quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Uma polícia que se impõe pelo medo


Para aqueles que moram, como eu, em bairros de classe média da paulicéia não é muito frequente presenciar cenas chocantes de ação policial. Por isso, é de assustar quando você se depara com uma ação truculenta de policiais militares, bem ao seu lado, em plena rua movimentada numa tarde ensolarada, próximo do horário de almoço. Confesso que fiquei bem tenso com o que presenciei. 

Subindo tranquilamente uma das principais ruas da zona oeste de São Paulo (Teodoro Sampaio), rumo ao metrô, começou uma movimentação alvoroçada de motos e viaturas da PM. A rua estava abarrotada de gente, até porque tudo aconteceu próximo às instalações de um dos maiores complexos hospitalares da América Latina (o Hospital de Clínicas da USP) e o IML. Era horário comercial, por volta das 14h00m de um dia de início de semana. Para uma viatura próximo à calçada e, do nada, saem uns policiais com fuzis e revólveres, partem uns 5 deles em direção a um único senhor (negro, claro) que estava andando na calçada. Empurraram-no contra a parede. Revistaram-no de forma bem bruta e truculenta, humilharam-no. As pessoas passavam pela cena, desviando-se das armas e dos policiais sem ter muito o que fazer. Isso, por si só, já é de uma falta de bom senso imperdoável: como policiais sacam armamento pesado no meio da multidão? Não havia o menor indício de que algo violento estivesse acontecendo que justificasse esta atitude. E, de fato, parece que não era nada porque logo liberaram o homem. A nítida impressão que tive é de que era um "circo" para poder justificar algo que não consigo imaginar.

Eu, acompanhando tudo do outro lado, louco para filmar com o celular, mas cadê coragem! Todos os policiais estavam armados até os dentes. E eram muitos (contei, pelo menos 3 viaturas, e umas quatro motos). Isso, sem mencionar algumas que haviam subido momentos antes a rua entrando no Av. Dr. Arnaldo. 

Continuei subindo em direção ao metrô. Um misto de indignação, revolta e medo. Mas a coisa não parou aí. Eles avançaram um pouco mais na rua, novamente pararam próximo a mim (do outro lado da rua), desta vez em frente à Faculdade de Medicina da USP. Novamente, uns 5 policiais encostaram outro senhor (negro, claro) contra a parede e a cena se repetiu. Foram chegando mais viaturas e motos. Perdi a conta de quantos eram. Não sei se o senhor abordado era bandido ou não. Mas o que vi, me revoltou! Ele estava desarmado (porque tiraram tudo dele e jogaram seus pertences no chão). Desta vez, algemaram o cara e o colocaram numa viatura. Em nenhum momento ele resistiu a qualquer das grosseiras investidas dos policiais.

Enfim, era uma truculência que me fez duvidar que estamos vivendo num estado democrático de direito. E quantidade e tamanho das armas me assustou. Pessoas aos montes passavam pela calçada, cabeças baixas - algumas expressavam o mesmo medo que eu. Não tenho vergonha de confessar: me bateu um baita medo de sair, do nada, um tiroteio e que uma tragédia acontecesse. E nojo de pensar no quanto uma operação destas estava custando aos cofres públicos. 

Esta cena aconteceu num momento em que havia poucos dias eu fora convidado para fazer uma palestra no grupo de política do Diretório Acadêmico da faculdade exatamente sobre a desmilitarização da polícia. Este tema, lembremos todos, ocupou muito a cena social, política e midiática da sociedade brasileira em 2013 por ocasião do início das manifestações, sobre a desmilitarização da polícia. (Confira o dossiê que disponibilizei num link abaixo.)

Falar de polícia é mexer com a Constituição, uma vez que nela existem alguns dos artigos que regulamentam a área de segurança como uma das obrigações do Estado. Mais do que isso, é mexer numa tradição autoritária e, muitas vezes, truculenta que marca a presença do Estado na vida das pessoas. Por este motivo, existem algumas Propostas de Emenda Constitucional (as chamadas PECs) propondo alterações nas Polícias. Delas, uma das mais completas é a PEC-51.

Uma das principais justificativas para estas propostas são justamente as críticas à atuação truculenta da PM (exatamente como a que presenciei): esses caras são treinados, pela ideologia militar, a tratar a sociedade como um inimigo a ser combatido e a ser eliminado. Em atos como os que presenciai, parece que o que está diante deles não é um cidadão. Não tem direitos a serem respeitado. Isso não existe nesta ideologia! Ainda que tenha praticado algum crime sério, o Estado não pode simplesmente jogar suas leis na lata do lixo e, mesmo que com a autoridade policial, fazer justiça com as próprias mãos. Decidir se o indivíduo a ser abordado é ou não bandido não é seu papel! Isso é de um autoritarismo inaceitável. É de uma violência asquerosa. E é isso o que compromete fundamentalmente a imagem e a atuação da Polícia Militar.

Fundado no preceito teorizado por Weber no campo sociológico na virada do século XIX para o XX, uma marca do Estado moderno é justamente a necessidade de forças auxiliares para a manutenção da ordem (seja a "sua" ordem; seja a ordem democrática). Um dos pressupostos da teoria política de Weber é a ideia do Estado como detentor do monopólio do uso da força. Nas palavras do autor:

“Sociologicamente, o Estado não se deixa definir a não ser pelo específico meio que lhe é peculiar, ou seja, o uso da coação física. A violência não é o único instrumento de que se vale o Estado, mas é seu instrumento específico. Todo Estado se funda na força. O Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito o monopólio legítimo do uso da força.”  

Max Weber, A política como vocação

É assim que, dos exércitos constituídos para garantia da soberania, fronteiras e demais temas de interesse do Estado até a constituição de polícias internas para manutenção da ordem (ideia que, na modernidade, teria surgido quando da Revolução Francesa e a criação da Gendarmerie Nationale para a segurança do "cidadão" - e não apenas do Estado - uma vez que este era um dos preceitos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão) os Estados contemporâneos tem mantido esta prerrogativa do monopólio do uso da força. No Brasil, a primeira guarda independentemente do exército teria sido a  criada por D. João VI (1809), que foi a Guarda Real da Polícia. A partir daí, uma série de desdobramentos vai levar à sua criação nas províncias (a partir de 1831) até que estas divisões são regulamentadas pela Constituição de 1891, da República oriunda de um golpe militar. É nesse momento que, pela primeira vez, o termo "militar" é incorporado, passando-se à denominação de Corpos Militares de Polícia. A partir de conflitos como a Guerra do Contestado e a necessidade que o Exército brasileiro teve do apoio das polícias regionais, foi estabelecida esta vinculação entre elas e o exército brasileiro, o que persiste na nossa atual Constituição. Paralelamente, foram surgindo forças de auxílio no patrulhamento e investigações criminais que deram origem ao que chamamos hoje de Polícia Civil. Além disso, tivemos no período da ditadura militar o incremento do papel militar da polícia nos estados da federação, o que hipertrofiou nessas forças uma certa ideologia da truculência e do desrespeito aos direitos civis dos cidadãos que, em tese, elas pretendem proteger. Foi com a ditadura, portanto, que as atribuições da Polícia Civil foram se esvaziando e a Militar tomou para si toda a parte ostensiva pela qual hoje ela é bem conhecida.

Atualmente, no Brasil existem 3 tipos diferentes de polícia com suas atribuições distintas de acordo com a Constituição:

1) Polícia Civil: exerce fundamentalmente a função de polícia judiciária (podendo ser apoio nas operações ostensivas);

2) Polícia Militar: são forças de segurança pública que têm por função a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública. Além disso, elas são, para fins de organização, forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro.

3) Polícia Federal: subordinada ao Ministério da Justiça, cujas funções, de acordo com a Constituição de 1988, são: exercer a segurança para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas, bem como dos bens e interesses da União; exercer atividades de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; promover a repressão ao tráfico de entorpecentes, contrabando e descaminho; exercer com exclusividade as funções de polícia judiciária da União.

Como se vê, a grande questão que entra em jogo quando se fala de "desmilitarização" das polícias é justamente a subordinação das Polícias Militares ao Exército. Mais do que uma questão meramente operacional, o que está em questionamento é o tipo de ideologia e valores que estas forças policiais recebem em seu treinamento e formação. Como dito acima, o Exército é treinado para eliminar o inimigo, combatê-lo. A força bruta é o seu principal meio de atuação. E este valor vem sendo passado de forma cada vez mais intensa para as Polícias Militares. Até por conta do acirramento da "guerra" contra o narcotráfico que se instaurou em várias cidades brasileiras.

Entretanto, é preciso pensar com muito vigor a necessidade da construção de uma polícia mais humanizadora. Uma polícia que consiga vencer o desafio de cumprir suas obrigações legais, garantindo o direito à segurança do cidadão, ao mesmo tempo em que combate as várias formas de crime que ameaçam esta mesma segurança.

Para os defensores da desmilitarização (e eu sou um deles), uma polícia única, com um treinamento e preparo mais voltado para a cidadania não impediria que ela cumprisse seu importante papel no policiamento ostensivo. Muito pelo contrário: melhorando sua imagem junto à população, ela poderia ter aí um importantíssimo aliado no desempenho de suas funções.

Atualmente, é perceptível o grande medo e um certo asco que a população de São Paulo tem de suas forças policiais. São Paulo se vangloria de ser o mais rico e o mais desenvolvido estado da nação, mas com uma política de segurança pública que consegue ser pior do que a época da ditadura.

Pior porque, em tese, estaríamos numa democracia e cenas como essas jamais deveriam acontecer. 

No mínimo, é preciso resolver o paradoxo do medo! Em uma sociedade democrática este, me parece, o pior dos medos: o medo das forças do Estado. Quando se chega neste estado de coisas, com quem devemos contar para nossa segurança?


Leia mais sobre o assunto em:


2) Dossiê:A desmilitarização da Polícia Militar.

3) Um breve histórico da Polícia Militar.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Tradição: sexualidade e família na visão do Vaticano no século XXI


Na semana passada, o mundo inteiro repercutiu a notícia de que o Sínodo Extraordinário sobre a Família (oficialmente denominado Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos, cujo tema foi "Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização") havia divulgado um documento com uma linguagem que indicava uma possível abertura da Igreja às suas posições com relação às configurações familiares do mundo católico contemporâneo. Embora a mídia tenha direcionado seus holofotes para a questão das relações homoafetivas, o texto também falava de um outro tema (ainda) bastante polêmico para a Igreja e muito presente na vida dos católicos: o divórcio e o que poderíamos chamar de "recasamentos".

Fora o efeito midiático do impacto da notícia, quem conhece bem a Igreja Católica sabe que a divulgação da versão prévia do documento com estas características teve muito mais uma conotação diplomática por parte do Papa Francisco para sondar o grau de repercussão interna que esta notícia traria do que propriamente um aceno de uma grande revolução. A Igreja está, cada vez mais, perdendo fiéis para um mundo globalizado, com grandes transformações de valores e comportamento. Assim, provocar sua comunidade (em particular, as autoridades eclesiásticas) para que faça uma reavaliação de dois dos seus princípios morais fundamentais (a família e o casamento - este último, alçado à condição de Sacramento) a fim de realinhar seu posicionamento frente às exigências do mundo moderno, parece-me algo necessário e urgente. A sacralidade do matrimônio e da família tem sido colocada como um pilar fundante do próprio catolicismo na atualidade. E este, certamente, é um dos campos em que mais fortemente recai a normatividade (e, consequentemente, a interferência) da Igreja sobre a vida cotidiana dos seus seguidores: aquilo que é, ao mesmo tempo, mais íntimo e que vincula as pessoas ao mundo.

Tendo a entender esse processo de transformação do mundo como constituidor de uma inversão no sentido dos seus determinantes morais: se antes, eram os valores religiosos que orientavam o comportamento das pessoas oferecendo-lhes parâmetros sobre como agir, hoje parece ser exatamente o contrário, na medida em que, diante de valores rígidos que agridem suas liberdades de escolha, as pessoas tendem a a praticar uma religião que lhes traga menos custos para sua vida privada. Ainda que, para isso, tenham que troca-la por outra. Esse mecanismo tem levado as Igrejas de um modo geral a rever posições readequando-se frente a novas realidades. E para o catolicismo isso é urgente.

Como já sabemos, parece que não foi desta vez que isso ocorreu. Embora a mídia traga a notícia de uma certa divisão de posições, o resultado final do Sínodo foi a manutenção do status quo desses dois preceitos (família e matrimônio), derivando daí uma série de orientações que reiteram valores tradicionais. Independentemente disso, o episódio se coloca muito bom para pensarmos a respeito do papel desempenhado pela tradição na configuração de uma comunidade importante como os católicos no mundo (e no Brasil, em particular). Em especial no campo da família. Isso adquire uma importância que extrapola a esfera religiosa porque tem interferido na esfera do direito civil, em temas que são diretamente influenciados por esses valores (casamento entre pessoas do mesmo sexo e aborto e, como foi, outrora, o divórcio - este ainda segue sendo um problema para a doutrina social da Igreja).

À semelhança do que ocorrera na década de 1980, quanto João Paulo II convocou um Sínodo com o mesmo propósito (discutir os desafios da Igreja frente às transformações que o núcleo familiar vinha sofrendo, sobretudo a partir da revolução feminista e da intensificação do divórcio com as consequentes reconfigurações familiares), os católicos têm estado preocupados com a perda (ou, no mínimo, falta de comprometimento) dos seus fiéis que não se reconhecem em muitos dos valores aí professos. Como resultado daquele Sínodo; foi divulgado o documento Familiaris Consortio que é uma exortação do Papa aos católicos de todo o mundo, com orientações dos princípios e valores que regeriam a família, segundo a concepção oficial da Igreja. Neste documento, são consolidados valores tradicionais que são transmitidos oficialmente por meio de seu instrumento oficial de doutrinação aos fiéis, o seu catecismo (como, por exemplo, pode ser visto nos verbetes "família" e "matrimônio").[1]

Especificamente neste campo da família e do casamento, o que chama a atenção agora, assim como chamou há 30 anos, é a enorme dificuldade institucional de enfrentar dois problemas muito sérios. O primeiro, como já dito, se refere às grandes transformações vividas pela sociedade nos últimos anos, o que vem redefinindo o próprio conceito jurídico e social de família. Entretanto, o conceito religioso não acompanhou este processo o que gera, obviamente, distorções na prática e uma certa "cegueira proposital" (um reino do faz de conta) por parte dos seguidores e clero da Igreja Católica: todos fingem que não sabem que são muitos os que não seguem a doutrina; mas isso parece não fazer a menor diferença. Do outro, no meu entendimento o mais grave, o acentuado etnocentrismo de entender que o modelo social consagrado por uma certa tradição cristã sobre o que é família e sobre que é casamento é "o" correto e "o" universal, menosprezando as demais formas legitimamente construídas em o outros grupos sociais.

Com relação a isso, basta checar, no catecismo católico, além dos verbetes acima, o que é falado sobre a poligamia ou mesmo sobre o verbete sobre divórcio. Este último é, sem sombra de dúvidas, o mais curioso porque encerra contradição sobre contradição, além de afirmar categoricamente que o divórcio "é um mal natural" (sic) além de classificar outras formas de família como a poligâmica (praticada em muitas culturas mundo afora) como "estando em desacordo com a lei moral" (que, ao não ser especificada como "lei moral católica", subentende-se que é "a" lei moral; ou seja, universal). Sobre o casamento homoafetivo então, nem sequer é cogitado. O que é mencionado, aliás, é que, juntamente com a "masturbação", a "fornicação" e a "pornografia", as "práticas homossexuais" são "pecados gravemente contrários à castidade" (cf. § 2396). Assim, o que se pode inferir é que "prática homossexual" é algo vinculado apenas ao "prazer carnal" - tido como impuro - e não algo que poderia significar vínculo afetivo entre pessoas do mesmo sexo e que poderia levar à formação de uma família, como efetivamente vem acontecendo. Indiretamente (ou quase nem tanto), ao afirmar a castidade como valor de referência (mesmo no casamento), reitera-se a antiga ideia de que o sexo é impuro. E isso, nos tempos que correm, parece não convencer a grande maioria dos católicos (em particular, os jovens). Em que pese um aparente retrocesso no campo do comportamento moral que tem sido defendido por muitos estudiosos da religião na atualidade. Mas isso é uma outra discussão porque, na prática, a despeito do discurso de uma certa valorização da castidade, sabe-se que na prática, não é bem assim.

Na perspectiva da análise sociológica, a religião é um campo privilegiado (não exclusivo) da normatividade e, portanto, definidor de muitos dos parâmetros (em alguns casos, os mais importantes) de como um grupo social se define e se regula. É assim que a religião representa a instituição por exelência, até mesmo por força de sua natureza, cujo foco é a conservação das tradições sobre os grupos sociais que as professam. Sendo um dos valores fundantes do cristianismo, vamos constatar que no âmbito dos países que oficialmente professam o catolicismo, o tema "família" tem sido um dos mais férteis campos em que a questão da tradição é colocado. No Brasil isso ainda é mais forte, dada a forte presença da religião católica na nossa formação histórica e pelo fato de, ainda hoje, ter um dos maiores contingentes de fiéis.

Sendo bem sucinto na tematização antropológica, a tradição, por definição, é um freio cultural que minimiza (e, às vezes tenta impedir) que se cumpra a sina de qualquer cultura, dada à natureza do próprio ser humano: mudar! Estamos sempre mudando. De uma pessoa a outra; de uma geração a outra; de um grupo a outro. A mudança e a diversidade são atributos quase que ontológicos da condição humana. Ao mesmo tempo, o culto à tradição é importante porque evoca uma certa vinculação a um passado original, o que é de fundamental importância para as construções identitárias dos grupos. Por isso, existem alguns grupos culturais dentro de grupos maiores (e as Igrejas Cristãs, em particular a Católica, objeto desta reflexão são exemplos muito evidentes desse mecanismo) que entendem que certas mudanças consideradas radicais (o que é definido por suas autoridades instituídas) comprometeriam visceralmente aquilo que seria a sua própria identidade (entendida aqui como um conjunto essencialista de traços fundamentais da construção daquilo que se "é"). E o embate entre a renovação e a tradição se coloca. 

E é aí que reside um paradoxo que precisa ser compreendido na sua natureza, na sua essência e enfrentado pelos tradicionalistas. Como garantir que a mudança cultural não comprometa a construção identitária da sociedade em questão?

Para entender este paradoxo, precisaríamos entender que uma das características que marcam a condição do fenômeno da cultura é o seu dinamismo. Não importa qual seja, todas as sociedades tendem à mudança nos traços de sua cultura. Isso não significa perda de identidade. Embora estejam imbricadas, identidade não é cultura. Pode ser uma sociedade indígena no interior da Amazônia, uma aldeia tibetana ou um bairro novaiorquino ou paulistano, todas passam por transformações que podem ser mais lentas ou mais rápidas, a depender de uma série de fatores, inclusive seus mecanismos de controle dessas mudanças (que tem no culto à tradição um dos seus principais instrumentos). Basicamente, esses fatores de mudança são de duas ordens: aqueles chamados fatores intrínsecos (diferenças entre gerações, entre indivíduos ou entre grupos distintos que se formam no interior de todas as sociedades); aqueles chamados fatores extrínsecos (traços culturais adquiridos por meio do contato com outras sociedades - comércio, guerra, viagens etc.). A questão é que todas as sociedades tendem a tratar seus traços culturais mais fortes (e a religião desempenha um papel fundamental em quase todas elas - mas temos também a língua, alguns de seus costumes, alimentação etc.) como fatores fundamentais para se diferenciar das outras, construindo para si mesma um referencial identitário específico (por isso, o senso comum confunde essas duas dimensões muito diferentes: identidade e cultura). Se a mudança for entendida como uma resposta importante que as pessoas constroem para se encontrarem no mundo em transformação, é necessário que a própria identidade seja entendida não na sua forma essencialista, mas na sua forma relacional, ou seja, como uma diferença com relação ao outro e, simultaneamente, uma vinculação social com o semelhante. Aqui, tudo se passa como que cumprindo o paradoxo do escritor novecentista francês Jean-Baptiste Alphonse Karr: "Plus ça change, plus c´est la mêmme chose" (Quanto mais muda, mais é a mesma coisa). Ao contrário, se nos ativermos mais à tradição como fator determinante de quem somos culturalmente, tenderemos a enxergar a mudança como uma deturpação da nossa vinculação a uma suposta originalidade, o que comprometeria a nossa legitimidade identitária (que, nesse sentido, é entendida quase como sinônimo de cultura). Ou seja, neste último exemplo, para sermos nós mesmos, precisamos ser como os nossos ancestrais. A mudança é vista como ameaçadora desta identidade. O que é uma contradição.

Parece-me que, mais uma vez, a resposta oficial do Vaticano, malgrado os esforços de modernização da tradição ensaiados por Francisco (em que pese o paradoxo), foi a segunda via, fortalecendo uma tradição quase fundamentalista dos valores da família e do matrimônio, além de reiterar, ainda que indiretamente, a visão condenável de que sexo ainda é um mal consentido e necessário.

E, no meu entendimento, para o caso específico do direito civil no Brasil, isso em nada ajuda as nossas discussões no campo da sexualidade e da modernização do conceito de família na nossa legislação. E as portas para a convivência social da diversidade ficam mais difíceis de serem abertas.








[1] Os verbetes aqui indicados estão num site extra-oficial porém podem ser devidamente checados no Catecismo Oficial no site  do Vaticano, em português. Optei por este site porque aqui, os conceitos sugeridos estão didaticamente organizados. Com relação aos aspectos mais formais, podem ser conferidos também os artigos do Código de direito canônico (Título VII - Do matrimônio - página 187 em diante) que tratam do tema. 



domingo, 19 de outubro de 2014

O que faz diferença pra você? - um depoimento pessoal


Escrevo, pela primeira vez, para falar o meu ponto de vista e abrir o meu voto que, pelo que já deixei claro, todos os que me conhecem já sabem. Mais do que nunca, estou muito dividido e, pra mim, é muito séria esta divisão porque ela acontece quando o partido que sempre idealizei (e no qual sempre votei) está protagonizando uma das disputas mais acirradas dos últimos tempos. E não se trata de uma divisão superficial, mas de algo muito profundo e denso. É sobre esta divisão interna que quero falar. 

Esta semana, tive oportunidade de ter uma conversa longa e profunda com uma amiga minha, a Cristina Helena, economista muito competente (além de querida), professora de algumas das melhores universidades de São Paulo, que é eleitora do Aécio Neves. Foi uma conversa muito boa e esclarecedora. E surpreendentemente tranquila, como dificilmente se consegue ter entre pontos de vista antagônicos nos tempos que correm. Para mim, confesso, foi uma aula muito bacana de economia. 

Não vou aqui detalhar todos os senões e pormenores da conversa porque tornaria este texto leviano, na medida em que não sou economista e não saberia reproduzir todos os detalhes do que a Cris me falou. Entretanto, apesar de ser eleitora bem consciente, ela me descreveu um panorama para 2015/16 que foi realisticamente exigente, nada tranquilo (mas também, nada catastrófico). Não tem jeito. O aperto virá de um lado ou de outro. Até por conta do que os economistas tem apontado para o cenário da crise internacional. Seja sob Armínio Fraga ou sob Guido Mantega, sofreremos um pouco até que novamente a inflação esteja sob controle e o país volte a crescer. E, com base em argumentos muito técnicos, que eu não saberia reproduzir aqui, ela me traçou um panorama razoavelmente detalhado do que significaria um ou outro para o Brasil. Por caminhos bem distintos, os efeitos seriam parecidos, mas por mecanismos diferentes. Pensei, com meus botões: sabe que é a primeira vez que ouço uma análise bem razoável e imparcial; e ela pode estar bem certa até porque (não sei se por intuição) as pesquisas de intenção de voto mostram ser esta a eleição mais polarizada que temos em 25 anos. Mamma mia, pensei: Sabe aquela história, "Se correr o bicho pega; se ficar, o bicho come"?

Ao final, ela muito honestamente me falou uma frase que, pra mim, fez todo sentido: eu estou dividida porque, como economista, não vejo muita saída; qualquer que seja a escolha, o resultado lá na frente será muito parecido; a diferença, em suma, é que com Mantega a recomposição da perda será gradual porque eles vão preferir não dar choque inicial e não arrochar para não comprometer políticas sociais; com A. Fraga, a paulada seria inicial, provocando perdas que seriam recuperadas paulatinamente ao longo de 2015; então, tenho que pensar em outras referências para tomar minha decisão. Por exemplo:  ou você prioriza o social com um certo sacrifício econômico; ou você prioriza a manutenção dos ganhos econômicos para, com o crescimento, posteriormente investir em políticas sociais. 

Pronto, pensei! Matou a charada pra mim! (E... caramba... essa história de "fazer o bolo crescer pra depois dividir" já não ouvimos antes? Em plena ditadura? Fala de um dos generais: "Que os ricos sejam cada vez mais ricos para que, por meio deles, o pobre seja menos pobre!" Wow!!! - Esta fala está no vídeo Brazil, muito além do cidadão Kane, mas o general não é identificado.) O que ela me falou, acabou resolvendo, pelo menos em parte, o imbróglio interno em que estava. Em parte! Mas não tudo. (Reiterando que não quero e não posso entrar num debate econômico. Este não é o ponto central deste texto.) 

O que a Cris me falou me fez todo sentido! Porque, como ela (mas por razões diferentes), eu também estou dividido. Não a divisão básica e trivial entre Dilma e Aécio; ou entre PT x PSDB. E uma divisão para além das opções econômicas ou ideológicas. Mas é uma divisão logicamente anterior e bem mais profunda. É a divisão entre os fundamentos éticos da governabilidade e a necessidade de honrar compromissos com a gestão pública para o público. Aqueles compromissos para realmente tirarmos o país do fosso e cumprirmos nossa sina de sermos uma grande nação. Uma divisão que me faz pensar o quanto tudo isso deveria sacrificar a ética na gestão pública. Sim, porque se formos levar isso em consideração, como bem disse um dos inúmeros textos que li no Facebook, quando se fala de corrupção, "só há telhados de vidro" (confesso que adorei esta expressão). E não saímos do lugar. 

Coincidentemente, numa outra conversa (desta vez pelo face), com um outro colega eleitor de Aécio (que também está super dividido, pela primeira vez), o Pedro, com quem também tenho conseguido dialogar de maneira civilizada e engrandecedora (e a quem agradeço sempre o bom debate), fui questionado sobre este ponto a partir da divulgação que fiz da notícia saída na última sexta feira (17/10) sobre irregularidades no governo Aécio Neves em MG. Vou reproduzir aqui o diálogo. 

Pedro: Oi Fred, preferi postar inbox, e só para você, caso você prefira que não apareça em seu post. O fato sabido de que houve corrupção em outros governos não autoriza ou ameniza o fato de que haja neste. O mundo não deveria ser medido em PT x PSDB. Mas entre o que é ético e o que não é. Esta é minha dificuldade em votar, nesta eleição. Se você embarca na ideia de que a polarização é entre os dois partidos, pode cair no argumento infantil: foram eles que começaram. Vai haver sistema de cota corrupção, uma vez que as elites já foram corruptas quando exerceram o poder? Não é muita auto-indulgência? E o atual governo responde pela realidade desta história triste no momento. É quem está no poder federal há 12 anos. Desculpe, entendo o empenho em eleger quem você pensa ser melhor, e que talvez não caiba expor autocrítica em meio à luta. Mas deve haver algo melhor a dizer do que "eles também fazem". Abraço do amigo em discordância...

Fred: Pedro, entendo o que você diz e concordo plenamente. Sou totalmente afinado com seu pensamento. Na verdade, esses meus posts são mais uma resposta à pobreza do debate que vem à minha página e, principalmente ao meu whatsapp por defensores do Aécio e com um discurso monotônico sobre corrupção. Como sou mais racional em termos de política (já fui mais idealista e, até certo ponto, purista), já nem faço mais este debate sobre ética. Porque aí, meu caro, nós teríamos que eleger algum marciano. E outra coisa importante: sinceramente, não tenho o menor empenho em eleger a Dilma ou o PT, de quem já me distanciei há muito tempo (torci pela Marina em 2010 - ufa, ainda bem que deu errado!!!). Mas é um discurso muito mais anti Aécio e anti tudo o que o PSDB representa de regresso ao Brasil antigo que a gente conhece bem. Disso, eu tenho plena convicção. Se houvesse alguma alternativa, certamente eu estaria com ela. Mas não há. E diante do atual cenário, estou tentando usar o cálculo weberiano entre fins e meios possíveis para se chegar a ele. No meu caso, o fim (para além da ética que nós dois temos como valor - não há como não ter) é ver um Brasil com mais conquistas sociais, com mais inclusão por renda, por educação, por saúde e em todos os campos. No mais, meu amigo, nossas bandeiras são muito parecidas. Grande abraço e obrigado pelo debate sempre de bom nível. Gosto muito.

Para além de expressar a capacidade de fazer críticas e construir um diálogo em que os dois ganham (o que, por si só, já vale a pena), estas duas conversas contêm alguns pontos importantes. 

O primeiro, concordando com o Pedro, é o reconhecimento de que a ética na governança da coisa pública não deveria ser algo menor. Não deveria ser sacrificada em nome de interesses de objetivos da construção da nação (nem mesmo os ganhos sociais). Isso dá uma bela discussão no campo da Filosofia Política. Sob muitos aspectos (inclusive no da corrupção), nenhum dos lados é melhor do que o outro e, concordando plenamente com o Pedro, tento não cair nessa de que "quem começou primeiro" ou, o que é pior, "se ele fez, eu também faço". Isso seria pueril e ridículo. Só replico as notícias de corrupção do PSDB porque a memória histórica dos brasileiros em geral é muito curta. E todos fazem questão de atribuir a prática única e exclusivamente ao PT. É como se somente o PT e seus integrantes praticassem a corrupção. E, pior, como se não houvesse seriedade no combate a ela. Não que o combate (como alega a candidata Dilma - tema sobre o qual já conversamos muito) deva servir de leniência para a prática do fato. É uma obrigação. E sobre isso, reconheçamos (os dados estão aí para mostrar), o PT fez muito mais do que o PSDB nas várias esferas importantes em que governou (MG e SP são exemplos contumazes, além do governo FHC). Mas não há como negar a sua importância no cenário da disputa.

Combate à corrupção: números, cobertura da mídia e percepção da população
Concordo também com o Pedro de que este foco da corrupção no PT se deve, em grande parte, ao fato de que o partido está há 12 anos no poder protagonizando este cenário, tornando-o alvo fácil de acusações. E completo dizendo ainda que, no caso do PT, tem um agravante: a bandeira da ética sempre foi uma das mais importantes de toda a sua história. E ter caído nesse mar de lama, pra mim, foi o principal elemento que me fez afastar do partido. Pra mim e pra muita gente boa e ilustre que abandonou o partido por este motivo. Mas perder a memória das práticas de corrupção das gestões anteriores (e até mesmo das atuais, nos estados onde administra o PSDB) esquecendo-se delas e construindo o PSDB como alternativa a isso, não me parece adequado. Não só como alternativa: nos discursos que vejo na minha timeline (Facebook) ou no Whatsapp, é como se ele realmente fosse o salvador da pátria, o grande redentor! E, nesse sentido, a mídia tem desempenhado um papel pra lá de condenável. É nítido o tratamento desproporcional (qualitativo e quantitativo) aos escândalos dos dois lados. 

O segundo ponto importante, é o reconhecimento da total falta de alternativa frente às opções que temos e que, como expresso na conversa com a Cris indica. Nesse sentido, o que menciono sobre o cálculo weberiano (cf. Max Weber, um dos grandes clássicos do pensamento sociológico e econômico) é o que está me conduzindo à escolha. Meu diferencial, como deixei bem claro na resposta ao Pedro, é o Social. Lutei por isso a vida toda. Sempre tive pendência para um certo idealismo na solução dos problemas sociais e na construção de uma sociedade mais igualitária, mais justa (claro que isso envolve o combate à corrupção). Decepcionei-me com a Igreja Católica quando jovem; decepcionei-me com o PT mais adulto. Mas não deixei de acreditar nisso como ideal de vida. E, de fato, não reconheço a menor possibilidade de que isso ocorra numa eventual gestão do PSDB. Nem de longe! Neste cálculo racional weberiano, tendo para o mais possível, o mais viável, para que tal projeto se cumpra. 

No meu caso especificamente, deixei de ser "petista" há algum tempo. Tanto que não incorporei a massa de eleitores de Dilma que aderem o 13 em suas fotos de perfil no Facebook e não divulgo o material específico do partido (salvo raras exceções). Apesar disso, mesmo após a desilusão, venho votando no PT porque reconheço em suas propostas aquilo que é mais próximo do meu ideal de sociedade. A esse respeito, os indicadores de Saúde, Educação e inclusão social têm eloquência própria. Infelizmente, com todos os cancros e partes apodrecidas de uma fruta e que comprometem seu sabor. É nesse sentido que o que pode deixar ainda mais acentuada a imagem de um "petismo" na minha escolha (veiculado por meus posts militantes) é o fato de ser radicalmente, visceralmente contra tudo o que o PSDB representa. Principalmente um elitismo transvestido de pseudo-intelectualidade, tão cultuado por uma sociedade com perfil ultra conservador como a nossa. E hipócrita: ao mesmo tempo que diz valorizar a educação e a intelectualidade, desvaloriza o professor na prática e usa a palavra "intelectual" e "teórico" para desqualificar qualquer argumento. É uma coisa muito pessoal. Apesar de tudo, ainda tenho muito mais asco por tudo o que o PSDB representa do que aquilo que o PT hoje para mim simboliza. 

Acho que esta eleição está imprevisível. Eu gostaria que saíssemos com um projeto de construção de um Brasil mais inclusivo, menos desigual, com mais possibilidades de modernização em todos os campos. E, sinceramente, não vejo esta possibilidade com o PSDB. Até pelas muitas semelhanças que este segundo turno tem guardado com as eleições de 1989, como já disse em outros momentos (inclusive em conversas com o Pedro), embora reconheça as enormes diferenças entre os dois, vejo muita coisa em comum entre Fernando Collor de Melo e a figura do Aécio Neves. Principalmente neste discurso social vazio, na aura sebastianista com ares de messianismo religioso (sem falar numa certa similitude na trajetória política recheada de episódios de apadrinhamentos e benefícios políticos recebidos "de mão beijada"). Tudo isso revestido por um cinismo escancarado. E quem dera que fosse o cinismo no sentido filosófico do termo! 

Fazendo coro com muita gente, eu gostaria de ver alternância de poder neste pleito. Entretanto, como disse no texto anterior, sinto falta de novos líderes, de pessoas que realmente renovem a vida política naquilo que ela tem de essencial: o cuidado, a atenção e a dedicação para a coisa PÚBLICA! O esmero no tratamento da ética. Sei que há muita gente que possui este perfil. Minha candidata eleita à Câmara Federal é um exemplo disso (Luiza Erundina), assim como o candidato derrotado ao Senado por São Paulo, Eduardo Suplicy. Conheço pessoalmente o governador do Amapá (Camilo Capiberibe), por quem, assim como seus pais, o Senador João Capiberibe e a deputada d. Janete Capiberibe, nutro um grande respeito. Tenho acompanhado com entusiasmo a trajetória política do Jean Willys, que é outro exemplo de alguém que pensa no público, nos interesses da coletividade. Assim como eles, houve e há, certamente, muitos outros no cenário político. Infelizmente, esses parecem se constituir num grupo de exceção. Ou, ao que parece, a mídia não lhes dá o devido valor, preferindo, como abutres, focar suas garras para as carniças putrefatas da sociedade. 

Mas é só a minha sensação. É só a minha opinião. É só um sonho.

Por isso, malgrado todos os percalços e adversidades, continuo achando que, no momento, a melhor opção é Dilma 13. 








sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A que distância as urnas estão das ruas? ou Por que não gostamos de política?




Em Alagoas, Collor é reeleito Senador e o filho de Renan Calheiros, governador; no Maranhão, apesar da eleição de um candidato do PCdoB, a família Sarney se consolida com mais um herdeiro de sua dinastia; o mesmo ocorre com o Pará de Jader Barbalho; no Rio de Janeiro, além da arrasadora votação de Jair Bolsonaro, sucessores de antigos patriarcas da política agora passam a ocupar cadeiras no legislativo; em São Paulo, José Serra e Geraldo Alckimin se consagram na manutenção do controle do estado mais rico e supostamente desenvolvido da federação, enquanto a população consagra no Legislativo nomes como Celso Russomano, Tiririca, pastor Marcos Feliciano além da chamada "bancada da bala". Só para citar alguns exemplos do que ficou evidenciado pela mídia a partir do resultado do pleito do último dia 05 de outubro. Certamente, se for feita uma investigação mais detalhada por todo o Brasil, veremos se confirmar um perfil relativamente semelhante dos eleitos e mais dados como esses surgirão. 

Tomando o resultado das eleições gerais como referência, muito se debateu a respeito de uma eventual mentalidade conservadora da população brasileira, sobre sua inconsistência civil, cidadã e política que aí teriam sido reveladas. Conservadorismo aqui entendido não como um juízo de valor, mas como um juízo de fato: literalmente expresso na conservação do antigo. Para quem acreditou - como eu - que o Junho de 2013 representava um sinal de cobrança por renovação, de efetiva vontade de mudar os rumos da política nacional, uma primeira leitura é que tal resultado representaria um balde de gelo sobre a euforia do clamor por mudança. Mas depois, uma outra pergunta me veio à mente: será que estas eleições estão tão distantes assim daquilo que vimos nas manifestações do ano passado? As linhas que se seguem são uma reflexão livre sobre as relações entre a urna e a rua; que responsabilidade estrutural temos nós, eleitores, quando votamos de maneira irresponsável, ou seja, "de qualquer jeito". E mais: pensar quais as implicações para a efetiva democracia das relações entre o Parlamento e o Poder Executivo, tentando resgatar um pouco o peso que deveríamos dar para a as eleições do Legislativo.

A despeito deste ranço conservador manifesto no pleito, um fato chamou a atenção de especialistas em Ciência Política e Sociologia: a alta taxa da chamada "alienação eleitoral" (também conhecido como "voto de alienação"), termo técnico que é dado para a somatória dos votos brancos, nulos e as abstenções. (Importante enfatizar que este conceito não deve ser confundido com "alienação política", que é outra coisa.) Acredito que, até pelo fato da nossa tradição democrática efetiva ser muito recente (como bem lembrado em muitos veículos, esta é "apenas" a nossa 7ª eleição livre consecutiva, desde o fim da ditadura militar), o estudo do fenômeno da alienação eleitoral ainda é bem marginal na Ciência Política brasileira (embora eu tenha encontrado alguns estudos que remontam a 1945) e sua etiologia ainda é muito pouco conhecida. Os autores divergem não somente quanto às suas causas mas, principalmente, sobre os seus potenciais significados. Apesar disso, não são poucos os autores que a indicam como um "voto de protesto", sobretudo quando há, em alguns casos, números expressivos, como os da última eleição. E esta interpretação ainda ganha mais força quando vinculada à obrigatoriedade do voto, tema que sempre ressurge em momentos eleitorais.

Segundo apontam os dados do TSE para o pleito de 2014, dos cerca de 143 milhões de eleitores cadastrados, o alienação eleitoral somou aproximadamente 29% (ou seja, algo em torno de 41,5 milhões). É muita gente!!! Mais do que os 21,3% de Marina Silva (terceira colocada) e próximo aos 33,3% de Aécio Neves (segundo colocado). E, é sempre bom resgatarmos nossa memória política recente, esses números expressivos só foram superados pelos dois pleitos que elegeram o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que registra um recorde curioso: foram 33,1%, em 1994; 36,1%, em 1998, os maiores já registrados na história política brasileira, especialmente no momento pós redemocratização (Cf. Um histórico das taxas de alienação eleitoral, do Cientista Político Diogo Costa). Segundo levantamento feito pelo autor, entre 2002 e 2010, as taxas de alienação eleitoral se mantiveram constantes, oscilando entre 23,7% (2006) e 27,1% (2002), isto é, não muito longe dos atuais 29%.

Com base nisso, fazendo uma leitura mais crítica dos dados do pleito de 2014, é possível pensar que eles podem significar (como afirmam vários autores) que, pelo menos em tese, a concretização daquilo que foi expresso nas manifestações de rua em 2013: uma clara expressão de repúdio à atual estrutura política (principalmente a ojeriza manifesta nas ruas contra os partidos políticos). Se, em outros momentos da história do Brasil isso não era tão caracterizado, não podemos negar que em 2013, as ruas brasileiras estavam repletas de mensagens anti-políticas e anti-partidárias. Mas por que, então, elegemos um Parlamento de configuração tão pouco comprometido com a democracia? Colocamos no poder pessoas que em quase nada representa esta mudança cujo desejo foi amplamente anunciado nas ruas?

Antes de prosseguir, só um pequeno parêntesis. É preciso não superestimar a importância do movimento de junho e 2013. Teve um caráter efêmero, sendo prontamente esvaziado, não tendo uma sequência. E o que é mais interessante: uma vez que se clamava por mudança, não vimos surgir daí novas lideranças, novos nomes que pudessem iniciar sua projeção no cenário político para concretizar esta transformação. Claro que ele foi um dos mais significativos que tivemos nos últimos tempos no Brasil, pelo menos em termos de mobilização popular (comparável aos "Caras Pintadas", de 1992 e às "Diretas Já", de 1984). Mas a sua não continuidade e, principalmente, o não surgimento de novas lideranças, pode confirmar um certo distanciamento que a tradição brasileira tem da participação politica efetivamente cidadã, no sentido de aproveitá-la para canalizar mudanças no cenário político formal (naquilo que seria a política representativa, caracterizado pelas eleições).

Nossa tradição tem uma certa mescla de um profundo senso de "personalismo", uma forte tendência hierárquica, expressa no "mandonismo" e até mesmo uma certa aura de "monarquia absoluta": valorizamos a pessoa que manda. Este nosso traço cultural já foi amplamente analisado por nosso maiores intérpretes. E ele fica muito evidente nesses momentos, quando priorizamos as eleições para o Executivo e relegamos a um plano subalterno as do Legislativo. É assim que tratamos a eleição presidencial como a eleição de um monarca absoluto (ou mesmo um d. Sebastião, um "Salvador da Pátria"), aquele que tudo pode, como a única peça importante de um Xadrez Político. Os demais, seriam os peões e figuras de adereços no grande desfile carnavalesco de nossa democracia. Esquecemos que, num jogo de xadrez, peões, cavalaria e bispos, podem "comer" o rei, pondo fim ao jogo.

Negligenciamos, com isso, o parlamento nas suas várias esferas (Senado, Câmara Federal, Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais). A participação no Parlamento é uma das mais importantes conquistas democráticas, pois é o parlamento que relativiza o poder do Executivo, impedindo que caiamos num regime totalitário. Só lembrar da importância da Revolução Gloriosa na Inglaterra, ocorrida no século XVII e que, pela primeira vez, pôs xeque ao absolutismo monárquico quando a burguesia emergente conquistou os primeiros lugares no Parlamento inglês. Este é o início do fim do absolutismo europeu. Aqui no Brasil, temos o mau hábito de relegar o parlamento a um plano subalterno e sem importância. O problema é que num regime democrático moderno, nenhum Executivo governa sem o apoio de uma base legislativa (sem falar no papel fundamental do Judiciário - que ainda não é eleito). Muitas vezes, como temos testemunhado, o Parlamento tem sido um importante óbice ao Executivo. Isso é assim no mundo todo (vide a preocupação de Obama, frente o crescimento da bancada Republicana; ou do David Cameron, François Hollande e por aí vai). Tratamos o Parlamento como se fosse um adendo à nossa democracia. O que conta, para nós, é o Executivo, pois é "o presidente" que manda . E que adendo caro, diga-se de passagem. Um dos mais caros do mundo. Caro e ineficiente!

E nesse culto ao personalismo monárquico em relação a nossos governantes, contribuímos mais uma vez para travar a máquina administrativa do país. Colocamos num lugar importantíssimo pessoas (e partidos) sem o menor gabarito, competência e compromisso efetivo com a nação. Sem falar na ausência de representatividade. No atual cenário brasileiro, por exemplo, qualquer um que for eleito, como dizem alguns analistas políticos, terá que negociar não mais com 22, mas com 28 partidos que, como sabemos, não possuem propriamente uma ideologia e muito menos uma agenda política definida. Ao contrário, expressam vontades políticas coronelistas, personalistas que operam ao sabor de interesses menores (e, muitas vezes, escusos). E o que é pior: interesses a que submeterão o Poder Executivo (não importa de qual dos dois lados da atual polarização) a alianças espúrias em nome de uma governabilidade. Não importa se isso comprometerá a sua agenda de propostas, nem mesmo sua própria convicção ideológica. Isso está além das vontades pessoais de suas lideranças. É uma exigência do jogo político e quem é estudioso do assunto sabe disso. Política é cálculo de viabilidades, de exequibilidades. E aí, com um voto irresponsável, acabamos condenando os eleitos a esse jogo ao qual, nós aqui de fora, chamamos "sujo", "nojento".

Se queremos respeitar (e ver respeitados) princípios e valores temos, portanto, que pensar no conjunto do complexo político ao fazermos nossas escolhas. Do contrário, condenaremos os eleitos à contradição, ao paradoxo. E nós assumimos a hipócrita postura de um Pilatos que lava suas mãos diante da alegada "sujeira" alheia, pois desconsideramos qualquer responsabilidade nossa nesse processo. E não é bem assim. Num certo sentido, nós, eleitores muitas vezes incautos, temos uma grande (não exclusiva, óbvio) responsabilidade nisso. Na conveniência de nossa "amnésia", ainda faremos as críticas a eventuais alianças eticamente condenáveis que o Poder Executivo será obrigado a fazer em nome da governabilidade.

Na minha percepção, nesta característica míope da visão política brasileira, esquecemos que nossa democracia funciona sob dois primas importantíssimos que se complementam: a democracia participativa (expressa pela capacidade de mobilização social de caráter reivindicatório) e a democracia representativa (simbolizada pelo momento do voto, em que delegamos poder a pessoas que ocuparão cargos representando, não "nossos" interesses, mas aqueles interesses que defendemos e entendemos ser os mais adequados para a construção de um país melhor para todos). Uma não existe sem a outra. E é justamente da esfera participativa que devem surgir novas lideranças, novas forças políticas que poderiam transformar este cenário, soprando ventos fortes que varressem os mofos das velhas articulações políticas das quais todos estamos cansados. 

Como nós super valorizamos o voto como momento máximo da democracia, esquecemo-nos também que esses esses dois momentos são fundamentais. Mas é de "lá" (das ruas, dos movimentos sociais, da participação efetiva) que deveria vir perspectiva de mudança, de transformação. Vejo como uma peça articulada: os movimentos sociais nas suas várias dimensões e esferas (símbolos fortes da democracia participativa) deveriam gerar essas lideranças novas que seriam transpostas para a esfera representativa por meio dos cargos eletivos (principalmente o Legislativo). Foi o que aconteceu com as Diretas Já e com os Caras Pintadas. E o Parlamento seria um grande laboratório de exercício, de treinamento, para essas lideranças verdadeiras, aquelas que, de fato, têm visão do público, da coletividade e de representar interesses, não de grupos corporativistas, mas interesses sociais (por mais diversos que eles sejam). Pessoas que pensem na coisa pública, na "res" pública, origem da própria estrutura de governança que construímos.

Nesse sentido, enquanto não entendermos que as eleições parlamentares são tão (ou até mais) importantes que as do executivo, e enquanto não compreendermos a enorme importância da relação entre a esfera participativa e a representativa, "nós" vamos continuar reclamando "deles" como se não tivéssemos nada a ver com isso! E seguir praticando o velho hábito brasileiro de falar mal e vilipendiar a esfera política.

Quem sabe, se esse dia chegar, voltaremos a atingir um grau de credibilidade e reconhecimento na representatividade na vida política, deixando de pensar como nossa querida enfant terrible, a Mafalda. Quando chegarmos a este patamar, não nos preocuparemos mais com os eventuais significados da alienação eleitoral, pois ela certamente indicará pura e simplesmente: não quero votar! O que, diga-se de passagem, é um direito do eleitor. Até lá, estaremos sujeitos a cumprir a sina preconizada por Platão: "Ora, não há nada de errado com aqueles que não gostam de política. Simplesmente serão governados por aqueles que gostam."

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O bom combate com bom debate: a ética nas discussões acaloradas (versão curta)

O atual cenário eleitoral brasileiro, na polarização personalista Dilma x Aécio (expressões do antagonismo dos grupos PT x PSDB), tem sido o grande palco para o afloramento de ódios latentes e tensões acumuladas ao longo dos últimos anos. A arena dos temas políticos clássicos (as pautas social, econômica, cultural, etc.) tem dado lugar a discussões e até mesmo xingamentos que desqualificam de forma vazia, preconceituosa, estereotipada e sem sentido os interlocutores dos dois lados. E isso vem provocando um seu claro esgotamento o que tem desestimulado muita gente de fazer o bom debate (aquele pautado em valores, ideias, propostas...), sempre necessário. E a democracia acaba perdendo.

Pensando nisso, propus ao meu colega e amigo Pedro de Santi que escrevêssemos uma dobradinha (ele pela Psicanálise; eu, pelas Ciências Sociais) para tentar contribuir para entender um pouco o que acontece e propor, quase quixotescamente, que direcionássemos nossas lanças, não para moinhos imaginários que alimentam o ódio, mas para, pelo menos, compreender o processo de seu engendramento de forma mais objetiva. Desta maneira, voltaríamos a situar o debate onde ele precisa estar: na arena política propriamente dita (ideologias, propostas de governo, no campo político, social, econômico, cultural etc. Vou abordar aqui alguns aspectos complementares à sua análise do ponto de vista da minha especialidade. (Cf. o texto do meu colega Pedro de Santi Ódio, recusa e narcisismo das pequenas diferenças.) 

Que as mídias sociais (em particular o Facebook) hipertrofiam, pro bem ou pro mal, aquilo que vivemos nas nossas relações cotidianas é um truísmo e isso fica muito evidenciado nos contextos que geram debates polêmicos e que despertam paixões acirradas. Com a peculiaridade de que transpomos, de forma quase direta, discussões outrora orais e presenciais (e circunscritas a pequenas esferas), para o registro amplamente público e quase que perene do quê e do como falamos. Principalmente do como. Com um agravante típico das mídias sociais: tudo fica ali registrado para um público que via de regra é amplo e transcende para além da minha própria rede de amigos.

E onde há debate acalorado, principalmente a respeito de temas muito antagônicos, cria-se o cenário fértil para manifestações de nossa passionalidade, de nossas emoções, comprometendo o tênue equilíbrio da natureza dialética daquilo que é mais profundamente humano, como bem nos ensinaram os antigos gregos: razão e paixão. Nós somos seres passionais e, em situações de conflito, quase sempre nos entregamos facilmente às paixões mais negativas. Muito mais facilmente somos dominados pela ira, pela raiva, pelo ódio do que pelo amor, a serenidade e a temperança. Isso nos desequilibra, nos desorienta. Mas também somos seres racionais, característica que, quando bem exercida, pode nos devolver o rumo, temperar nosso comportamento, trazendo-nos de volta o equilíbrio. Este é o profundo sentido da Ética, quando os gregos a inventam na antiguidade. A nossa razão põe um freio em nossas paixões, orientando nossos atos para o bem. Do contrário, como bem nos mostram Hobbes e Freud, tornamo-nos propensos, quase que "naturalmente", a conflitos. No ambiente das mídias sociais, é como se potencializássemos a expansão dos efeitos nocivos desses conflitos passionais.

Esta certamente é uma das eleições mais polarizadas que tivemos desde o período da redemocratização encarnado pelo embate Collor x Lula, em 1989. Com um grande diferencial que, no meu entendimento, é o principal responsável pelo aumento da sensação de incômodo que o arroubo passional dos antagonismos políticos sempre provocam (não só aqui no Brasil, mas em todo o mundo): se naquele momento, contávamos apenas com o mass media para poder veicular informações que alimentariam as discussões presenciais em pequenos grupos, hoje temos o cenário daquilo que em outro texto chamei de "Ágora eletrônica", ou seja, um espaço amplo e praticamente irrestrito das manifestações de opiniões, não mais por meio da fala, mas por meio da escrita. Com isso, ampliam-se as fontes de informação (antes restrita aos mass media) assim como ampliam-se os grupos de discussão quase que ao infinito. Aumentando as fontes de informações, aumentamos o potencial de geração de mitos; ampliando-se os grupos de discussão, potencializamos os conflitos.

Como neste cenário cabe tudo, ele se torna um terreno fértil para o acirramento das emoções e manifestações de ódios e intolerâncias. E, assim como nas manifestações de rua de 2013, tomadas por esses sentimentos, a despeito de sua legitimidade inicial, estamos chegando a um certo esgotamento de ver se proliferando tantas manifestações do mesmo espírito. Aqui especificamente, o verdadeiro debate político (argumentos econômicos, sociais, ideológicos etc.) tem ficado em segundo plano. E, é sempre bom resgatar, este é o ponto mais importante de qualquer processo político-eleitoral. Construímos um paradoxo: sentimos tanta falta da prática da cidadania que, no momento em que temos oportunidade de verdadeiramente concretizá-la, parece que enfiamos os pés pelas mãos.

Uma das características dos processos eleitorais no mundo democrático contemporâneo é que as escolhas não são feitas sobre indivíduos mas sobre grupos. Embora nós brasileiros tenhamos a tendência personalista de associa-lo a uma determinada "pessoa" (discutindo nomes, não propostas ou ideologias), frequentemente nos esquecemos que esta pessoa representa um grupo, uma coletividade. Quando estas coletividades se traduzem em grupos configurados e antagônicos, o cenário para a construção de uma relação de alteridade bem polarizada e conflituosa se cria: parece dividir a sociedade num "nós" frente a um "eles". Este mecanismo é tão antigo quanto a humanidade. Seguindo a linha de interpretação narcísica (aqui usada como metáfora, apenas como um instrumento metodológico para tentar escapar de um certo etnocentrismo na interpretação) sugerida pelo Pedro, a construção de nossa identidade como indivíduo necessita da vinculação a um grupo para poder se consolidar. Isso é expresso por nossas características supostamente individuais mas que nos ligam a este grupo: desde o nosso nome, passando pela língua que falamos, religião que professamos, valores morais, etc. Essa sensação de vinculação e pertencimento a um grupo é que, de certa maneira, nos fornece o alicerce sobre o qual se edifica aquilo que passará a constituir a nossa identidade como indivíduo (contra a qual podemos até "lutar" mais tarde, no nosso processo de construção de escolhas; mas sempre referenciado nesse grupo ao qual pertencemos). Negá-lo é afirmar-lhe a existência.

Nesse processo, "eu" e "outro" são categorias construídas numa oposição dialética e interdependente. Não existem isoladamente na medida em que não têm um sentido substantivo, essencialista. Isso é o que, na teoria da identidade em Antropologia se configurou como o conceito de "identidade relacional" ou seja: o "eu" (ou o "nós") só existe na medida em que se toma consciência da diferença (da distinção) com relação a um "outro". É assim que este mecanismo tem garantido uma certa dinâmica na construção da identidade, coisa que a antiga e obsoleta abordagem substantivista (ou essencialista) não permitia. Dependendo do meu oponente, eu posso acionar mecanismos variados para construir uma distinção a fim de garantir que eu não seja confundido com este outro. Em última instância, para eu me definir como um "eu", é necessário (até por uma questão onto-lógica) que eu, pelo menos simbolicamente, exclua o outro: ele não sou eu. O problema é que temos a tendência de entender a simples diferença entre "eu" e "outro" como uma desigualdade: esta exclusão, não raro (mas não necessariamente), vem acompanhada de um sentimento de diminuição e até mesmo por um ódio a esse outro. Ele é inferior. Quando isso acontece, o cenário para o conflito está estabelecido. E, a depender do modo como ele se desenvolve, a violência (física e/ou simbólica) é quase inevitável.

Este mecanismo é uma constante em todos os grupos humanos (seja em que época e/ou local). E é necessário como um seu fator de aglutinação (e consequentemente separação com relação aos outros). E a depender da sociedade, operam por mecanismos bem distintos (desde as redes de parentesco, passando pela crença religiosa ou aquilo que se convencionou chamar de etnicidade, nacionalidade até mesmo agremiações esportivas e, como no caso aqui abordado, ideologias ou partidos políticos).

Um exemplo muito interessante a esse respeito é a reinterpretação da função social da guerra entre os índios Tupinambás (feita por Florestan Fernandes) e o papel que o canibalismo tinha na "alimentação" de uma certa "vendetta" entre tribos inimigas. Quando capturado na guerra, o jovem guerreiro era levado para uma aldeia onde tinha um tratamento de excelência, recebendo inclusive mulheres para seu prazer. Vivia uma vida de pequeno rei. Quando chegava a hora do ritual de execução, o algoz lhe dizia: "Vou te matar e te comer porque os seus amigos mataram e comeram muitos dos meus amigos". Ao que o prisioneiro respondia: "Quando eu estiver morto, terei muitos amigos que saberão me vingar!". Assim, duas sociedades distintas cujos traços culturais eram exatamente os mesmos, a antropofagia ritual ocupava um lugar de manutenção do elemento concreto de polarização e antagonismo, que geraria o sentimento de vingança necessário para alimentar o conflito bélico que, por sua vez, marcaria fronteiras imaginárias, definindo quem era quem: Tupinambá ou Tupiniquim. Nesse sentido, explicita o fato de que o "eu" depende da existência do "outro" para seguir sendo quem é.

Se queremos efetivamente construir uma sociedade democrática, consagrando o caráter formador desta Ágora Eletrônica neste momento de debate eleitoral, teríamos que seguir uma certa utopia: brincando com a metáfora tupinambá, atingir a compreensão que a devoração do inimigo não deveria ser física nem real, pela violência passional, mas simbólica. Devorá-lo naquilo que ele tem de essencial no cenário político: suas propostas de governo, ideias para o campo da economia, da saúde, da educação, programas sociais etc. Este deveria ser o verdadeiro cenário de combate, de conflito.

E isso deveria ser um dever de todos, não somente dos "cientistas sociais". Afinal, se queremos ocupar o espaço de modo que nossa "opinião" seja tratada de maneira séria, teríamos que assumir nosso caráter racional até com um pouco mais de veemência que o passional, e mostrássemos concretamente o que desqualifica o projeto de governo do oponente, mostrando suas fragilidades, seus equívocos, e porque "o meu é melhor". Não desqualificar o oponente.

Para isso, nesse momento, resgatar a memória  histórica das duas trajetórias é fundamental. Focar na objetividade das propostas e dos argumentos baseados em dados também me parece mais adequado. Se conseguíssemos atingir este patamar racional, controlando ímpetos irascíveis em nome da construção de uma convivência civilizada como um bem maior, talvez consigamos fazer o bom combate mantendo o bom debate.

Claro que isso não é fácil. Mas necessário. Lembremos que, dessas armadilhas, nem figuras ilustres (e intelectuais) como o ex-presidente FHC ou o antropólogo Roberto DaMatta escaparam.

Do contrário, teríamos que nos entregar à sanha do "Homo homini lupus" (O homem é o lobo do homem), tematizada por Plauto (dramaturgo romano do século III) e notabilizada por Thomas Hobbes (filósofo inglês do XVIII).

Supondo com Freud e Hobbes que o conflito seja inerente ao ser humano, dele não podemos fugir. Mas podemos, como fazemos com todas as nossas características "dadas" pela natureza, reorientá-lo. Em lugar da destruição, para a construção. Precisamos aprender a discutir. 

E isso, como lembrado no início deste texto, todo ser dotado de razão pode fazê-lo. Não é nada fácil, mas extremamente necessário. Brincando com uma metáfora darwinista, teríamos que decidir entre retroceder à barbárie, entregando-nos à violência pura e simples, ou avançar no oceano do bom uso da razão, direcionando nossa nau rumo ao bom combate que nos conduzirá a um bem maior: a construção de uma sociedade justa e feliz, à qual, segundo os antigos gregos, nós todos estamos destinados.


NOTA:
Escrevi uma versão mais longa deste texto que pode ser lida no meu blog pessoal: O bom combate com bom debate: a ética nas discussões acaloradas (versão longa).

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

O bom combate com bom debate: a ética nas discussões acaloradas (versão longa)

O atual cenário eleitoral brasileiro, na polarização personalista Dilma x Aécio (expressões do antagonismo dos grupos PT x PSDB), tem sido o grande palco para o afloramento de ódios latentes e tensões acumuladas ao longo dos últimos anos. A arena dos temas políticos clássicos (as pautas social, econômica, cultural, etc.) tem dado lugar a discussões e até mesmo xingamentos que desqualificam de forma vazia, preconceituosa, estereotipada e sem sentido os interlocutores. E isso vem provocando um seu claro esgotamento o que tem desanimado muita gente de fazer o bom debate (aquele pautado em valores, ideias, propostas...), sempre necessário. E a democracia acaba perdendo.

Pensando nisso, propus ao meu colega e amigo Pedro de Santi que escrevêssemos uma dobradinha (ele pela Psicanálise; eu, pelas Ciências Sociais) para tentar contribuir para entender um pouco o que acontece e propor, quase quixotescamente, que direcionássemos nossas lanças, não para moinhos imaginários que alimentam o ódio, mas para, pelo menos, compreender o processo de seu engendramento de forma mais objetiva e voltarmos a situar o debate onde ele precisa estar: no campo político, social, econômico, cultural etc.

Em um ótimo texto, alicerçado em seu campo de atuação (a psicanálise e, dentro dele, a teoria freudiana de uma certa tendência do ser  humano ao conflito, levando à destruição e à morte), Pedro analisou com precisão a geração e as repercussões do caráter passional dos debates que ocorrem na rede. Esse pressuposto freudiano também era partilhado por Thomas Hobbes (não à toa citado por ele em seu texto). Claro que a questão da eleição e das polarizações do momento foram apenas ilustrativos, porque este mecanismo acontece, como ele bem demonstrou, onde quer que haja o cenário para que ele se prolifere. Vimos isso recentemente com relação ao debate sobre a cura gay (e as remissões à bancada cristã - evangélicos e católicos) e à questão do racismo no futebol. O processo eleitoral, que ora ocupa a cena, talvez pelo seu caráter mais universal, é o que está manifestando esta característica de forma contundente.

Que as mídias sociais (em particular o Facebook) hipertrofiam, pro bem ou pro mal, aquilo que vivemos nas nossas relações cotidianas é um truísmo e isso fica muito evidenciado nos contextos que geram debates polêmicos e que despertam paixões acirradas. Com a peculiaridade de que transpomos, de forma quase direta, discussões outrora orais e presenciais (e circunscritas a pequenas esferas), para o registro amplamente público e quase que perene do quê e do como falamos. Principalmente do como. Com um agravante típico das mídias sociais: tudo fica ali registrado para um público que via de regra é amplo e transcende para além da minha própria rede de amigos.

E onde há debate acalorado, principalmente a respeito de temas muito antagônicos, cria-se o cenário fértil para manifestações de nossa passionalidade, de nossas emoções, comprometendo o tênue equilíbrio da natureza dialética daquilo que é mais profundamente humano, como bem nos ensinaram os antigos gregos: razão e paixão. Nós somos seres passionais e, em situações de conflito, quase sempre nos entregamos facilmente às paixões mais negativas. Muito mais facilmente somos dominados pela ira, pela raiva, pelo ódio do que pelo amor, a serenidade e a temperança. Isso nos desequilibra, nos desorienta. Mas também somos seres racionais, característica que, quando bem exercida, pode nos devolver o rumo, temperar nosso comportamento, trazendo-nos de volta o equilíbrio. Este é o profundo sentido da Ética, quando os gregos a inventam na antiguidade. A nossa razão põe um freio em nossas paixões, orientando nossos atos para o bem. Do contrário, como bem nos mostram Hobbes e Freud, tornamo-nos propensos, quase que "naturalmente", a conflitos. E no ambiente das mídias sociais, é como se potencializássemos a expansão dos efeitos nocivos desses conflitos passionais.

Esta certamente é uma das eleições mais polarizadas que tivemos desde o período da redemocratização encarnado pelo embate Collor x Lula, em 1989. Com um grande diferencial que, no meu entendimento, é o principal responsável pelo aumento da sensação de incômodo que o arroubo passional dos antagonismos políticos sempre provocam (não só aqui no Brasil, mas em todo o mundo): se naquele momento, contávamos apenas com o mass media para poder veicular informações que alimentariam as discussões presenciais em pequenos grupos, hoje temos o cenário daquilo que em outro texto chamei de "Ágora eletrônica", ou seja, um espaço amplo e praticamente irrestrito das manifestações de opiniões, não mais por meio da fala, mas por meio da escrita. Com isso, ampliam-se as fontes de informação (antes restrita aos mass media) assim como ampliam-se os grupos de discussão quase que ao infinito. Aumentando as fontes de informações, aumentamos o potencial de geração de mitos; ampliando-se os grupos de discussão, potencializamos os conflitos.

Em tese, neste espaço, qualquer um pode entrar e manifestar sua opinião. Sob um certo aspecto, isso tende a igualar a análise de um Cientista Social à de um leigo no assunto, enfatizando aquilo que sempre foi um grande desafio para as Ciências Humanas como um todo: como objetivar a análise dos temas tratados sem cair no subjetivismo do reino da opinião. Em outras palavras, expõe-se uma certa fragilidade das Ciências Humanas frente às Ciências Naturais, por exemplo: de um modo geral, poucas pessoas se sentem à vontade pra falar com veemência sobre assuntos da Física, da Química ou da Medicina; principalmente se for para discutir com um especialista na área. Em relação a esses, curiosamente o senso comum tende a tratá-los como "cientistas", quase sempre evocando a máxima, "segundo a ciência...", ou "é científico" (sem se importar muito com o que isso efetivamente quer dizer). O mesmo não ocorre com as Ciências Humanas e seus cientistas. De um certo modo, todo mundo se sente um pouco "psicólogo", "sociólogo", "cientista político". E, no espaço das mídias sociais querem que suas opiniões tenham o mesmo peso das análises feitas pelos especialistas nesses campos. E o que é mais grave: tenho visto muita gente desqualificar análises de especialistas, transformando-as em mera opinião igualável à sua própria como forma de impor seu "argumento". Quero deixar claro que isso não significa dizer que somente os "cientistas" podem falar sobre os temas relacionados à sociedade. O debate é sempre bom e necessário. O debate, desde a Grécia Antiga, é considerado um dos principais estimuladores do pensamento. Apenas defendo que é fundamental dar os devidos pesos e colocar nos devidos lugares aquilo que é uma "opinião leiga" e aquilo que se constroi como uma "análise mais objetiva". Creio que a consolidação da prática deste mecanismo já ajudaria muito nos debates públicos.

Voltando ao ponto deste texto, como neste cenário das mídias sociais cabe tudo, ele se torna um terreno fértil para o acirramento das emoções e manifestações de ódios e intolerâncias. E, assim como nas manifestações de rua de 2013 (quando a proliferação do comportamento intolerante e violento de alguns grupos que acabaram delas tomando conta, provocaram um certo desânimo e cansaço numa sociedade que fazia suas reivindicações de forma democrática) parece que estamos também, nas mídias sociais reinventando esta prática, chegando a um certo esgotamento de ver se proliferando tantas manifestações do mesmo ódio e intolerância. Aqui especificamente, tudo se passa como se o verdadeiro debate político (argumentos econômicos, sociais, ideológicos etc.) ficasse em segundo plano. E, é sempre bom resgatar, este é o ponto mais importante de qualquer processo político-eleitoral. Construímos um paradoxo: sentimos tanta falta da prática da cidadania que, no momento em que temos oportunidade de verdadeiramente concretizá-la, parece que enfiamos os pés pelas mãos.

Um ponto importante para contribuirmos para a discussão é considerarmos os mecanismos psíquicos (focados no indivíduo) e sociais (focados no grupo) que contribuem para o acirramento desta situação desagradável. Por isso este diálogo entre a Psicanálise e as Ciências Sociais sobre o tema.

Uma das características dos processos eleitorais no mundo democrático contemporâneo é que as escolhas não são feitas sobre indivíduos mas sobre grupos. Embora nós brasileiros tenhamos a tendência personalista de associa-lo a uma determinada "pessoa" (discutindo nomes, não propostas ou ideologias), frequentemente nos esquecemos que esta pessoa representa um grupo, uma coletividade. Quando estas coletividades se traduzem em grupos configurados e antagônicos, o cenário para a construção de uma relação de alteridade bem polarizada e conflituosa se cria: parece dividir a sociedade num "nós" frente a um "eles". Este mecanismo é tão antigo quanto a humanidade. Seguindo a linha de interpretação narcísica (aqui usada como metáfora, apenas como um instrumento metodológico para tentar escapar de um certo etnocentrismo na interpretação) sugerida pelo Pedro, a construção de nossa identidade como indivíduo necessita da vinculação a um grupo para poder se consolidar. Isso é expresso por nossas características supostamente individuais mas que nos ligam a este grupo: desde o nosso nome, passando pela língua que falamos, religião que professamos, valores morais, etc. Essa sensação de vinculação e pertencimento a um grupo é que, de certa maneira, nos fornece o alicerce sobre o qual se edifica aquilo que passará a constituir a nossa identidade como indivíduo (contra a qual podemos até "lutar" mais tarde, no nosso processo de construção de escolhas; mas sempre referenciado nesse grupo ao qual pertencemos). Negá-lo é afirmar-lhe a existência.

Nesse processo, "eu" e "outro" são categorias construídas numa oposição dialética e interdependente. Não existem isoladamente na medida em que não têm um sentido substantivo, essencialista. Isso é o que, na teoria da identidade em Antropologia se configurou como o conceito de "identidade relacional" ou seja: o "eu" (ou o "nós") só existe na medida em que se toma consciência da diferença (da distinção) com relação a um "outro". É assim que este mecanismo tem garantido uma certa dinâmica na construção da identidade, coisa que a antiga e obsoleta abordagem substantivista (ou essencialista) não permitia. Dependendo do meu oponente, eu posso acionar mecanismos variados para construir uma distinção a fim de garantir que eu não seja confundido com este outro. Em última instância, para eu me definir como um "eu", é necessário (até por uma questão onto-lógica) que eu, pelo menos simbolicamente, exclua o outro: ele não sou eu. O problema é que temos a tendência de entender a simples diferença entre "eu" e "outro" como uma desigualdade: esta exclusão, não raro (mas não necessariamente), vem acompanhada de um sentimento de diminuição e até mesmo por um ódio a esse outro. Ele é inferior. Quando isso acontece, o cenário para o conflito está estabelecido. E, a depender do modo como ele se desenvolve, a violência (física e/ou simbólica) é quase inevitável.

Este mecanismo é uma constante em todos os grupos humanos (seja em que época e/ou local). E é necessário como um seu fator de aglutinação (e consequentemente separação com relação aos outros). E a depender da sociedade, operam por mecanismos bem distintos (desde as redes de parentesco, passando pela crença religiosa ou aquilo que se convencionou chamar de etnicidade, nacionalidade até mesmo agremiações esportivas e, como no caso aqui abordado, ideologias ou partidos políticos). Um exemplo muito interessante a esse respeito é a reinterpretação da função social da guerra entre os índios Tupinambás (feita por Florestan Fernandes) e o papel que o canibalismo tinha na "alimentação" de uma certa "vendetta" entre tribos inimigas. Quando capturado na guerra, o jovem guerreiro era levado para uma aldeia onde tinha um tratamento de excelência, recebendo inclusive mulheres para seu prazer. Vivia uma vida de pequeno rei. Quando chegava a hora do ritual de execução, o algoz lhe dizia: "Vou te matar e te comer porque os seus amigos mataram e comeram muitos dos meus amigos". Ao que o prisioneiro respondia: "Quando eu estiver morto, terei muitos amigos que saberão me vingar!". Assim, duas sociedades distintas cujos traços culturais eram exatamente os mesmos, a antropofagia ritual ocupava um lugar de manutenção do elemento concreto de polarização e antagonismo, que geraria o sentimento de vingança necessário para alimentar o conflito bélico que, por sua vez, marcaria fronteiras imaginárias, definindo quem era quem: Tupinambá ou Tupiniquim. Nesse sentido, explicita o fato de que o "eu" depende da existência do "outro" para seguir sendo quem é.

Se queremos efetivamente construir uma sociedade democrática, consagrando o caráter formador desta Ágora Eletrônica neste momento de debate eleitoral, teríamos que seguir uma certa utopia: brincando com a metáfora tupinambá, atingir a compreensão que a devoração do inimigo não deveria ser física nem real, pela violência passional, mas simbólica. Devorá-lo naquilo que ele tem de essencial no cenário político: suas propostas de governo, ideias para o campo da economia, da saúde, da educação, programas sociais etc. Este deveria ser o verdadeiro cenário de combate, de conflito.

E isso deveria ser um dever de todos, não somente dos "cientistas sociais". Afinal, se queremos ocupar o espaço de modo que nossa "opinião" seja tratada de maneira séria, teríamos que assumir nosso caráter racional até com um pouco mais de veemência que o passional, e mostrássemos concretamente o que desqualifica o projeto de governo do oponente, mostrando suas fragilidades, seus equívocos, e porque "o meu é melhor". Não desqualificar o oponente.

Para isso, nesse momento, resgatar a memória  histórica das duas trajetórias é fundamental. Focar na objetividade das propostas e dos argumentos baseados em dados também me parece mais adequado. Se conseguíssemos atingir este patamar racional, controlando ímpetos irascíveis em nome da construção de uma convivência civilizada como um bem maior, talvez consigamos fazer o bom combate mantendo o bom debate.

Claro que isso não é fácil. Mas necessário. Lembremos que, dessas armadilhas, nem figuras ilustres (e intelectuais) como o ex-presidente FHC ou o antropólogo Roberto DaMatta escaparam.

Do contrário, teríamos que nos entregar à sanha do "Homo homini lupus" (O homem é o lobo do homem), tematizada por Plauto (dramaturgo romano do século III) e notabilizada por Thomas Hobbes (filósofo inglês do XVIII).

Se, como afirmam Freud e Hobbes, o conflito é inerente ao ser humano, dele não podemos fugir. Mas podemos, como fazemos com todas as nossas características "dadas" pela natureza, reorientá-lo não para a destruição, mas para a construção. E isso, como lembrado no início deste texto, todo ser dotado de razão pode fazê-lo. Brincando com uma metáfora darwinista, teríamos que decidir entre retroceder à barbárie, entregando-nos à violência pura e simples, ou avançar no oceano do bom uso da razão, direcionando nossa nau rumo ao bom combate que nos conduzirá a um bem maior: a construção de uma sociedade justa e feliz, à qual, segundo os antigos gregos, nós todos estamos destinados.

domingo, 5 de outubro de 2014

Ágora eletrônica: pensando um espaço democrático concreto.



Conhecidos por nos deixarem um grande legado no mais amplo espectro das possibilidades das realizações humanas (pensamento, comportamento, valores, cultura, organização social, vida política etc.), aos gregos é atribuída uma das maiores invenções no campo político: a Ágora. Num mundo em que as decisões eram tomadas por reis e cortes, era impensável a possibilidade de que pessoas comuns se reunissem em espaços públicos para discutir as mais variadas questões, inclusive aquelas de natureza política. Reconhecida como uma revolução urbanística sem precedentes, a ágora representa a reelaboração do próprio conceito de espaço público: uma praça aberta, mescla de mercado e ponto de sociabilidade, para onde as pessoas afluíam, e ocorriam então variadas discussões sobre assuntos diversos, dos mais banais aos mais relevantes. É assim que surge o conceito de debate público, fundamental para a construção do que viria a ser a democracia contemporânea, simbolizado pelo nome genérico que damos ao local máximo de discussão e elaboração das leis que irão reger a nossa sociedade: o Parlamento (onde se "parla", se debate). As leis não mais são fruto da vontade divina ou de reis autoungidos, mas - pelo menos em tese - expressariam a vontade soberana da sociedade expressa, por sua vez, por meio de seus representantes. 

Eu não consigo deixar de ver um paralelo entre este espaço de discussão e o que ocorre hoje no ambiente virtual, particularmente nas chamadas redes sociais digitais. Afinal, trata-se de um espaço público (potenciado pela natureza da "rede virtual" - bem mais ampla que as redes concretas) em que as pessoas emitem suas opiniões, expressam seus valores e dizem o que pensam. Como na antiga ágora, não é necessário ser filósofo político, cientista social, psicanalista, economista etc. para poder se sentir à vontade de expressar suas opiniões. Entretanto, assim como na ágora grega, é forçoso reconhecer que nem todos possuem a característica da temperança, da racionalidade e até mesmo o primado da informação consistente para expressar, ainda que de forma "leiga", suas opiniões. Isso tudo pode ser muito bem constatado nos dias que correm. E o Facebook é uma arena privilegiada para esta observação. 

Assim como na época da Copa do Mundo, o Facebook agora, aproximando-se as eleições, tornou-se uma espécie de ágora brasileira em que os cidadãos discutem suas ideias, práticas, opções, visões de mundo. Longe de romantizá-lo, este espaço não revelou apenas civilidade (muita baixaria, arroubos histéricos, ofensas, manifestações de ódios e toda sorte de destempero - como é comum acontecer nas discussões de temas acalorados - e nisso, política e futebol tem muito em comum). Entretanto, apesar de não termos isso propriamente documentado, não fica difícil imaginar quantas brigas não aconteciam no debate grego antigo. A diferença, certamente, é que eles não eram registrados e abertos a um público tão extenso como o das mídias sociais digitais. Mas, certamente, muita briga voraz deveria acontecer. 

Observando minha timeline no Facebook nesta época de eleições, eu pondero duas coisas:

1) De um lado, como uma ágora virtual, este espaço ampliou concretamente as possibilidades de debates, de discussões que, de outra forma, ficariam restritas aos grupos de amigos que, via de regra, já tendem a pensar de forma semelhante. Certamente, isso contribui para enriquecer as discussões. Embora, como todos sabemos, em muitos casos pode contribuir para o acirramento dos destemperos, de ódios latentes, gerando ofensas e explosões verbais. Mas, insisto, isso é uma constante nos debates em qualquer esfera e em qualquer época. Precisaríamos um bom exercício racional para poder domar este ódio e destempero nas discussões, até mesmo em nome da boa colocação de nossas ideias; 

2) Do outro - e não vejo isso como demérito - ampliou na mesma proporção a possibilidade de lidarmos com as tradicionais asneiras (de todos os lados, deixo claro) do senso comum, especialmente quando fala de política. Como disse, é forçoso reconhecer que nem todos se dão ao trabalho de elaborar mais suas próprias ideias, checar inconsistências e verificar incongruências nos argumentos. As pessoas simplesmente abrem a boca e falam, ou, esticam o dedo e digitam. Até aí, tudo bem, é a liberdade de expressão. Agora, que não se irritem quando a fragilidade de seus argumentos é exposta e ele desmontado. Que compreendam que a expressão de seus argumentos revela seus valores, sua ideologia, a maneira como concebe o mundo. Afinal, como afirmei em uma conversa no Facebook: democracia não significa ausência de críticas; discordância não necessariamente significa discórdia. Do mesmo modo, opinião é só opinião; só vale pra quem a emite. Para ela transcender a esta esfera da subjetividade, é preciso que ela ganha corpo e consistência objetivos. Aí, vai-se tornando uma verdade. Mas, parece que nem todos enxergam isso. Querem que suas opiniões sejam encaradas como status de verdade e, como tal, isenta de críticas. Isso é uma longa discussão na história da filosofia.

(Como alguém já disse: em época de Copa, somos 200 milhões de técnicos; em época de eleição, somos 200 milhões de cientistas políticos.) Isso é consolidado na medida em que, diferentemente do debate clássico (presencial), no espaço digital ele ocorre de forma escrita e, portanto, fica registrado, o que abre margem para sua consolidação. 

Seja qual for a maneira, se  mantivermos um nível mínimo de civilidade (e o debate escrito, pelo menos em tese, permitiria isso, na medida em que o "escrever" pressupõe um mínimo de exercício racional, possibilitando maior temperança na fala), não há dúvida que de na esfera do debate político, estas discussões nas mídias sociais digitais representam um ganho. Vejo o saldo como sendo bastante positivo.

Eu só me frustro porque gostaria de ver, na prática cotidiana, a mesma verve cidadã crítica que vejo na minha timeline do Facebook. Às vezes tenho a impressão que um espaço como este acaba virando apenas catártico: explodo, critico, xingo... mas no cotidiano continuo na mesma pasmaceira e indolência de sempre. Inclusive naquela prática das pequenas "corrupções" cotidianas, pelas quais nós brasileiros somos sempre tão conhecidos (e nos reconhecemos). Frustra-me também o fato de que, muitas vezes, as pessoas não aproveitam oportunidades como essas para exercitar sua racionalidade (controlando um pouco suas paixões) e promover o "bom debate", aquele cuja função (como nos diálogos platônicos) é a de esclarecer, de trazer maieuticamente a verdade à tona. Pelo menos verdades mais consistentes. Fazer, como Sócrates magistralmente sabia fazer, as pessoas pensarem. Aproveitar e rever suas próprias opiniões, reavaliando seus fundamentos. Crescer como pensador. Isso sim, seria o verdadeiro e definitivo ganho. 

Eu já disse isso na época da Copa: bem que nós poderíamos aproveitar este momento de efervescência do debate democrático para agirmos mais na nossa pequena esfera de influência! Pensar mais sobre nossas escolhas, sobre nossos valores, sobre o que de fato desejamos. Agir mais e cobrar menos do outro, focando mais em nós mesmos, em nossas ações.

O Brasil ganharia muito com a construção deste espaço verdadeiramente democrático. Utópico? Pode ser. Mas o que seria do mundo sem a utopia que, ao nos mover para além do possível, nos faz construir possibilidades inimagináveis. 

Palavras Iniciais

Olá,

Bem vindo a um espaço que, antes de mais nada, é despretensioso. Ou melhor, se há alguma pretensão é a de exercitar a arte da escrita, refletindo livremente sobre fatos, idéias, cinema, filosofia enfim, tudo o que valer a pena pensar.

Como se não bastasse a exigência da profissão, eu mesmo me impus a necessidade de registrar meus pensamentos os quais, reconheço, considero valiosos pela única e exclusiva razão de serem meus, de representarem meu ponto de vista sobre as coisas. Nada mais. É, pois, nesse exato sentido que me refiro à ausência de pretensão. Quero apenas falar. Falar livremente. E se o transeunte cibernético que por aqui se aventurar sentir que vale a pena iniciar um diálogo a respeito das idéias apresentadas (as quais, já adianto, não serão tão aprofundadas), vou sentir que terá alguma utilidade para além da minha própria extravasão.

Apesar de relativamente antigo, eu me esqueci completamente da criação deste espaço. Nele havia deixado, oculto, um único texto que resolvi publicar mesmo estando inacabado. A ele retorno com o propósito de alimentá-lo com mais frequência, o que para mim será extremamente benéfico, inclusive do ponto de vista pessoal. Vou aproveitar para registrar outros escritos, feitos em outras épocas - pré-internáuticas ainda - que certamente revelarão um outro Fred (principalmente para aqueles que já me conhecem).

Espero que o leitor que por aqui passar possa encontrar alguns pontos sobre os quais pensar. E, se sua generosidade permitir, deixar a contribuição de suas opiniões e seus pensamentos a respeito do que encontrar registrado para, inclusive, provocar minha contrarreflexão.

Boa leitura e obrigado pela visita.
Fred

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