O universo do trabalho apresenta, em meio a tantas e instigantes contradições, um aspecto bastante interessante: a dificuldade que muitas pessoas encontra em conciliar sua vida profissional com um projeto mais amplo de realização pessoal. Minha idéia é apresentar, neste pequeno ensaio aberto à saudável prática do livre-pensar, alguns pontos para uma reflexão sobre aspectos éticos vividos no mundo do trabalho como forma de contribuição aos estudantes universitários que se preparam para um mercado cada vez mais exigente e complexo, visando chamar sua atenção para este que considero um dos principais problemas no que diz respeito ao comprometimento das pessoas com a atividade que executam.
Antes de prosseguirmos, no entanto, um esclarecimento conceitual é importante. O termo Ética, por ser de uso freqüente no senso comum, está sujeito a imprecisões e incorreções quando se pretende torná-lo um jargão específico, como é o caso aqui. Sobre sua definição, qualquer compêndio introdutório ao tema, vai considerá-lo, principalmente, segundo duas perspectivas clássicas, a saber:
1) Uma primeira abordagem é a da Ética considerada como sendo “o conjunto de regras, princípios ou maneiras de pensar que orientam – ou pretendem certa autoridade para orientar – as ações de um grupo particular”.2
2) Uma segunda, é a de considerar a Ética como um estudo sistemático sobre os princípios morais que regem um determinado sistema de atitudes e condutas. Em outras palavras, uma reflexão sobre “como nós devemos viver; o que faz com que uma ação seja correta e não errada; sobre quais deveriam ser os nossos objetivos...”.3 Nesse sentido, ela adquire um caráter de ciência que foi tratado, ao longo da história da Filosofia, segundo duas concepções fundamentais:
- a) a primeira é aquela que considera a Ética tanto como a ciência do fim último (perspectiva teleológica) para o qual a conduta dos homens deve ser orientada, quanto a que estuda os meios (fins imediatos) para atingir esse fim. Aqui a relação entre os meios utilizados para se chegar a determinado fim é deduzida da própria natureza humana;
- b) a segunda é aquela que, diversamente da primeira, considera a Ética como a ciência do móvel da conduta humana, ou seja, aquilo que não é determinado pela sua essência, estando portanto, na esfera do contingente. Aqui estão em jogo os motivos ou as causas da conduta humana ou das “forças” (internas ou externas) que a determinam.
Em um outro trabalho, propus uma terceira forma de abordagem (que na verdade é uma extensão da primeira). Isso possibilitaria que fossem ampliadas algumas das perspectivas das questões postas quando se pretende discutir o tema com relação ao universo do trabalho: a da Ética tomada como um sistema de normas e condutas para se atingir um fim específico e idealizado, pautadas em valores que derivam da esfera cultural na qual está inserido o indivíduo e/ou o grupo considerado. Neste sentido, o sistema cultural deve ser tratado como a base que fornece o parâmetro para a definição dos juízos a serem formulados em uma avaliação Ética das condutas de uma forma geral. Esse procedimento é decisivo para uma efetiva tomada de decisões em qualquer processo de escolha, bem como na responsabilização por atitudes. Em contrapartida, os indivíduos – substratos para a existência do sistema cultural – são considerados unidades autônomas, detentoras de vontades, desejos e valores próprios e que, para seu perfeito exercício, precisam conhecê-la da maneira mais consistente possível.
Gosto de pensar no fato de que uma reflexão sobre Ética deve necessariamente comportar uma dimensão utópica. Esta perspectiva nos leva a falar sobre coisas que poderiam ser diferentes de como são; daqueles valores considerados como sendo ideais e que, embora cultuados, muitas vezes estão distantes da realidade vivida pelas pessoas; da concepção idealizada sobre o Bem, a Justiça, a Felicidade; sobre o fim último das ações humanas. Afinal, como definiam os primeiros filósofos da Grécia Clássica, criadores da Ética como uma área sistemática de estudo, o grande objetivo dos “homens de bem” deve ser, em última instância, a busca do bem-estar, da boa-convivência coletiva, em suma, da felicidade a qual todos estão destinados mas que só pode, e deve, ser alcançada na realização plena de uma sociedade justa. Para que isso fosse possível o ser humano deveria ordenar seus desejos e paixões individuais, buscando educá-las, por meio do exercício de uma racionalidade universal. A esse exercício, os gregos chamavam de construção de uma “estética da existência”, mais apropriadamente, uma Ética. Para esses filósofos, falar de Ética, portanto, é falar sobre um estilo de vida, um modo de existência pautado por um princípio primordial: a busca verdadeira da felicidade que implicava, não só em uma realização pessoal, mas principalmente, da realização do indivíduo enquanto inserido em um grupo.
Para alguns dos principais filósofos helênicos – e aqui evoco prioritariamente Epicuro – a fim de que isso fosse possível, deveria ser bastante nítida a necessidade de se estabelecer uma diferença entre os fins últimos das ações humanas e alguns fins mais imediatos (condição para se atingir aqueles), os quais freqüentemente confundimos com os primeiros. E mais, para que se saiba distinguir com mais rigor uns dos outros, é preciso que os homens sejam livres, o que na visão epicurista implicava em saber discernir, entre os desejos que temos, quais são realmente nossos e quais nos foram incutidos de fora, mas que passamos a assumir como nossos. Não que esses últimos não possam existir em nós, mas somente seremos livres se soubermos as reais razões que nos levam a tomar esta ou aquela decisão, o que implica, em última instância, em saber quais os reais motores que impulsionam nossas escolhas.
Tal dimensão utópica resguarda um quê de poesia e lirismo, sem os quais a vida humana estaria fadada à esterilidade típica de uma mediocridade a qual nosso mesquinho cotidiano tenta nos impingir. Aliar prazer e labor parece, à maioria dos comuns mortais, uma fantasia quase inacessível. O que, convenhamos, não é um fenômeno raro em um mundo absurdamente superficial.
No que diz respeito ao processo de escolha de uma carreira profissional, ao longo de minha experiência docente, vejo, com grande preocupação, um certo esvaziamento da capacidade que a maioria de meus alunos tem demonstrado em assumir um vínculo entre a carreira que escolhem e sua própria realização pessoal. Como se houvesse um fosso entre suas vidas e o trabalho que realizam. Ou como se este último fosse algo apartado daquela, que acaba por se transformar em uma realidade árdua e dolorosa que deve ser assumida como a parcela de sacrifício que se deve fazer para (sobre)viver.
Resgatar esse vínculo é, a meu ver, fundamental caso haja uma preocupação mínima com algum bem-estar que seja mais consistente na vida dessas pessoas, isso para não falar em realização pessoal e felicidade de uma maneira mais ampla e verdadeira. O resultado desse processo é que, com muita freqüência, o mundo do trabalho é repleto de pessoas que, se não são propriamente infelizes, não se sentem minimamente realizadas em uma parcela crucial e vital para sua existência. Pessoas que, quando não são amargas, são completamente apáticas e indiferentes no seu universo de trabalho.
Considerado a partir de uma perspectiva bem simplória, porém contundente, o problema assume proporções ainda mais dramáticas se pensarmos que boa parte de nossa existência consciente (pelo menos 50%) é gasto em função do nosso vínculo com o trabalho. Sobre esse fenômeno cada vez mais comum, um dos aspectos importantes que, penso, deve ser considerado, é o grande estresse que as pessoas sofrem ao “escolher” um trabalho, ou mais apropriadamente, uma carreira. Essa pressão pode ser manifesta de múltiplas maneiras (muitas vezes simultâneas): exigências e dificuldades de mercado; pressões familiares (afirmativas – “Gostaria muito que meu filho fosse um grande Xlx!” – ou negativas – “Tal carreira não dá camisa a ninguém!”); influência de modismos etc. Outro tópico relevante diz respeito aos limites e às reais condições e oportunidades que as pessoas têm para concretizar suas convicções profissionais (principalmente nos raros casos em que ela ocorre). Finalmente, porém não menos importante, a falta de uma boa formação fundamental, limita o próprio processo de escolha. Tudo isso sem mencionar o fato de que em geral não se sabe filtrar o que é, de fato, o desejo real do indivíduo, e o que é um desejo que brota de sua relação com o mundo em que vive.
Para pensarmos de fato em uma ética mais apropriada ao exercício do trabalho das pessoas, proponho que façamos duas distinções importantes: a primeira delas é aquela entre fins imediatos e fins últimos nos processos de escolha; a segunda, intimamente vinculada à primeira, entre uma concepção de trabalho e uma outra, a de profissão.
Com respeito à primeira distinção, é fundamental que as pessoas se questionem sobre seus reais desejos e projetos para sua vida como um todo, o que, fatalmente as levaria a estabelecer uma separação do que se quer como perspectiva de vida (fins últimos) e quais são os degraus que é preciso galgar para se chegar lá (fins imediatos). Na sala de aula, como exemplo, costumo lançar a seguinte questão: “Por que trabalhamos?”, e a resposta incontinenti (com suas devidas variações) é: “Para ganharmos dinheiro!”. Ora, isso revela uma total ausência de uma perspectiva mais aprofundada da visão que as pessoas têm do seu próprio trabalho. A preocupação com o bem-estar material, revelada pela idéia de “ganhar dinheiro”, engloba totalmente o que deveria ser a principal preocupação (no sentido de que é a mais densa e está no fundamento da busca pelo dinheiro) que é o bem-estar e a felicidade dessas pessoas. Afinal, para quê queremos ganhar dinheiro? Ao invés desta pergunta, quando interpelados sobre esse fato da superficialidade, os alunos praticamente a invertem: “Mas como seremos felizes se não tivermos dinheiro?” . Essa lógica rasa, inversa e imediatista impera com uma assombrosa força nos vários ambientes de trabalho nos quais já investiguei e freqüentemente é trazida para o universo da sala de aula, muitas vezes sob a forma de angústias, insatisfações e amargura com relação ao ambiente de trabalho.
O segundo aspecto da questão é o que diz respeito à baixa consciência profissional que é comum nos vários ambientes de trabalho. Nas minhas enquetes, foram muito poucas as pessoas que se referiram a si próprias como “profissionais”, ao passo que a maioria se identificava como “trabalhadoras”. A questão que nos interessa aqui é que, ao construírem a categoria “profissionais”, as pessoas demonstravam uma maior consciência do vínculo que deveria ser estabelecido entre o trabalho que desenvolviam e a sua própria perspectiva de vida, o que já não ocorria quando as pessoas se identificavam como “trabalhadoras”, o que implicava em uma visão que estavam realizando uma tarefa para a qual qualquer pessoa poderia ser designada e, mais, hoje faziam aquilo, mas amanhã poderiam estar fazendo uma outra coisa qualquer.
A ética, portanto, tomada no sentido considerado no princípio deste texto, pode ser um instrumento importantíssimo para se pensar esse tipo de questão, auxiliando as pessoas a agirem de forma mais consciente, proporcionando-lhes um instrumental para que, ao escolher uma carreira, escolham e definam um estilo de vida bem condizente com seus desejos mais íntimos.
1 Este ensaio foi originalmente escrito em 1999 e publicado na Revista Interna da Faculdade Paulistana de Ciências e Letras. Está passando por um processo de revisão e alteração de alguns pontos.
2 Singer, Peter (ed.). 1994. A Companion to Ethics. Blackwell. Oxford. p.4
3 Singer, Peter (ed.). idem. p.3
Estive por aqui lendo um pouco em seu blog!! Abraços Ademar!!!
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