sábado, 4 de outubro de 2014

Tom e Jerry politicamente incorretos


Nesta última semana, a Amazon.com e a Apple (via iTunes) reacenderam a discussão sobre o politicamente correto ao divulgar um anúncio no seu portal de vendas dos vídeos do clássico desenho "Tom & Jerry", alertando os internautas sobre possíveis interpretações preconceituosas de caráter racial ou étnico. Em suma, o conteúdo afirma:

"Os curtas de Tom e Jerry  podem retratar preconceitos que uma vez eram comuns na sociendade estadunidense. Tais representações eram errôneas naquela época e continuam erradas hoje em dia. Enquanto elas não representam a visão da Warner Bros. da sociedade atual, esses desenhos estão sendo apresentados da maneira como foram criados. Fazer de outra forma seria ignorar que esses preconceitos jamais existiram."

Isso não é propriamente uma novidade. Há alguns anos (2004), quando a série foi lançada em DVD, a atriz Whoopi Goldberg protagonizou um vídeo introdutório à Tom and Jerry Spotlight Collection em que ela discorre uma advertência aos compradores sobre esses problemas. Quem é fã do desenho (principalmente os quarentões e acima), lembram-se da personagem negra e gorda, uma empregada da casa (Mammy Two-shoes) que nunca aparecia com o rosto e que quase sempre era colocada em situações ridicularizantes pela dupla. Além disso, há episódios registrados em que o ratinho Jerry é pintado de negro, numa clara alusão ao período áureo do racismo norteamericano nas telas em que personagens negros eram interpretados por atores brancos com rostos pintados (cuja expressão clássica é o ator Al Johnson). 

 Evidentemente que, antes de pretender reacender a discussão sobre o politicamente correto nos desenhos animados (que, neste caso aqui específico, foi mais consequência que causa), o que essas empresas almejaram foi a precaução contra a eventual indústria dos processos  judiciais que assola a sociedade americana contemporânea. 

Mas fica a questão para pensarmos: independentemente de relativizarmos essas práticas com relação à sua época (sob o risco de cairmos num juízo anacrônico e injusto se não o fizermos), a discussão sobre o politicamente correto (e o seu outro extremo, o politicamente incorreto) nos leva a ponderar quais os limites entre a simples "piada" e a "humilhação", o "vilipêndio? Esta questão é muito semelhante àquela que fazemos sobre um fenômeno antigo, mas com uma denominação relativamente nova que é o "bullying". 

Esta não me parece uma questão tão simples assim de ser resolvida. O politicamente correto é uma expressão que começou a ganhar força a partir do final da década de 1980 e se consagrou na seguinte. Com o avanço das conquistas antirracistas, antissexistas e anti toda forma de preconceito e discriminação no campo social, desta vez foi a linguagem o alvo de acusações ao ser entendida como o principal meio de veiculação de preconceitos. Assim, palavras como o verbo "judiar" (que remete ao sofrimento imputado a Jesus Cristo pelos judeus) ou "denegrir" (que associa a ideia de negro a uma conotação negativa), assim como tantas outras, passam a ser alvo de críticas e reavaliações. Até aí, nenhum problema. Afinal, uma reflexão sobre as relações entre as "palavras" e as "coisas" - e suas consequências sociopolíticas, assim como a sua historicidade - desde há muito ocupa o cerne do debate acerca das construções simbólicas inconscientes que fazemos quando as utilizamos (o que já foi bem tematizado pela filosofia, psicanálise, antropologia e linguística). 

Da reflexão sobre os eventuais problemas de preconceito, estereótipo e discriminação à concretização de um patrulhamento ideológico exacerbado é um pulo. De repente, com o avanço e consolidação da ideologia do politicamente correto, como uma verdadeira caça às bruxas, cria-se uma perseguição ao que passa a ser considerado incorreção em que tudo vira alvo de crítica e ataque. Como os antigos inquisidores que viam bruxas em todo canto, quase nada escapa aos olhares supostamente atentos dos guardiões do politicamente correto. Começa a crescer uma sanha moralizante intolerante e as deturpações do combate ao que seria de fato o problema (atos discriminatórios, racistas, sexistas e congêneres) ganha a cena. Inaugura-se uma hipertrofia do formalismo que, aos poucos, vai gerando uma tensão no campo social, só que ao revés do problema anterior. O tiro parece ter saído pela culatra. 

Isso vai gerar há bem pouco tempo o movimento do politicamente incorreto, que aos poucos vai acabar caindo na contramão do exagero da permissividade. É como se, na reação aos arroubos da defesa da dignidade promovida inicialmente pelo politicamente correto, voltássemos ao estágio anterior: não são raras hoje as pessoas (inclusive renomados intelectuais) que vem defendendo o direito de ser politicamente incorreto contra o que classificam como a "babaquice" do politicamente correto. Mas isso (e todos os desdobramentos daí decorrentes) é uma outra discussão. 

O problema é ainda aumentado quanto, da esfera da linguagem, o politicamente correto avança terreno sobre as artes em geral, em particular aquelas produzidas e veiculadas pelos meios de comunicação: filmes, músicas, literatura e, sobretudo, os tradicionais programas humorísticos que quase sempre se valeram dos esterótipos (principalmente negros, mulheres e homossexuais) para se afirmarem como "engraçados". E, todos sabemos, do riso espontâneo ao escárnio, deboche, humilhação é um pulo. E isso está tão arraigado em nossas mentes que aprendemos desde a "inocência" desses cartoons como é o caso de Tom e Jerry (e tantos outros). 

A questão Apple/Amazon me parece um pouco evidente: vejo-a mais como uma precaução para evitar possíveis ações judiciais por injúria (racial, étnica, gênero etc.). Que o efeito colateral disso seja o de retomar o debate acerca do politicamente correto, parece-me uma leitura pertinente e apropriada. O que é preciso estar atento, na minha opinião, é para algo que a sociedade parece não valorizar muito, mas que, nesses casos, é preciso ter sempre em mente: o "bom senso"! Dito assim, rapidamente, pode parecer algo muito subjetivo, mas é preciso nunca esquecer que, desde os primórdios da Filosofia, o exercício da racionalidade está quase sempre associado à ideia de "equilíbrio", e ambos subjazem à ideia de "bom senso". Basta nos lembrarmos da própria imagem de nossa Justiça (uma balança);  e também palavras como "fair" na língua inglesa que nos remetem a este equilíbrio. 

Tanto de um lado (politicamente correto) quanto de outro (politicamente incorreto), parece-me que seria necessário o resgate deste bom senso. Ter a capacidade de perceber esses limites entre o riso e a humilhação. Para isso, é fundamental que se tenha noção do lugar a partir do qual se fala e com quem se fala. Ter, por exemplo, consciência de que um lugar nos meios de comunicação de massa tem um significado totalmente diferente (sobretudo pelo seu "poder" de comunicação e difusão de ideias e valores) de uma roda de amigos.

E, para isso, seria interessante que ocorresse algo que me parece utópico: que fôssemos mais racionais do que habitualmente estamos acostumados a ser. Que usássemos mais a nossa capacidade de pensamento para poder manter este equilíbrio entre o estado jocoso de uma simples brincadeira e uma ofensa ou humilhação.

O exagero em qualquer esfera da vida não parece ser confortável nem apropriado. 

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Leia mais sobre o caso Amazon nos links abaixo:

1) Jornal da Cultura (TVCultura): Tom e Jerry reacendem debate sobre o politicamente correto.
2) Estadão: Tom e Jerry eram racista, adverte Amazon.
3) Portal UOL: Tom e Jerry | Episódios exibidos na Amazon e iTunes vêm com aviso de racismo.
4) Portal G1: Serviço de streaming inclui aviso de racismo em desenho 'Tom e Jerry'.

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Olá,

Bem vindo a um espaço que, antes de mais nada, é despretensioso. Ou melhor, se há alguma pretensão é a de exercitar a arte da escrita, refletindo livremente sobre fatos, idéias, cinema, filosofia enfim, tudo o que valer a pena pensar.

Como se não bastasse a exigência da profissão, eu mesmo me impus a necessidade de registrar meus pensamentos os quais, reconheço, considero valiosos pela única e exclusiva razão de serem meus, de representarem meu ponto de vista sobre as coisas. Nada mais. É, pois, nesse exato sentido que me refiro à ausência de pretensão. Quero apenas falar. Falar livremente. E se o transeunte cibernético que por aqui se aventurar sentir que vale a pena iniciar um diálogo a respeito das idéias apresentadas (as quais, já adianto, não serão tão aprofundadas), vou sentir que terá alguma utilidade para além da minha própria extravasão.

Apesar de relativamente antigo, eu me esqueci completamente da criação deste espaço. Nele havia deixado, oculto, um único texto que resolvi publicar mesmo estando inacabado. A ele retorno com o propósito de alimentá-lo com mais frequência, o que para mim será extremamente benéfico, inclusive do ponto de vista pessoal. Vou aproveitar para registrar outros escritos, feitos em outras épocas - pré-internáuticas ainda - que certamente revelarão um outro Fred (principalmente para aqueles que já me conhecem).

Espero que o leitor que por aqui passar possa encontrar alguns pontos sobre os quais pensar. E, se sua generosidade permitir, deixar a contribuição de suas opiniões e seus pensamentos a respeito do que encontrar registrado para, inclusive, provocar minha contrarreflexão.

Boa leitura e obrigado pela visita.
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