É no mínimo curiosa a aparente incapacidade do ser humano de superar a idéia da competição a que me referi em outro artigo aqui neste blog ("Sobre egos e álteres"). Essa sensação de que é necessário (como se uma força "natural" estivesse a nos impulsionar), a todo tempo, provar-se melhor que o outro. É claro que não me refiro à competição saudável, disputa estimulante, aquela comparação que faz com que sejamos impulsionados rumo a um melhor desempenho em nossas próprias concepções. Certamente sou pouco original em afirmar isso, mas a melhor metáfora já inventada para a ela se referir é a do esporte: canalizar a energia competitiva numa arena saudável e construtiva (pelo menos em princípio e tese). No esporte, principalmente quando se trata do esporte não profissional, somos levados a tomarmo-nos como referência para que possamos ir sempre além de nós mesmos. Vencer o outro é um estímulo para que possamos ultrapassar nossos próprios limites, crescendo sempre, na proporção em que investimos em nossa atuação. Ousaria afirmar que vencer o outro é quase uma consequência da superação deste próprio limite.
Em outro lugar já refleti sobre um contraponto entre esta metáfora e a da guerra para falar da competição. Metáforas, aliás, nada originais, bem sei (como já dito). Mas que importa, se elas possuem o vigor das coisas óbvias?
Esta semana começou, pelo menos para mim, com uma imagem - que para mim foi bem forte - veiculada nos noticiários televisivos. Diante da determinação do governo egípcio de exterminar o rebanho porcino em seu território - rebanho este de proporções pequenas, posto que só o possui a minoria cristã, os Coptas(1) - teve início um confronto entre policiais (supostamente alegando a manutenção da ordem e o cumprimento da "lei") e grupos de critãos e muçulmanos. Não quero aqui me ater às filigranas das muitas discussões que o caso suscita e que remontam aos clássicos pontos das teorias antropológicas a respeito da identidade étnica, ao etnocentrismo e à intolerância à diferença com relação a um "outro" contra quem se insiste em se autoafirmar (voltamos ao tema da competição - a minha afirmação tange, de alguma forma, a "destruição" - física ou metafórica - desse "outro"). A imagem exibida era a de um tumulto e, de repente, no meio dele, uma cena curiosa: um rapaz saca de dentro de um carro, cujo vidro dianteiro havia sido quebrado na confusão, pendurado no retrovisor, um pequeno crucifixo e o exibe para a câmera de um jornalista que estava diante dele. Não conseguia ouvir o que ele bradava por conta da intervenção da narrativa da notícia (mas tampouco iria adiantar se tivesse ouvido, posto que não compreendo o árabe). No entanto isso não era necessário. A imagem falava por si só: seu rosto era suficientemente eloquente na expressão de um misto de fúria, indignação e protesto. Contra quê? Certamente não contra a literal matança dos porquinhos. Esta, na verdade, se constituía como mais um combustível na já longa e infindável história de conflitos étnico-religiosos do Egito. O que conseguia ver naquela cena era um protesto contra a intolerência, contra o ódio. Independentemente do que ele poderia estar a dizer, confesso que gostaria de ter ouvido "Deixem-nos em paz! Queremos respeito pela nossa fé!"
Essa imagem me arrebatou o pensamento com tal intensidade que acabei me desconcentrando e perdendo o restante do noticiário. Tampouco o telejornal que a transmitiu lhe deu qualquer importância (fora o fato de a ter escolhido para a transmissão, mas que se perdeu, em meio a tantas outras - mas não para mim), na medida em que, para o cardápio quase sempre insosso dos noticiários, falar da "nova gripe" era mais importante do que entrar no debate de como esses elementos (gripe e porcos) acabaram por conferir um novo combustível à intolerância étnica. No caso, da maioria muçulmana contra a minoria copta. Mas poderia falar aqui um outro tanto sobre a questão mexicana.
Voltemos aos porquinhos. De repente, os supostos algozes dessa nova atrocidade, como se já não tivessem sofrido estigma de sujidade suficiente ao longo de boa parte da história humana (pelo menos na parte do planeta mais influenciada pela tradição hebraica no seu sentido lato - não nos esqueçamos que, apesar de todos os conflitos de que somos testemunhas, também a tradição islâmica, e não somente a cristã, está visceralmente vinculada à religião dos antigos hebreus), estavam agora em meio a um turbilhão de ódio e intolerância étnicos. Por alimentar o estômago de alguns, os porcos também servem para alimentar o ódio de outros. Parece que, mesmo indiretamente, tentam nos afirmar: "Os porcos são os culpados do conflito, não a intolerância e o ódio humanos".
É óbvio o fato de que os porcos não são o problema. Muito menos para a tal gripe. Pelo menos não para a OMS que faz questão de assim afirmar insistentemente, a despeito da deplorável postura de muitos veículos de comunicação (principalmente os televisivos). Muitos deles, ao mesmo tempo em que noticiam a orientação da OMS de não mais se referir ao novo flagelo com o zoônimo "suíno" (não só pelo motivo de impedir o zoocídio generalizado e completamente desnecessário desses pobres seres) têm nos seus âncoras - pelo menos nas principais emissoras brasileiras(2) - a insistência em repetir, de modo profuso e contundente, o qualificativo para aquilo que alguns dos seus próprios jornalistas, ao dar a notícia, chamam de "nova gripe". Já faz mais de uma semana que saiu a orientação da OMS, fato este acintosamente obliterado pela mídia em geral.
A questão não é somente a de salvar os porquinhos ou mesmo a sua reputação dissociando-os do vírus. Eles já estão fisicamente condenados uma vez que são criados como pasto da ânsia alimentar humana. Nem tampouco a de se adotar uma doutrinária militância anti-etnocêntrica tout court. Mas é a da responsabilidade de se adotar uma postura coerente em que, ao mesmo tempo dê conta da notícia, da informação, seja ética e responsável na formação da opinião de um senso comum que, certamente, ocorrerá.
(1) Transcrevo aqui uma informação que considerei útil ao leitor, retirada do site de uma editora católica cujo endereço se encontra abaixo: "Os Coptas são os cristãos do Egito, que no século V adotaram o monofisismo condenado pelo Concílio de Calcedônia (451). No século XVI uma parte da população copta reuniu-se à Igreja Católica, reconhecendo o primado de Pedro. Os dissidentes já não professam a heresia que lhes ocasionou a origem. Estenderam sua pregação até a Etiópia, onde também existem comunidades coptas.A palavra copta deriva-se do árabe Qoubt, que é a deformação do grego Aigyptioi. Designa as habitantes do Egito anteriores à invasão árabe (século VIII) aderiram ao Evangelho no início da era cristã, mas no século V abraçaram a heresia monofisita, que o Concílio de Calcedônia (451) condenara. Formaram assim a Comunhão Egípcia Copta com ramificações na Etiópia (Abissínia). A partir do século XVI muitos dos dissidentes se uniram à Sé de Pedro em Roma de modo que há atualmente coptas separados da Igreja Católica e outros (em menor número e somente no Egito) unidos à Santa Sé."
Fonte: Editora Cleofas
(2) Estou me referindo especificamente aos telejornais da TV Globo (aberta e Globonews) e ao Jornal da Band que são os que assisto com mais frequência. Nos jornais impressos e na internet esta questão é menos frequente.
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