Há muitos anos, quando ainda morava em Campinas e vivia com mais efervescência o clima universitário como aluno da graduação e pós-graduação simultaneamente (fazia meu segundo curso universitário - Ciências Sociais - e o mestrado em Antropologia), tomei contato com uma das obras mais simples e ao mesmo tempo mais sofisticadas e complexas do cinema moderno. Naquela época, e durante muitos anos depois, minha visão desse filme tinha me levado quase que exclusivamente a pensá-lo com o foco na gastronomia (seu mote, pelo menos aparentemente, principal) e as várias questões a que a ela são reportadas. Muitos anos depois, já com olhos (e ouvidos) abertos para outras questões eu o revi num grupo de sarau cinematográfico do qual faço parte.
Talvez na melhor linha epicurista, tentando manter o que o culto, a filia (no sentido literal do termo grego, de amor, apreço), ao conhecimento tem de lúdico, nós nos reunimos uma vez por mês, sempre na vesperal de domingo, para assistir a um filme. Levamos uma prenda (que pode ser um texto, um trecho de algum outro filme, um poema, uma música), aquilo que é considerado importante, na ótica de quem oferece, para fazer a partilha. Pensamos, divagamos e, principalmente, discutimos livremente sobre o filme proposto, relacionando a ele, livremente, a prenda oferecida. Claro que não falta um bom vinho e uma boa comida, esta quase sempre à cargo do anfitrião da vez. Sem dúvida alguma, nosso momento de "culto" ao conhecimento e à amizade. O grupo, bastante heterogêneo (somos três psicanalistas, um semioticista, uma médica, um poeta e eu, um antropólogo), tem produzido belas reflexões e esse tem sido um momento muito bom de descontração e, ao mesmo tempo, de veiculação de excelentes idéias. Uma deliciosa maneira de se encerrar o domingo, preparando-se para a semana que está entrando. A partir do próprio sarau, escolhemos o nosso próximo objeto. Tudo muito despretensioso pois funde-se, ao desejo de sorver aquilo que a comensalidade mais tem de precioso - o prazer do encontro -, o exercício do pensamento e a consolidação da amizade. Em nossa última sessão, fui brindado com o reencontro com este que, apesar de relativamente jovem, já se tornou um clássico. Ao rever o filme em casa, antes do sarau, fui tocado por um detalhe, logo no início da história, que me havia passado completamente desapercebido. Acho que isso ocorrera devido ao excesso de textos que li que atentavam sempre para "Babette" como um filme sobre comensalidade. Comida no seu sentido lato, naquilo que evoca de ritualístico (antes, durante e depois), de renovação, de dádiva, de acolhida e, porque não dizer, de sagrado. Desta vez, percebi que o filme também é riquíssimo para a exploração de todos os sentidos e não apenas do paladar. Aqui, nesta breve divagação, desejo focar num dos seus aspectos que me pareceram mais singelos (e sobre o qual, confesso, não vi ainda nenhuma alusão feita): o da presença sutil, porém definitiva, da música na construção da trama.Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1987, o filme do dinamarquês Gabriel Axel (baseado na obra homônima da escritora, também dinamarquesa, Isak Dinesen1) é um deleite que nos convida a aguçar os sentidos. Frequentemente lembrado pelo seu tema mais explícito, evidenciado no título, não é um filme que se limita ao "paladar". Resgatando a relação profundamente humana entre o corpo e o prazer, Axel nos conduz pelas sendas dos sentidos (em seus múltiplos sentidos). É uma ode à estética: o belo no que tem de mais abstrato, sublime e poético. Humano.
Associando a excelência artística culinária de Babette (a bela atriz Stéphane Audran)2 com a beleza da voz de Philippa 3, Axel nos conduz aos meandros de histórias amorosas que se entrelaçam com toques e ares de Destino (no sentido mesmo de predeterminação), religiosidade, circunspecção, austeridade, pecados e prazeres proibidos carcterísticos daqueles fiéis de uma seita luterana de ares autóctones e autônomos da pequena vila costeira de Frederikshavn4 (da qual a pequena aldeia era um distrito), naquele final de século XIX. Por este motivo, talvez seja relativamente corrente a reflexão sobre o caráter profundamente religioso (enraizado no cristianismo dos seguidores do Pastor) de que o filme é objeto.5
Levar o expectador a navegar pelos caminhos da sensualidade que brota na confrontação do prazer iminente, porém proibido, ou que emana da estética do corpo oculto, marcada pelas belezas de Martina e Philippa (ressaltada logo nas primeiras sequências do filme); sensualidade despertada pela estética da mesa bem posta, dos talheres e louças finas; ou aquela provocada pela textura de alimentos ricamente preparados, de odores e sabores mais diversos (o quê, para nós expectadores, é um estímulo à imaginação). E, claro, sensualidade (implícita e explícita) do dueto La ci darem la mano, do Don Gionvanni, de Mozart. O filme é um convite à experiência do corpo. Este dueto é um dos raros momentos do filme (talvez o único, se considerarmos que faz parte da sequência inicial em que Achille Papin é apresentado) em que a música protagoniza uma cena cujo desenrolar vai desencadear o mote principal da história: desiludido pelo fracasso na tentativa de seduzir Philippa, Papin retorna a Paris de onde, anos mais tarde, encaminha a misteriosa, porém célebre, chef do renomado Café Anglais.
Instigando a dubiedade na própria tradução do seu título para o português, A festa de Babette (Le festin de Babette)6 tem, no meu entendimento, nesta cena um dos mais belos e singelos momentos do cinema contemporâneo. Cena esta que conjuga a aludida circunspecção, o amor sensual que consegue extravasar por meio do canto: assim como o banquete, este marcará a fruição e a fluência do prazer sensorial pela música que surge como instrumento e veículo da sedução. Aqui, a bela interpretação do dueto é um marco para o desenrolar da história. Percebendo a volúpia contida nas palavras (e, mais que nestas, nos gestos) sedutoras de Papin, Philippa decide interromper suas aulas de canto, graciosamente concedidas pela paixão de Papin. Desencantado, esse gesto abrupto e inesperado de sua amada leva-o a retornar ao fausto dos grandes teatros parisienses de onde viera em busca de tranquilidade. Muitos anos depois, é por meio (e por causa) desse amor contido que Babette chega ao vilarejo dando lugar ao desenrolar da história que tão bem conhecemos.
Transposto para o francês (o original, como sabemos é em italiano), e guardando o profundo clima de amor contido - ao mesmo tempo belo e assustador -, a cena explode na bem trabalhada voz do soprano.7 Em sua segunda lição de canto, Philippa deixa extravasar seus sentimentos através da jovem plebéia Zerlina, que se deixa encantar e seduzir pelo nobre Don Giovanni. No filme de Gabriel Axel, não sabemos ao certo se esse amor é direcionado a Achille Papin - mestre e sedutor - ou simplesmente sem um alvo específico, liberando o que estava contido. O prazer do canto. Há muito o que falar - e muito já se fez - sobre o Amor no filme. Para mim, o que ficou marcado foi a ternura desse momento que me tocou mais do que o próprio banquete em si. Certamente, o amor de Martina pelo antigo soldado (e agora, general) Lorenz Lowenhielm (o ator Jarl Kulle) que se entrecruza ao de Papin e Philippa. Quatro personagens que, de alguma forma, estão vinculados a Babette. Inspirado pela presença desse Mozart inesperado (não havia sido tocado por isso da primeira vez que assistira ao filme, há 20 anos), fechamos nosso próximo programa de sarau: o Pedro vai nos trazer algumas montagens do D. Giovanni. Falemos, pois, de paixões, seduação, música e prazer. Que venha o próximo!
Enquanto isso, numa obsessão tardia para saber como é feito o principal prato do festin, consegui encontrar uma receita. Ela foi tirada de um blog francês de onde, apesar de estar disponível, eu transpus para o meu blog para o caso de, por algum motivo, o site original sair do ar. Você vai encontrá-la em uma outra página que criei para conversar sobre Curiosidades da Culinária, "Culinariosidades".
Confira o vídeo com este trecho do filme no site do barítono Jean-Philippe Lafont. Caso não entre (às vezes falha), há uma versão com definição sonora e visual inferiores no Youtube.
"Vous serez comme une étoile dans ce firmament. Vous serez l’unique
étoile. L’empereur viendra vous entendre. Consolez les pauvres de leur
misère."
Don Giovanni:
Viens qu´une voix t´appelle
Qui chante dans mon coeur
Viens ne sois pas rebèlle
C´est bien la voix du bonheur.
Zelina:
Je tremble mais j´écoute
J´ai peur de ma bonheur
Désir, amour et doute
Combattent dans mon coeur.
Don Giovanni:
Viens, ma beauté que j´adore.
Mazetto m´aime encore!
Je te ferai grande damme.
Zerlina:
Ah! Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.
Don Giovanni:
Viens! Viens! Viens!
Viens, une voix t´appelle.
Zerlina:
Je tremble, mais j´écoute.
Viens, ne sois pas rebelle.
J´ai peur de ma bonheur.
Don Giovanni:
Partons, ma beauté!
J´ai peur de ma bonheur.
Don Giovanni:
Viens, tout mon coeur t´appelle.
Tu seras grande damme.
Don Giovanni e Zerlina:
Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.
Oh, viens! Viens!
Allons!
Don Giovanni e Zerlina:
C´est toi, c´est toi que j´aime.
Ton coeur est mon coeur même. L´amour, nous unira.
Kathleen Battle: Dueto interpretado por Samuel Ramey(Don Giovanni) e Kathleen Battle (Zerlina) com a Wiener Philharmoniker regida por Herbert Von Karajan.
Cecilia Bartoli - mezzo-soprano; Bryn Terfel - baixo-baritone;The London Philharmonic Orchestra; Myung-Whun Chung - regente
Algumas referências sobre o filme:
1) Você encontra aqui uma leve resenha de Rubem Alves sobre o filme.
2) O artigo de Pedro Vicente Costa Sobrinho traz importantes dicas gastronômicas para melhor compreender as referências feitas durante o jantar: o que era o Café Anglais, alguns dos pratos e bebidas etc. O que me chamou a atenção foi o resgate feito por ele do clássico A fisiologia do gosto de Brillat Savarin.
NOTAS:
1 Isak Dinesen (pseudônimo de Karen Dinesen) escreveu, além deste, um outro romance também transformado em filme: o premiado Out of Africa ("Entre dois amores", cuja personagem, com o nome de Karen Blixen, é interpretada por Meryl Streep), que são memórias de sua vida ao longo de 17 anos no Quênia.
2 Stéphane Audran atuou, entre outros filmes, em O discreto charme da burguesia. Foi casada com Claude Chabrol e Jean-Louis Trintignant.
3 Personagens centrais no filme, as irmãs Martina (interpretada pela atriz Birgitte Ferdespiel) e Philippa (a atriz Bodil Kjer), como já indica a abertura da história, recebem seus nomes em homenagem a Martinho Lutero e a seu grande amigo Philipp Melanchthon.
4 Frederikshavn é um município da Dinamarca, localizado na região norte, no condado de Nordjutlândia. Atualmente, o município tem uma área de 180 km² e uma população de 34 416 habitantes, segundo o censo de 2003.
5 São várias as referências ao filme como uma metáfora da Eucaristia. Em minhas divagações internáuticas, encontrei um belo texto extraído de um livro que reflete sobre a presença de "Deus" no cinema (chama-se God in the Movies): no Capítulo 5 (intitulado Babette´s feast of love: Symbols - subtle but patent), seus autores - Albert Bergesen e Andrew Greeley - fazem um belo paralelo entre Babette e Cristo (tomando o autossacrifício por amor, presente nos dois casos, como fio condutor). Em outro texto, uma pequena resenha crítica, Carlos Augusto (sem sobrenome) retoma este paralelo que, apesar de não ter as devidas referências, sintetiza de forma bem objetiva: "O filme é repleto de simbolismos cristãos. O banquete em memória do pastor é uma alusão clara à 'Última Ceia' e, por extensão, à liturgia cristã. Para o mesmo, sentam-se à mesa doze pessoas, representando os doze apóstolos. Babette é claramente uma imagem de Cristo: pobre, ela chega misteriosamente a uma pequena comunidade, trabalha como criada e, no final, presenteia a todos com um lauto banquete. Por outro lado, o prato principal servido por Babette chama-se 'Codorna no Sarcófago': Codorna significando 'maná' (alimento espiritual de origem divina que consola a alma); e Sarcófago, palavra vinda do latim, 'sarcophagus', que significa 'aquele que come carne'. Assim, o prato principal é uma evidente alusão às palavras de Cristo: 'Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come deste pão, viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, para que o mundo tenha vida' (João 6, 51)". [Trecho transcrito do blog "65 Anos de Cinema", mantido por este autor.]
6 Embora portadora da mesma raiz, o termo"festin" em francês é mais apropriadamente traduzido por "banquete" e não literalmente "festa". Mesmo considerando a natural remissão à idéia da comensalidade que existe na palavra comemoração (o "comer" junto), além da aludida referência à "Última Ceia", o banquete guarda a idéia ritualística e o momento do diálogo, sobretudo da maneira como ocorre o filme. E sem mencionar a remissão explícita ao banquete platônico. Por estas razões, parecer-me-ia mais apropriado que o filme se chamasse efetivamente "O banquete de Babette".
7Não consegui obter o nome da real intérprete de Zerlina, posto que é perceptível a dublagem da cena. A voz (e o papel) de Papin é do barítono Jean-Philippe Lafont.