! Mas o que relato a seguir já dá uma idéia. É realmente algo que deixa nossas vidas renovadas e a certeza de que a relativização da importância de nossos dramas e traumas tem um certo limite. Existem dramas humanos que realmente são, indiscutivel-mente, horríveis. Absolutamente - com todo o sentido que esta palavra possa ter - cruéis. E, no entanto, as pessoas que os sofreram, estão, hoje, de pé, tranqüilas, serenas e, o que é mais importante, super felizes. Quando nos encontrarmos e prosearmos, vocês entenderão o porquê dessas minhas palavras.
Há alguns meses fui contratado, como membro de uma equipe da Unicamp, pela CPFL de Campinas para fazer um diagnóstico sobre um programa desenvolvido por Furnas e Funai para compensação do impacto sócio-ambiental da construção da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, na divisa de Goiás com Tocantins (região da Chapada dos Veadeiros). Na época dos estudos para impacto da construção da represa (década de 1980) foi constatada a presença de remanescentes de uma etnia até então dada como extinta no século XVIII: um grupo Tupi-Guarani (etnia sobre a qual tenho um bom conhecimento) chamado Avá-Canoeiro. O fato foi bem noticiado pela mídia da época e a Funai iniciou um processo de aproximação através de uma frente de contato com índios isolados e, por volta de 1983 esses índios foram contatados e iniciou-se um programa para preservação de seu território e cultura, o que resultou, em 1992, na assinatura de um programa oficial coordenado por Furnas e Funai. Atualmente, a CPFL de Campinas possui 49% das ações de Furnas e, com a necessidade de renovação desse programa, ela contratou uma equipe da Unicamp para reavaliar o programa. Eu fui convidado para fazer parte por ser especialista nesta etnia. Todo o processo é bem complicado e técnico demais. O que gostaria de dividir com vocês é algo menos profissional e mais pessoal.
Em toda a minha vida – especialmente em meu trabalho em comunidades indígenas - eu nunca tive uma experiência tão singela e, ao mesmo tempo, tão forte. A história dos Avá-Canoeiros é testemunha de algo profundamente humano (no pior e no melhor sentido que essa palavra pode ter). Uma etnia inteira, uma cultura, dizimada por um massacre iolento, com requintes de crueldade que em nada difere (e, às vezes ultrapassa) os piores que já lemos ou ouvimos sobre práticas de torturas. Tudo motivado pelo ódio e o desprezo por aqueles que são diferentes (além, claro, da cobiça por suas terras). Desse massacre (ocorrido em 1969) sobraram alguns poucos indivíduos que fugiram numa diáspora pela imensidão do cerrado, então, quase virgem. Hoje, restam quatro, apenas (seis, contando com dois jovens que nasceram depois do contato pacífico com as frentes de atração de índios isolados, na década de 1980). Representantes de uma cultura que até há 20 anos era dada como desaparecida, exterminada. Gente muito linda, de um bom-humor e um carinho que não vi igual em nenhum povo pelo qual passei, nesses meus anos de trabalho como antropólogo. Uma ingenuidade nobre. Quem os conhece hoje, sem saber de sua história - que dá um sentido bem forte e denso à palavra "sofrimento", não consegue imaginar o que essa gente passou. Depois de ver pais, filhos, irmãos, serem esquartejados diante de seus olhos (o único homem adulto desse grupo, hoje com aproximadamente 42 anos, viu a mãe ser violentada por vários homens e depois ser esquartejada e a cabeça empalada como troféu), viver mais de 20 anos fugindo pelos imensos matagais do cerrado, escondendo-se em cavernas durante o dia, saindo apenas à noite, para caçar e se alimentar.... abortando eventuais filhos que eram concebidos porque as crianças atrapalhavam a fuga (além de seu choro poder denunciar sua presença ao inimigos sempre presentes naqueles matos).E quem são esses inimigos????? Vou usar as palavras do Iawi (este homem do qual falei acima) para um cinegrafista de Goiânia, que fez um documentário sobre eles há alguns anos. O cinegrafista peguntou-lhe: "Mas quem matou sua mãe? Quem atacou o seu povo?". Iawi, tranqüilo, respondeu: "Foi você!!!" Como quem acusa: "Seu mundo, sua sociedade!!!". Essa imagem forte ficou registrada no documentário premiado da Antropóloga Eliana Granado que atualmente trabalha em Furnas e participou da frente de contato com esse grupo, há cerca de 20 anos. Pois é.... essa sociedade, da qual nós tanto nos orgulhamos. Esse mesmo Iawi hoje é um super bem-humorado pai de dois adolescentes lindos (um menino de 18 e uma menina de 16 anos). Futuro???? Bom, para quem tem um passado assim e tem o presente com a qualidade de vida que têm (e isso hoje graças também a essa positiva intervenção do consórcio Furnas/Funai que, com todas as falhas tem conseguido fazer um bom trabalho), não é algo que eu, particularmente, considere tão importante. Além dos Avá, foi um privilégio ter podido conviver com Eliana, nesse trabalho de campo.
E eu fiquei me perguntando todo o tempo: como é que essa gente pode, depois de tudo o que sofreu, ter tanto bom-humor, nos tratar com tanto carinho, como nos trataram?????? Para nós, narcisistas ocidentais, que achamos que nossos problemas são sempre os maiores e mais importantes, é difícil entender. Mas,.... é possível que Rousseau tenha razão. Talvez haja, realmente, algo de bom que seja naturalmente humano. Os Avá hoje vivem um presente bem tranqüilo. Voltamos ontem mato (como se diz no jargão indigenista). Ainda está tudo muito forte - talvez mais do que em nossas mentes, em nossos sentimentos.
Enfim..... o que vivi é algo que essas minhas palavras não conseguem expressar nem que fosse possível colocar nelas todo o sentido que eu pretendesse dar. Utilizo-as apenas como uma catarse. Uma forma de dividir com vocês ao mesmo tempo uma indignação, por ser membro de uma cultura tão violenta e, em muitos aspectos, desprezível, mas também uma esperança, por poder fazer parte de uma humanidade capaz de produzir tanta dignidade. Como disse, ainda estou meio nocauteado com tudo. E excitado também.
Pensei até na possibilidade de trazer esse caso prá ESPM, como um debate, uma vez que também envolve uma grande empresa (agora, na verdade, duas) e o Estado. Podemos ver isso mais à frente, se considerarem a idéia boa. Deixem-me assentar um pouco mais as idéias. O Eduardo e eu ainda temos o seminário sobre Sartre prá poder organizar.
Abração a todos pessoal. obrigado pela paciência de terem lido o email. Até mais.
Fred"
(1) Kroeber, Theodora. Ishi. Last of his tribe. New York. Bantam Books. 1964. Sobre a personagem histórica Ishi, há vários escritos, mas uma boa síntese pode ser encontrada no verbete "Ishi" na Wiki (sobretudo pelas referências de alguns artigos e escritos sobre ele que são feitas no final do verbete). Outro ponto importante mencionado por Suely Kofes é a referência a este personagem feita por Lévi-Strauss nos Tristes Trópicos. Li este livro há muitos anos e não me recordo. Tentarei retomá-lo para localizar esta referência.
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