domingo, 24 de maio de 2009

Babette: uma ode aos sentidos


Há muitos anos, quando ainda morava em Campinas e vivia com mais efervescência o clima universitário como aluno da graduação e pós-graduação simultaneamente (fazia meu segundo curso universitário - Ciências Sociais - e o mestrado em Antropologia), tomei contato com uma das obras mais simples e ao mesmo tempo mais sofisticadas e complexas do cinema moderno. Naquela época, e durante muitos anos depois, minha visão desse filme tinha me levado quase que exclusivamente a pensá-lo com o foco na gastronomia (seu mote, pelo menos aparentemente, principal) e as várias questões a que a ela são reportadas. Muitos anos depois, já com olhos (e ouvidos) abertos para outras questões eu o revi num grupo de sarau cinematográfico do qual faço parte.

Talvez na melhor linha epicurista, tentando manter o que o culto, a filia (no sentido literal do termo grego, de amor, apreço), ao conhecimento tem de lúdico, nós nos reunimos uma vez por mês, sempre na vesperal de domingo, para assistir a um filme. Levamos uma prenda (que pode ser um texto, um trecho de algum outro filme, um poema, uma música), aquilo que é considerado importante, na ótica de quem oferece, para fazer a partilha. Pensamos, divagamos e, principalmente, discutimos livremente sobre o filme proposto, relacionando a ele, livremente, a prenda oferecida. Claro que não falta um bom vinho e uma boa comida, esta quase sempre à cargo do anfitrião da vez. Sem dúvida alguma, nosso momento de "culto" ao conhecimento e à amizade. O grupo, bastante heterogêneo (somos três psicanalistas, um semioticista, uma médica, um poeta e eu, um antropólogo), tem produzido belas reflexões e esse tem sido um momento muito bom de descontração e, ao mesmo tempo, de veiculação de excelentes idéias. Uma deliciosa maneira de se encerrar o domingo, preparando-se para a semana que está entrando. A partir do próprio sarau, escolhemos o nosso próximo objeto. Tudo muito despretensioso pois funde-se, ao desejo de sorver aquilo que a comensalidade mais tem de precioso - o prazer do encontro -, o exercício do pensamento e a consolidação da amizade.

Em nossa última sessão, fui brindado com o reencontro com este que, apesar de relativamente jovem, já se tornou um clássico. Ao rever o filme em casa, antes do sarau, fui tocado por um detalhe, logo no início da história, que me havia passado completamente desapercebido. Acho que isso ocorrera devido ao excesso de textos que li que atentavam sempre para "Babette" como um filme sobre comensalidade. Comida no seu sentido lato, naquilo que evoca de ritualístico (antes, durante e depois), de renovação, de dádiva, de acolhida e, porque não dizer, de sagrado. Desta vez, percebi que o filme também é riquíssimo para a exploração de todos os sentidos e não apenas do paladar. Aqui, nesta breve divagação, desejo focar num dos seus aspectos que me pareceram mais singelos (e sobre o qual, confesso, não vi ainda nenhuma alusão feita): o da presença sutil, porém definitiva, da música na construção da trama.

Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1987, o filme do dinamarquês Gabriel Axel (baseado na obra homônima da escritora, também dinamarquesa, Isak Dinesen1) é um deleite que nos convida a aguçar os sentidos. Frequentemente lembrado pelo seu tema mais explícito, evidenciado no título, não é um filme que se limita ao "paladar". Resgatando a relação profundamente humana entre o corpo e o prazer, Axel nos conduz pelas sendas dos sentidos (em seus múltiplos sentidos). É uma ode à estética: o belo no que tem de mais abstrato, sublime e poético. Humano.

Associando a excelência artística culinária de Babette (a bela atriz Stéphane Audran)2 com a beleza da voz de Philippa 3, Axel nos conduz aos meandros de histórias amorosas que se entrelaçam com toques e ares de Destino (no sentido mesmo de predeterminação), religiosidade, circunspecção, austeridade, pecados e prazeres proibidos carcterísticos daqueles fiéis de uma seita luterana de ares autóctones e autônomos da pequena vila costeira de Frederikshavn4 (da qual a pequena aldeia era um distrito), naquele final de século XIX. Por este motivo, talvez seja relativamente corrente a reflexão sobre o caráter profundamente religioso (enraizado no cristianismo dos seguidores do Pastor) de que o filme é objeto.5

Levar o expectador a navegar pelos caminhos da sensualidade que brota na confrontação do prazer iminente, porém proibido, ou que emana da estética do corpo oculto, marcada pelas belezas de Martina e Philippa (ressaltada logo nas primeiras sequências do filme); sensualidade despertada pela estética da mesa bem posta, dos talheres e louças finas; ou aquela provocada pela textura de alimentos ricamente preparados, de odores e sabores mais diversos (o quê, para nós expectadores, é um estímulo à imaginação). E, claro, sensualidade (implícita e explícita) do dueto La ci darem la mano, do Don Gionvanni, de Mozart. O filme é um convite à experiência do corpo. Este dueto é um dos raros momentos do filme (talvez o único, se considerarmos que faz parte da sequência inicial em que Achille Papin é apresentado) em que a música protagoniza uma cena cujo desenrolar vai desencadear o mote principal da história: desiludido pelo fracasso na tentativa de seduzir Philippa, Papin retorna a Paris de onde, anos mais tarde, encaminha a misteriosa, porém célebre, chef do renomado Café Anglais.

Instigando a dubiedade na própria tradução do seu título para o português, A festa de Babette (Le festin de Babette)6 tem, no meu entendimento, nesta cena um dos mais belos e singelos momentos do cinema contemporâneo. Cena esta que conjuga a aludida circunspecção, o amor sensual que consegue extravasar por meio do canto: assim como o banquete, este marcará a fruição e a fluência do prazer sensorial pela música que surge como instrumento e veículo da sedução. Aqui, a bela interpretação do dueto é um marco para o desenrolar da história. Percebendo a volúpia contida nas palavras (e, mais que nestas, nos gestos) sedutoras de Papin, Philippa decide interromper suas aulas de canto, graciosamente concedidas pela paixão de Papin. Desencantado, esse gesto abrupto e inesperado de sua amada leva-o a retornar ao fausto dos grandes teatros parisienses de onde viera em busca de tranquilidade. Muitos anos depois, é por meio (e por causa) desse amor contido que Babette chega ao vilarejo dando lugar ao desenrolar da história que tão bem conhecemos.

Transposto para o francês (o original, como sabemos é em italiano), e guardando o profundo clima de amor contido - ao mesmo tempo belo e assustador -, a cena explode na bem trabalhada voz do soprano.7 Em sua segunda lição de canto, Philippa deixa extravasar seus sentimentos através da jovem plebéia Zerlina, que se deixa encantar e seduzir pelo nobre Don Giovanni. No filme de Gabriel Axel, não sabemos ao certo se esse amor é direcionado a Achille Papin - mestre e sedutor - ou simplesmente sem um alvo específico, liberando o que estava contido. O prazer do canto. Há muito o que falar - e muito já se fez - sobre o Amor no filme. Para mim, o que ficou marcado foi a ternura desse momento que me tocou mais do que o próprio banquete em si. Certamente, o amor de Martina pelo antigo soldado (e agora, general) Lorenz Lowenhielm (o ator Jarl Kulle) que se entrecruza ao de Papin e Philippa. Quatro personagens que, de alguma forma, estão vinculados a Babette.

Inspirado pela presença desse Mozart inesperado (não havia sido tocado por isso da primeira vez que assistira ao filme, há 20 anos), fechamos nosso próximo programa de sarau: o Pedro vai nos trazer algumas montagens do D. Giovanni. Falemos, pois, de paixões, seduação, música e prazer. Que venha o próximo!

Enquanto isso, numa obsessão tardia para saber como é feito o principal prato do festin, consegui encontrar uma receita. Ela foi tirada de um blog francês de onde, apesar de estar disponível, eu transpus para o meu blog para o caso de, por algum motivo, o site original sair do ar. Você vai encontrá-la em uma outra página que criei para conversar sobre Curiosidades da Culinária, "Culinariosidades".


Confira o vídeo com este trecho do filme no site do barítono Jean-Philippe Lafont. Caso não entre (às vezes falha), há uma versão com definição sonora e visual inferiores no Youtube.



O recitativo e o dueto em Babette

Achille Papin e Philippa:
"Vous serez comme une étoile dans ce firmament. Vous serez l’unique
étoile. L’empereur viendra vous entendre. Consolez les pauvres de leur
misère."

Don Giovanni:
Viens qu´une voix t´appelle
Qui chante dans mon coeur
Viens ne sois pas rebèlle
C´est bien la voix du bonheur.

Zelina:
Je tremble mais j´écoute
J´ai peur de ma bonheur
Désir, amour et doute
Combattent dans mon coeur.

Don Giovanni:
Viens, ma beauté que j´adore.
Mazetto m´aime encore!
Je te ferai grande damme.

Zerlina:
Ah! Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.

Don Giovanni:
Viens! Viens! Viens!
Viens, une voix t´appelle.

Zerlina:
Je tremble, mais j´écoute.
Viens, ne sois pas rebelle.
J´ai peur de ma bonheur.

Don Giovanni:
Partons, ma beauté!
J´ai peur de ma bonheur.

Don Giovanni:
Viens, tout mon coeur t´appelle.
Tu seras grande damme.

Don Giovanni e Zerlina:
Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.
Je sens faiblir mon âme.

Oh, viens! Viens!
Allons!

Don Giovanni e Zerlina:
C´est toi, c´est toi que j´aime.
Ton coeur est mon coeur même. L´amour, nous unira.

Duas interpretações magníficas de Zerlina: Kathleen Battle e Cecilia Bartoli.

Kathleen Battle: Dueto interpretado por Samuel Ramey(Don Giovanni) e Kathleen Battle (Zerlina) com a Wiener Philharmoniker regida por Herbert Von Karajan.


Cecilia Bartoli - mezzo-soprano; Bryn Terfel - baixo-baritone;The London Philharmonic Orchestra; Myung-Whun Chung - regente



Algumas referências sobre o filme:
1) Você encontra aqui uma leve resenha de Rubem Alves sobre o filme.

2) O artigo de Pedro Vicente Costa Sobrinho traz importantes dicas gastronômicas para melhor compreender as referências feitas durante o jantar: o que era o Café Anglais, alguns dos pratos e bebidas etc. O que me chamou a atenção foi o resgate feito por ele do clássico A fisiologia do gosto de Brillat Savarin.




NOTAS:

1 Isak Dinesen (pseudônimo de Karen Dinesen) escreveu, além deste, um outro romance também transformado em filme: o premiado Out of Africa ("Entre dois amores", cuja personagem, com o nome de Karen Blixen, é interpretada por Meryl Streep), que são memórias de sua vida ao longo de 17 anos no Quênia.

2 Stéphane Audran atuou, entre outros filmes, em O discreto charme da burguesia. Foi casada com Claude Chabrol e Jean-Louis Trintignant.

3 Personagens centrais no filme, as irmãs Martina (interpretada pela atriz Birgitte Ferdespiel) e Philippa (a atriz Bodil Kjer), como já indica a abertura da história, recebem seus nomes em homenagem a Martinho Lutero e a seu grande amigo Philipp Melanchthon.

4 Frederikshavn é um município da Dinamarca, localizado na região norte, no condado de Nordjutlândia. Atualmente, o município tem uma área de 180 km² e uma população de 34 416 habitantes, segundo o censo de 2003.

5 São várias as referências ao filme como uma metáfora da Eucaristia. Em minhas divagações internáuticas, encontrei um belo texto extraído de um livro que reflete sobre a presença de "Deus" no cinema (chama-se God in the Movies): no Capítulo 5 (intitulado Babette´s feast of love: Symbols - subtle but patent), seus autores - Albert Bergesen e Andrew Greeley - fazem um belo paralelo entre Babette e Cristo (tomando o autossacrifício por amor, presente nos dois casos, como fio condutor). Em outro texto, uma pequena resenha crítica, Carlos Augusto (sem sobrenome) retoma este paralelo que, apesar de não ter as devidas referências, sintetiza de forma bem objetiva: "O filme é repleto de simbolismos cristãos. O banquete em memória do pastor é uma alusão clara à 'Última Ceia' e, por extensão, à liturgia cristã. Para o mesmo, sentam-se à mesa doze pessoas, representando os doze apóstolos. Babette é claramente uma imagem de Cristo: pobre, ela chega misteriosamente a uma pequena comunidade, trabalha como criada e, no final, presenteia a todos com um lauto banquete. Por outro lado, o prato principal servido por Babette chama-se 'Codorna no Sarcófago': Codorna significando 'maná' (alimento espiritual de origem divina que consola a alma); e Sarcófago, palavra vinda do latim, 'sarcophagus', que significa 'aquele que come carne'. Assim, o prato principal é uma evidente alusão às palavras de Cristo: 'Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem come deste pão, viverá para sempre. E o pão que eu vou dar é a minha própria carne, para que o mundo tenha vida' (João 6, 51)". [Trecho transcrito do blog "65 Anos de Cinema", mantido por este autor.]

6 Embora portadora da mesma raiz, o termo"festin" em francês é mais apropriadamente traduzido por "banquete" e não literalmente "festa". Mesmo considerando a natural remissão à idéia da comensalidade que existe na palavra comemoração (o "comer" junto), além da aludida referência à "Última Ceia", o banquete guarda a idéia ritualística e o momento do diálogo, sobretudo da maneira como ocorre o filme. E sem mencionar a remissão explícita ao banquete platônico. Por estas razões, parecer-me-ia mais apropriado que o filme se chamasse efetivamente "O banquete de Babette".

7Não consegui obter o nome da real intérprete de Zerlina, posto que é perceptível a dublagem da cena. A voz (e o papel) de Papin é do barítono Jean-Philippe Lafont.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Uma carta, uma experiência.

Por mais racionais que sejamos, muitas vezes somos incapazes de controlar nossa mente quando é arrebatadas por memórias, lembranças de experiências vividas. Ontem, na aula da disciplina que atualmente curso (Tópicos Especiais em Itinerários Intelectuais e Etnografias do Saber) na Unicamp, foi feito um comentário a respeito de um livro, publicado pela esposa do renomado antropólogo Alfred Kroeber (a Sra. Theodora Kroeber), sobre aquele que, à época, foi alardeado pela mídia não somente como "the last of his tribe" (título, aliás do livro da Sra. Kroeber) mas como o último indígena americano que ainda não teria tido contato com a cultura ocidental(1). Os comentários sobre a síntese do livro (cuja tarefa de expor num seminário a ser apresentado daqui a alguns dias acabei assumindo) me fizeram lembrar de uma experiência de campo que me marcou profundamente: a semana que passei entre os Avá-Canoeiros, na divisa dos estados do Tocantins e Goiás, em julho de 2005 quando, a convite do Guilhermo, fui colaborar na reavaliação do convênio FURNAS/FUNAI, referente à Usina Hidrelétrica da Serra da Mesa. Isso aconteceu logo após o meu retorno da viagem que fizera ao Peru e eu ainda estava meio atordoado com a exuberância de tudo o que havia lá vivido (embora tenha sido uma viagem turística - ao Peru).

Lembro-me bem que, na época, o que mais me tocou foram as histórias ouvidas de um dos sobreviventes da etnia Avá-canoeiro, um homem de nome Iawi (aproximadamente de minha idade - veja algumas fotos neste blog). Além das conversas com ele, os relatos da Eliana Granado (uma antropóloga que há anos tem contato com eles) também foram importantes para ajustar alguns pontos (já que o contato meu com esta etnia foi extremamente rápido).

Pois bem, vasculhando meus alfarrábios cibernéticos consegui, felizmente, localizar o e-mail que havia escrito na época e enviei a algumas pessoas e que dava conta, muito rapidamente do que senti a partir dessa experiência. Foram poucas aquelas que realmente perceberam o valor do que havia escrito. É uma carta simples, sem grandes pretensões, dirigida a alguns alunos de graduação (os que, na época, faziam parte da ESPM Social) e a alguns colegas. Até cheguei a pensar em reescrevê-la com outro olhar (um mais técnico e profissonal), mas resolvi publicá-la do jeito que a escrevi, há quatro anos. Depois, quem sabe, eu me anime a incrementar uma análise mais densa sobre a "experiência" e o "être affecté" ("ser afetado"), dois conceitos fortes vinculados ao próprio exercício etnográfico.

Eis o e-mail:

----Mensagem original-----

De: Prof. Fred Enviada em: domingo, 31 de julho de 2005 10:42 Assunto: Volta das férias, troca de experiência.

"Oi amigos, Tudo bem com vocês??????
Voltei das férias e do trabalho que fui fazer em Goiás. Ainda estou meio nocauteado com tudo o que vivi. A viagem ao Peru foi bem turística e, depois da experiência em Goiás, algo que nem vale muito a pena comentar (tomando uma cervejinha num boteco talvez). Mas o que gostaria de escrever é sobre o que vivi como antropólogo. O Trabalho em Goiás foi além das expectativas. Muito forte e uma das maiores lições que já tive na vida. Posso depois, com calma, contar os detalhes do porquê!!!! Mas o que relato a seguir já dá uma idéia. É realmente algo que deixa nossas vidas renovadas e a certeza de que a relativização da importância de nossos dramas e traumas tem um certo limite. Existem dramas humanos que realmente são, indiscutivel-mente, horríveis. Absolutamente - com todo o sentido que esta palavra possa ter - cruéis. E, no entanto, as pessoas que os sofreram, estão, hoje, de pé, tranqüilas, serenas e, o que é mais importante, super felizes. Quando nos encontrarmos e prosearmos, vocês entenderão o porquê dessas minhas palavras. Há alguns meses fui contratado, como membro de uma equipe da Unicamp, pela CPFL de Campinas para fazer um diagnóstico sobre um programa desenvolvido por Furnas e Funai para compensação do impacto sócio-ambiental da construção da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, na divisa de Goiás com Tocantins (região da Chapada dos Veadeiros). Na época dos estudos para impacto da construção da represa (década de 1980) foi constatada a presença de remanescentes de uma etnia até então dada como extinta no século XVIII: um grupo Tupi-Guarani (etnia sobre a qual tenho um bom conhecimento) chamado Avá-Canoeiro. O fato foi bem noticiado pela mídia da época e a Funai iniciou um processo de aproximação através de uma frente de contato com índios isolados e, por volta de 1983 esses índios foram contatados e iniciou-se um programa para preservação de seu território e cultura, o que resultou, em 1992, na assinatura de um programa oficial coordenado por Furnas e Funai. Atualmente, a CPFL de Campinas possui 49% das ações de Furnas e, com a necessidade de renovação desse programa, ela contratou uma equipe da Unicamp para reavaliar o programa. Eu fui convidado para fazer parte por ser especialista nesta etnia. Todo o processo é bem complicado e técnico demais. O que gostaria de dividir com vocês é algo menos profissional e mais pessoal. Em toda a minha vida – especialmente em meu trabalho em comunidades indígenas - eu nunca tive uma experiência tão singela e, ao mesmo tempo, tão forte. A história dos Avá-Canoeiros é testemunha de algo profundamente humano (no pior e no melhor sentido que essa palavra pode ter). Uma etnia inteira, uma cultura, dizimada por um massacre iolento, com requintes de crueldade que em nada difere (e, às vezes ultrapassa) os piores que já lemos ou ouvimos sobre práticas de torturas. Tudo motivado pelo ódio e o desprezo por aqueles que são diferentes (além, claro, da cobiça por suas terras). Desse massacre (ocorrido em 1969) sobraram alguns poucos indivíduos que fugiram numa diáspora pela imensidão do cerrado, então, quase virgem. Hoje, restam quatro, apenas (seis, contando com dois jovens que nasceram depois do contato pacífico com as frentes de atração de índios isolados, na década de 1980). Representantes de uma cultura que até há 20 anos era dada como desaparecida, exterminada. Gente muito linda, de um bom-humor e um carinho que não vi igual em nenhum povo pelo qual passei, nesses meus anos de trabalho como antropólogo. Uma ingenuidade nobre. Quem os conhece hoje, sem saber de sua história - que dá um sentido bem forte e denso à palavra "sofrimento", não consegue imaginar o que essa gente passou. Depois de ver pais, filhos, irmãos, serem esquartejados diante de seus olhos (o único homem adulto desse grupo, hoje com aproximadamente 42 anos, viu a mãe ser violentada por vários homens e depois ser esquartejada e a cabeça empalada como troféu), viver mais de 20 anos fugindo pelos imensos matagais do cerrado, escondendo-se em cavernas durante o dia, saindo apenas à noite, para caçar e se alimentar.... abortando eventuais filhos que eram concebidos porque as crianças atrapalhavam a fuga (além de seu choro poder denunciar sua presença ao inimigos sempre presentes naqueles matos).E quem são esses inimigos????? Vou usar as palavras do Iawi (este homem do qual falei acima) para um cinegrafista de Goiânia, que fez um documentário sobre eles há alguns anos. O cinegrafista peguntou-lhe: "Mas quem matou sua mãe? Quem atacou o seu povo?". Iawi, tranqüilo, respondeu: "Foi você!!!" Como quem acusa: "Seu mundo, sua sociedade!!!". Essa imagem forte ficou registrada no documentário premiado da Antropóloga Eliana Granado que atualmente trabalha em Furnas e participou da frente de contato com esse grupo, há cerca de 20 anos. Pois é.... essa sociedade, da qual nós tanto nos orgulhamos. Esse mesmo Iawi hoje é um super bem-humorado pai de dois adolescentes lindos (um menino de 18 e uma menina de 16 anos). Futuro???? Bom, para quem tem um passado assim e tem o presente com a qualidade de vida que têm (e isso hoje graças também a essa positiva intervenção do consórcio Furnas/Funai que, com todas as falhas tem conseguido fazer um bom trabalho), não é algo que eu, particularmente, considere tão importante.
Além dos Avá, foi um privilégio ter podido conviver com Eliana, nesse trabalho de campo. E eu fiquei me perguntando todo o tempo: como é que essa gente pode, depois de tudo o que sofreu, ter tanto bom-humor, nos tratar com tanto carinho, como nos trataram?????? Para nós, narcisistas ocidentais, que achamos que nossos problemas são sempre os maiores e mais importantes, é difícil entender. Mas,.... é possível que Rousseau tenha razão. Talvez haja, realmente, algo de bom que seja naturalmente humano. Os Avá hoje vivem um presente bem tranqüilo. Voltamos ontem mato (como se diz no jargão indigenista). Ainda está tudo muito forte - talvez mais do que em nossas mentes, em nossos sentimentos. Enfim..... o que vivi é algo que essas minhas palavras não conseguem expressar nem que fosse possível colocar nelas todo o sentido que eu pretendesse dar. Utilizo-as apenas como uma catarse. Uma forma de dividir com vocês ao mesmo tempo uma indignação, por ser membro de uma cultura tão violenta e, em muitos aspectos, desprezível, mas também uma esperança, por poder fazer parte de uma humanidade capaz de produzir tanta dignidade. Como disse, ainda estou meio nocauteado com tudo. E excitado também. Pensei até na possibilidade de trazer esse caso prá ESPM, como um debate, uma vez que também envolve uma grande empresa (agora, na verdade, duas) e o Estado. Podemos ver isso mais à frente, se considerarem a idéia boa. Deixem-me assentar um pouco mais as idéias. O Eduardo e eu ainda temos o seminário sobre Sartre prá poder organizar. Abração a todos pessoal. obrigado pela paciência de terem lido o email. Até mais.
Fred"


(1) Kroeber, Theodora. Ishi. Last of his tribe. New York. Bantam Books. 1964. Sobre a personagem histórica Ishi, há vários escritos, mas uma boa síntese pode ser encontrada no verbete "Ishi" na Wiki (sobretudo pelas referências de alguns artigos e escritos sobre ele que são feitas no final do verbete). Outro ponto importante mencionado por Suely Kofes é a referência a este personagem feita por Lévi-Strauss nos Tristes Trópicos. Li este livro há muitos anos e não me recordo. Tentarei retomá-lo para localizar esta referência.

sábado, 16 de maio de 2009

Os Fins, os meios e os fins

Uma reflexão sobre Ética e Trabalho1


O universo do trabalho apresenta, em meio a tantas e instigantes contradições, um aspecto bastante interessante: a dificuldade que muitas pessoas encontra em conciliar sua vida profissional com um projeto mais amplo de realização pessoal. Minha idéia é apresentar, neste pequeno ensaio aberto à saudável prática do livre-pensar, alguns pontos para uma reflexão sobre aspectos éticos vividos no mundo do trabalho como forma de contribuição aos estudantes universitários que se preparam para um mercado cada vez mais exigente e complexo, visando chamar sua atenção para este que considero um dos principais problemas no que diz respeito ao comprometimento das pessoas com a atividade que executam.


Antes de prosseguirmos, no entanto, um esclarecimento conceitual é importante. O termo Ética, por ser de uso freqüente no senso comum, está sujeito a imprecisões e incorreções quando se pretende torná-lo um jargão específico, como é o caso aqui. Sobre sua definição, qualquer compêndio introdutório ao tema, vai considerá-lo, principalmente, segundo duas perspectivas clássicas, a saber:


1) Uma primeira abordagem é a da Ética considerada como sendo “o conjunto de regras, princípios ou maneiras de pensar que orientam – ou pretendem certa autoridade para orientar – as ações de um grupo particular”.2

2) Uma segunda, é a de considerar a Ética como um estudo sistemático sobre os princípios morais que regem um determinado sistema de atitudes e condutas. Em outras palavras, uma reflexão sobre “como nós devemos viver; o que faz com que uma ação seja correta e não errada; sobre quais deveriam ser os nossos objetivos...”.3
Nesse sentido, ela adquire um caráter de ciência que foi tratado, ao longo da história da Filosofia, segundo duas concepções fundamentais:

  1. a) a primeira é aquela que considera a Ética tanto como a ciência do fim último (perspectiva teleológica) para o qual a conduta dos homens deve ser orientada, quanto a que estuda os meios (fins imediatos) para atingir esse fim. Aqui a relação entre os meios utilizados para se chegar a determinado fim é deduzida da própria natureza humana;
  2. b) a segunda é aquela que, diversamente da primeira, considera a Ética como a ciência do móvel da conduta humana, ou seja, aquilo que não é determinado pela sua essência, estando portanto, na esfera do contingente. Aqui estão em jogo os motivos ou as causas da conduta humana ou das “forças” (internas ou externas) que a determinam.


Em um outro trabalho, propus uma terceira forma de abordagem (que na verdade é uma extensão da primeira). Isso possibilitaria que fossem ampliadas algumas das perspectivas das questões postas quando se pretende discutir o tema com relação ao universo do trabalho: a da Ética tomada como um sistema de normas e condutas para se atingir um fim específico e idealizado, pautadas em valores que derivam da esfera cultural na qual está inserido o indivíduo e/ou o grupo considerado. Neste sentido, o sistema cultural deve ser tratado como a base que fornece o parâmetro para a definição dos juízos a serem formulados em uma avaliação Ética das condutas de uma forma geral. Esse procedimento é decisivo para uma efetiva tomada de decisões em qualquer processo de escolha, bem como na responsabilização por atitudes. Em contrapartida, os indivíduos – substratos para a existência do sistema cultural – são considerados unidades autônomas, detentoras de vontades, desejos e valores próprios e que, para seu perfeito exercício, precisam conhecê-la da maneira mais consistente possível.


Gosto de pensar no fato de que uma reflexão sobre Ética deve necessariamente comportar uma dimensão utópica. Esta perspectiva nos leva a falar sobre coisas que poderiam ser diferentes de como são; daqueles valores considerados como sendo ideais e que, embora cultuados, muitas vezes estão distantes da realidade vivida pelas pessoas; da concepção idealizada sobre o Bem, a Justiça, a Felicidade; sobre o fim último das ações humanas. Afinal, como definiam os primeiros filósofos da Grécia Clássica, criadores da Ética como uma área sistemática de estudo, o grande objetivo dos “homens de bem” deve ser, em última instância, a busca do bem-estar, da boa-convivência coletiva, em suma, da felicidade a qual todos estão destinados mas que só pode, e deve, ser alcançada na realização plena de uma sociedade justa. Para que isso fosse possível o ser humano deveria ordenar seus desejos e paixões individuais, buscando educá-las, por meio do exercício de uma racionalidade universal. A esse exercício, os gregos chamavam de construção de uma “estética da existência”, mais apropriadamente, uma Ética. Para esses filósofos, falar de Ética, portanto, é falar sobre um estilo de vida, um modo de existência pautado por um princípio primordial: a busca verdadeira da felicidade que implicava, não só em uma realização pessoal, mas principalmente, da realização do indivíduo enquanto inserido em um grupo.
Para alguns dos principais filósofos helênicos – e aqui evoco prioritariamente Epicuro – a fim de que isso fosse possível, deveria ser bastante nítida a necessidade de se estabelecer uma diferença entre os fins últimos das ações humanas e alguns fins mais imediatos (condição para se atingir aqueles), os quais freqüentemente confundimos com os primeiros. E mais, para que se saiba distinguir com mais rigor uns dos outros, é preciso que os homens sejam livres, o que na visão epicurista implicava em saber discernir, entre os desejos que temos, quais são realmente nossos e quais nos foram incutidos de fora, mas que passamos a assumir como nossos. Não que esses últimos não possam existir em nós, mas somente seremos livres se soubermos as reais razões que nos levam a tomar esta ou aquela decisão, o que implica, em última instância, em saber quais os reais motores que impulsionam nossas escolhas.


Tal dimensão utópica resguarda um quê de poesia e lirismo, sem os quais a vida humana estaria fadada à esterilidade típica de uma mediocridade a qual nosso mesquinho cotidiano tenta nos impingir. Aliar prazer e labor parece, à maioria dos comuns mortais, uma fantasia quase inacessível. O que, convenhamos, não é um fenômeno raro em um mundo absurdamente superficial.


No que diz respeito ao processo de escolha de uma carreira profissional, ao longo de minha experiência docente, vejo, com grande preocupação, um certo esvaziamento da capacidade que a maioria de meus alunos tem demonstrado em assumir um vínculo entre a carreira que escolhem e sua própria realização pessoal. Como se houvesse um fosso entre suas vidas e o trabalho que realizam. Ou como se este último fosse algo apartado daquela, que acaba por se transformar em uma realidade árdua e dolorosa que deve ser assumida como a parcela de sacrifício que se deve fazer para (sobre)viver.
Resgatar esse vínculo é, a meu ver, fundamental caso haja uma preocupação mínima com algum bem-estar que seja mais consistente na vida dessas pessoas, isso para não falar em realização pessoal e felicidade de uma maneira mais ampla e verdadeira. O resultado desse processo é que, com muita freqüência, o mundo do trabalho é repleto de pessoas que, se não são propriamente infelizes, não se sentem minimamente realizadas em uma parcela crucial e vital para sua existência. Pessoas que, quando não são amargas, são completamente apáticas e indiferentes no seu universo de trabalho.


Considerado a partir de uma perspectiva bem simplória, porém contundente, o problema assume proporções ainda mais dramáticas se pensarmos que boa parte de nossa existência consciente (pelo menos 50%) é gasto em função do nosso vínculo com o trabalho. Sobre esse fenômeno cada vez mais comum, um dos aspectos importantes que, penso, deve ser considerado, é o grande estresse que as pessoas sofrem ao “escolher” um trabalho, ou mais apropriadamente, uma carreira. Essa pressão pode ser manifesta de múltiplas maneiras (muitas vezes simultâneas): exigências e dificuldades de mercado; pressões familiares (afirmativas – “Gostaria muito que meu filho fosse um grande Xlx!” – ou negativas – “Tal carreira não dá camisa a ninguém!”); influência de modismos etc. Outro tópico relevante diz respeito aos limites e às reais condições e oportunidades que as pessoas têm para concretizar suas convicções profissionais (principalmente nos raros casos em que ela ocorre). Finalmente, porém não menos importante, a falta de uma boa formação fundamental, limita o próprio processo de escolha. Tudo isso sem mencionar o fato de que em geral não se sabe filtrar o que é, de fato, o desejo real do indivíduo, e o que é um desejo que brota de sua relação com o mundo em que vive.


Para pensarmos de fato em uma ética mais apropriada ao exercício do trabalho das pessoas, proponho que façamos duas distinções importantes: a primeira delas é aquela entre fins imediatos e fins últimos nos processos de escolha; a segunda, intimamente vinculada à primeira, entre uma concepção de trabalho e uma outra, a de profissão.
Com respeito à primeira distinção, é fundamental que as pessoas se questionem sobre seus reais desejos e projetos para sua vida como um todo, o que, fatalmente as levaria a estabelecer uma separação do que se quer como perspectiva de vida (fins últimos) e quais são os degraus que é preciso galgar para se chegar lá (fins imediatos). Na sala de aula, como exemplo, costumo lançar a seguinte questão: “Por que trabalhamos?”, e a resposta incontinenti (com suas devidas variações) é: “Para ganharmos dinheiro!”. Ora, isso revela uma total ausência de uma perspectiva mais aprofundada da visão que as pessoas têm do seu próprio trabalho. A preocupação com o bem-estar material, revelada pela idéia de “ganhar dinheiro”, engloba totalmente o que deveria ser a principal preocupação (no sentido de que é a mais densa e está no fundamento da busca pelo dinheiro) que é o bem-estar e a felicidade dessas pessoas. Afinal, para quê queremos ganhar dinheiro? Ao invés desta pergunta, quando interpelados sobre esse fato da superficialidade, os alunos praticamente a invertem: “Mas como seremos felizes se não tivermos dinheiro?” . Essa lógica rasa, inversa e imediatista impera com uma assombrosa força nos vários ambientes de trabalho nos quais já investiguei e freqüentemente é trazida para o universo da sala de aula, muitas vezes sob a forma de angústias, insatisfações e amargura com relação ao ambiente de trabalho.


O segundo aspecto da questão é o que diz respeito à baixa consciência profissional que é comum nos vários ambientes de trabalho. Nas minhas enquetes, foram muito poucas as pessoas que se referiram a si próprias como “profissionais”, ao passo que a maioria se identificava como “trabalhadoras”. A questão que nos interessa aqui é que, ao construírem a categoria “profissionais”, as pessoas demonstravam uma maior consciência do vínculo que deveria ser estabelecido entre o trabalho que desenvolviam e a sua própria perspectiva de vida, o que já não ocorria quando as pessoas se identificavam como “trabalhadoras”, o que implicava em uma visão que estavam realizando uma tarefa para a qual qualquer pessoa poderia ser designada e, mais, hoje faziam aquilo, mas amanhã poderiam estar fazendo uma outra coisa qualquer.


A ética, portanto, tomada no sentido considerado no princípio deste texto, pode ser um instrumento importantíssimo para se pensar esse tipo de questão, auxiliando as pessoas a agirem de forma mais consciente, proporcionando-lhes um instrumental para que, ao escolher uma carreira, escolham e definam um estilo de vida bem condizente com seus desejos mais íntimos.


1 Este ensaio foi originalmente escrito em 1999 e publicado na Revista Interna da Faculdade Paulistana de Ciências e Letras. Está passando por um processo de revisão e alteração de alguns pontos.

2 Singer, Peter (ed.). 1994. A Companion to Ethics. Blackwell. Oxford. p.4

3 Singer, Peter (ed.). idem. p.3

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Um poema, uma janela

Em um dia extremamente agitado como foi o de hoje, receber um poema de presente é um privilégio que não tem qualificativo. Provocar pensamentos, sensações... viagem solta do imaginário. O mais gostoso de tudo: poder sentir a verdade contida em suas palavras. Sem clichês ou lugares-comuns, deixo-o aqui, registrado para quando dele sentir saudade e quiser reviver.




A Arte de Ser Feliz
(Cecília Meireles)

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio,
ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem,
para as gotas de água que caíam de seus dedos magros
e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Às vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela,
uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente,
que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


sexta-feira, 8 de maio de 2009

Sobre conflitos, zoocídio e a imprensa.

É no mínimo curiosa a aparente incapacidade do ser humano de superar a idéia da competição a que me referi em outro artigo aqui neste blog ("Sobre egos e álteres"). Essa sensação de que é necessário (como se uma força "natural" estivesse a nos impulsionar), a todo tempo, provar-se melhor que o outro. É claro que não me refiro à competição saudável, disputa estimulante, aquela comparação que faz com que sejamos impulsionados rumo a um melhor desempenho em nossas próprias concepções. Certamente sou pouco original em afirmar isso, mas a melhor metáfora já inventada para a ela se referir é a do esporte: canalizar a energia competitiva numa arena saudável e construtiva (pelo menos em princípio e tese). No esporte, principalmente quando se trata do esporte não profissional, somos levados a tomarmo-nos como referência para que possamos ir sempre além de nós mesmos. Vencer o outro é um estímulo para que possamos ultrapassar nossos próprios limites, crescendo sempre, na proporção em que investimos em nossa atuação. Ousaria afirmar que vencer o outro é quase uma consequência da superação deste próprio limite.

Em outro lugar já refleti sobre um contraponto entre esta metáfora e a da guerra para falar da competição. Metáforas, aliás, nada originais, bem sei (como já dito). Mas que importa, se elas possuem o vigor das coisas óbvias?

Esta semana começou, pelo menos para mim, com uma imagem - que para mim foi bem forte - veiculada nos noticiários televisivos. Diante da determinação do governo egípcio de exterminar o rebanho porcino em seu território - rebanho este de proporções pequenas, posto que só o possui a minoria cristã, os Coptas(1) - teve início um confronto entre policiais (supostamente alegando a manutenção da ordem e o cumprimento da "lei") e grupos de critãos e muçulmanos.

Não quero aqui me ater às filigranas das muitas discussões que o caso suscita e que remontam aos clássicos pontos das teorias antropológicas a respeito da identidade étnica, ao etnocentrismo e à intolerância à diferença com relação a um "outro" contra quem se insiste em se autoafirmar (voltamos ao tema da competição - a minha afirmação tange, de alguma forma, a "destruição" - física ou metafórica - desse "outro"). A imagem exibida era a de um tumulto e, de repente, no meio dele, uma cena curiosa: um rapaz saca de dentro de um carro, cujo vidro dianteiro havia sido quebrado na confusão, pendurado no retrovisor, um pequeno crucifixo e o exibe para a câmera de um jornalista que estava diante dele. Não conseguia ouvir o que ele bradava por conta da intervenção da narrativa da notícia (mas tampouco iria adiantar se tivesse ouvido, posto que não compreendo o árabe). No entanto isso não era necessário. A imagem falava por si só: seu rosto era suficientemente eloquente na expressão de um misto de fúria, indignação e protesto. Contra quê? Certamente não contra a literal matança dos porquinhos. Esta, na verdade, se constituía como mais um combustível na já longa e infindável história de conflitos étnico-religiosos do Egito. O que conseguia ver naquela cena era um protesto contra a intolerência, contra o ódio. Independentemente do que ele poderia estar a dizer, confesso que gostaria de ter ouvido "Deixem-nos em paz! Queremos respeito pela nossa fé!"

Essa imagem me arrebatou o pensamento com tal intensidade que acabei me desconcentrando e perdendo o restante do noticiário. Tampouco o telejornal que a transmitiu lhe deu qualquer importância (fora o fato de a ter escolhido para a transmissão, mas que se perdeu, em meio a tantas outras - mas não para mim), na medida em que, para o cardápio quase sempre insosso dos noticiários, falar da "nova gripe" era mais importante do que entrar no debate de como esses elementos (gripe e porcos) acabaram por conferir um novo combustível à intolerância étnica. No caso, da maioria muçulmana contra a minoria copta. Mas poderia falar aqui um outro tanto sobre a questão mexicana.

Voltemos aos porquinhos. De repente, os supostos algozes dessa nova atrocidade, como se já não tivessem sofrido estigma de sujidade suficiente ao longo de boa parte da história humana (pelo menos na parte do planeta mais influenciada pela tradição hebraica no seu sentido lato - não nos esqueçamos que, apesar de todos os conflitos de que somos testemunhas, também a tradição islâmica, e não somente a cristã, está visceralmente vinculada à religião dos antigos hebreus), estavam agora em meio a um turbilhão de ódio e intolerância étnicos. Por alimentar o estômago de alguns, os porcos também servem para alimentar o ódio de outros. Parece que, mesmo indiretamente, tentam nos afirmar: "Os porcos são os culpados do conflito, não a intolerância e o ódio humanos".

É óbvio o fato de que os porcos não são o problema. Muito menos para a tal gripe. Pelo menos não para a OMS que faz questão de assim afirmar insistentemente, a despeito da deplorável postura de muitos veículos de comunicação (principalmente os televisivos). Muitos deles, ao mesmo tempo em que noticiam a orientação da OMS de não mais se referir ao novo flagelo com o zoônimo "suíno" (não só pelo motivo de impedir o zoocídio generalizado e completamente desnecessário desses pobres seres) têm nos seus âncoras - pelo menos nas principais emissoras brasileiras(2) - a insistência em repetir, de modo profuso e contundente, o qualificativo para aquilo que alguns dos seus próprios jornalistas, ao dar a notícia, chamam de "nova gripe". Já faz mais de uma semana que saiu a orientação da OMS, fato este acintosamente obliterado pela mídia em geral.

A questão não é somente a de salvar os porquinhos ou mesmo a sua reputação dissociando-os do vírus. Eles já estão fisicamente condenados uma vez que são criados como pasto da ânsia alimentar humana. Nem tampouco a de se adotar uma doutrinária militância anti-etnocêntrica tout court. Mas é a da responsabilidade de se adotar uma postura coerente em que, ao mesmo tempo dê conta da notícia, da informação, seja ética e responsável na formação da opinião de um senso comum que, certamente, ocorrerá.




(1)
Transcrevo aqui uma informação que considerei útil ao leitor, retirada do site de uma editora católica cujo endereço se encontra abaixo: "Os Coptas são os cristãos do Egito, que no século V adotaram o monofisismo condenado pelo Concílio de Calcedônia (451). No século XVI uma parte da população copta reuniu-se à Igreja Católica, reconhecendo o primado de Pedro. Os dissidentes já não professam a heresia que lhes ocasionou a origem. Estenderam sua pregação até a Etiópia, onde também existem comunidades coptas.A palavra copta deriva-se do árabe Qoubt, que é a deformação do grego Aigyptioi. Designa as habitantes do Egito anteriores à invasão árabe (século VIII) aderiram ao Evangelho no início da era cristã, mas no século V abraçaram a heresia monofisita, que o Concílio de Calcedônia (451) condenara. Formaram assim a Comunhão Egípcia Copta com ramificações na Etiópia (Abissínia). A partir do século XVI muitos dos dissidentes se uniram à Sé de Pedro em Roma de modo que há atualmente coptas separados da Igreja Católica e outros (em menor número e somente no Egito) unidos à Santa Sé."
Fonte: Editora Cleofas

(2) Estou me referindo especificamente aos telejornais da TV Globo (aberta e Globonews) e ao Jornal da Band que são os que assisto com mais frequência. Nos jornais impressos e na internet esta questão é menos frequente.

Pequenas ações constroem um mundo mais solidário.

Em julho de 2002, pela primeira vez na história da ESPM, um grupo de alunos reservou suas férias para um programa bastante inusitado: nada de mochilar pela Europa ou em algum lugar exótico no Pacífico Sul; nada de viagem a algum país para uma imersão em língua estrangeira; nada de praias, fazendas, casa da avó, descanso. Ao invés disso, muito trabalho! No lugar de fazer um investimento em seu capital profissional e técnico, eles preferiram investir no capital social, a partir de uma proposta elaborada pela própria escola: viajaram para o Nordeste brasileiro para participar do programa Universidade Solidária, que levava estudantes universitários de grandes centros urbanos para partilhar seus conhecimentos com comunidades social e financeiramente carentes, ajudando a resolver problemas de desenvolvimento social e humano nas regiões mais pobres do Brasil.

Essa iniciativa, concebida e concretizada pelo idealismo do professor Ismael Rocha, logo encontrou em um grupo de alunos - e no autor deste texto - todo o apoio de que necessitava para que fosse colocada em prática. Muitos questionaram sobre as efetivas contribuições que os alunos da ESPM poderiam dar e que não caíssem no mero e tradicional "assistencialismo". Afinal, os trabalhos voluntários no Brasil estão muito voltados para a área de saúde, assistência social e alguns projetos de desenvolvimento econômico. Porém, posso afirmar com a experiência de quem atuou mais de dez anos em comunidades rurais e indígenas em várias regiões do Brasil que, em sua grande maioria, tais projetos emperravam justamente naquele ponto em que os alunos da ESPM puderam oferecer sua melhor contribuição: na inserção no mercado dos produtos e serviços oriundos dessas iniciativas de caráter econômico possibilitando, com isso, um real retorno para as comunidades que os produzem.

Foram duas as equipes formadas, cada uma com 10 alunos dos cursos de Comunicação e Administração (à época, os únicos cursos que havia na ESPM). Uma, sob a coordenação do prof. Ismael Rocha, foi para a cidade de Belém de Maria, no agreste pernambucano. A outra, coordenada por mim, foi para a cidade de Maragogi, no litoral de Alagoas. Ambas, cidades muito pobres, mas com projetos de iniciativa econômica que precisavam justamente desse incentivo na área de Marketing, Comunicação e Gestão para se desenvolver. Em Maragogi, inclusive, um outro projeto trouxe para a própria ESPM uma contribuição inesperada da mais alta relevância: por solicitação da prefeitura do município, um aluno de Administração elaborou um diagnóstico dos problemas administrativos enfrentados pela gestão municipal apresentando, ao final, um plano de ação para melhorias nas áreas mais deficitárias. Esse trabalho resultou não somente em propostas muito bem estruturadas que foram elogiadas pelo prefeito, como trouxe para a ESPM uma preocupação com a Administração Pública que passou a integrar o cardápio de disciplinas optativas.

As equipes permaneceram nesses municípios por três semanas (exatos 21 dias) em condições bastante modestas de instalação fato que, diga-se de passagem, aumentou ainda mais o espírito de cooperação e a solidariedade na equipe. Ali, mais importante até do que os trabalhos técnicos desempenhados com um grande profissionalismo, vivenciaram experiências de contato com uma realidade social bem difícil, bem distinta daquela com que sempre lidaram: visitas a assentamentos do MST, trabalhos com professoras da rede pública de ensino (as alunas envolvidas nesse projeto chegaram a elaborar um livro - não publicado - com visões de mundo dessas professoras), visitas a favelas, grupos de pescadores, organização de gincanas, festivais de comidas típicas e revitalização da cultura local, enfim, um sem-número de atividades que certamente tornaram esses alunos, hoje já formados e profissionais bem estabelecidos em suas carreiras, pessoas com uma visão diferenciada da realidade e com uma consciência igualmente diferenciada de seu papel como cidadãos na construção de um Brasil (e um mundo) mais humano e mais igualitário. Para esses alunos, fazer carreira, lograr êxito profissional, construir projetos individuais não são objetivos incompatíveis com a sua contribuição (do seu tempo, do seu esforço, do seu trabalho) para que esse mundo seja realmente um mundo melhor.

Naquele momento, em que não somente a discussão mas, principalmente, as ações de responsabilidade social davam seus primeiros passos consistentes na ESPM, tal iniciativa representou para a ESPM SOCIAL, que estava nascendo, um forte impulso em sua consolidação. A partir daí, muitas histórias puderam ser vividas. Outras experiências semelhantes (em outras cidades do Nordeste e no Vale do Ribeira – região mais pobre de São Paulo) puderam ser partilhadas o que, como ganho adicional, consolidou ainda mais laços de amizade e companheirismo entre os alunos que dela participaram.

Resolvemos os problemas sócio-econômicos dessas comunidades? Certamente não. Nem tínhamos essa pretensão megalômana. Entretanto, deixamos lá uma pequena contribuição para que aquelas pessoas pudessem caminhar com novos conhecimentos. Mas a herança mais nobre e profunda certamente não foi a deixada por nós; foi a plantada por eles em nossas vidas: a de que é possível ser digno e nobre mesmo nas condições mais adversas. A pobreza não está necessariamente na ausência de bens materiais, mas na ausência de perspectiva de que o mundo pode ser bom e que a vida é um constante desafio a ser enfrentado de cabeça erguida. Perspectiva, aliás, inserida no próprio logo da ESPM Social.
(Este artigo foi publicado no Jornal da ESPM Social em maio de 2009.)
Fred Lucio, antropólogo e professor da ESPM-SP.
Coordenador da ESPM Social

Palavras Iniciais

Olá,

Bem vindo a um espaço que, antes de mais nada, é despretensioso. Ou melhor, se há alguma pretensão é a de exercitar a arte da escrita, refletindo livremente sobre fatos, idéias, cinema, filosofia enfim, tudo o que valer a pena pensar.

Como se não bastasse a exigência da profissão, eu mesmo me impus a necessidade de registrar meus pensamentos os quais, reconheço, considero valiosos pela única e exclusiva razão de serem meus, de representarem meu ponto de vista sobre as coisas. Nada mais. É, pois, nesse exato sentido que me refiro à ausência de pretensão. Quero apenas falar. Falar livremente. E se o transeunte cibernético que por aqui se aventurar sentir que vale a pena iniciar um diálogo a respeito das idéias apresentadas (as quais, já adianto, não serão tão aprofundadas), vou sentir que terá alguma utilidade para além da minha própria extravasão.

Apesar de relativamente antigo, eu me esqueci completamente da criação deste espaço. Nele havia deixado, oculto, um único texto que resolvi publicar mesmo estando inacabado. A ele retorno com o propósito de alimentá-lo com mais frequência, o que para mim será extremamente benéfico, inclusive do ponto de vista pessoal. Vou aproveitar para registrar outros escritos, feitos em outras épocas - pré-internáuticas ainda - que certamente revelarão um outro Fred (principalmente para aqueles que já me conhecem).

Espero que o leitor que por aqui passar possa encontrar alguns pontos sobre os quais pensar. E, se sua generosidade permitir, deixar a contribuição de suas opiniões e seus pensamentos a respeito do que encontrar registrado para, inclusive, provocar minha contrarreflexão.

Boa leitura e obrigado pela visita.
Fred

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