Para quem quiser, leia o texto Cientistas sociais procuram modelo para onda de protestos no Brasil, publicado no site da Folha.
Prezado Prof. Garcia,
Seu post foi um desafio delicioso. Agradeço por ele. Vamos lá.
Teresa Caldeira é uma das mais renomadas antropólogas brasileiras. Sua especialidade é antropologia urbana e estudos de periferia: tribos urbanas, movimentos culturais etc. Tive a sorte de, na década de 1990, ter sido aluno dela na Unicamp e de conviver com ela com um pouco de mais proximidade quando fui bolsista do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) que fica aí na Vila Mariana, na rua Morgado de Mateus. Não conheço com tanta proximidade o trabalho do sociólogo Sébastien Roché.
Eu gostaria de chamar a atenção para dois aspectos bastante óbvios, perigosos e tendenciosos da matéria. Desculpe se vou eu mesmo parecer meio óbvio, mas acho que o texto que você me enviou requer uma prevenção, um cuidado especial, contra esses dois pontos:
1. Se o senso comum já tem a tendência de desqualificar como mera "opinião" a análise de cientistas sociais, tirando delas o caráter científico e objetivo, a mídia de uma forma geral (e a grande imprensa em particular) dão uma valiosa contribuição para corroborar esta deturpação. Transformam a fala de qualquer especialista num mero jogo de opiniões (iguais às do taxista, da dona de casa ou de qualquer outro não especialista). Isso é ruim porque tira desta análise toda a tentativa de construção de um olhar objetivo (focado no "objeto", na coisa em si) e o transforma em um mero devaneio subjetivo (focado no sujeito, naquilo que "eu" penso). Confunde-se facilmente verdades objetivas com verdades absolutas e, com isso, afirma-se o reino da subjetividade. Em última instância, esta perspectiva nega a possibilidade de que existam "ciências" sociais;
2. É típico do método das Ciências Sociais (e a Antropologia não é exceção), o recurso à comparação como método de análise. É, diga-se de passagem, assim que se faz ciência, no âmbito das ciências humanas como um todo. Como não se pode transformar as sociedades num grande laboratório de experimentação (comunidades, sociedades, pessoas não podem ser alvo de "experimentos" - como em um laboratório de biologia, física ou química, por exemplo), lança-se mão da comparação justamente para evitar subjetivismos e tentar, com o máximo de proximidade, chegar ao "objeto", à realidade que se está analisando, comparar com outros fenômenos semelhantes procurando entender quais as variáveis importantes no processo de sua formação e suas consequências. Este procedimento é fundamental para que se tenha uma análise mais objetiva, como é propósito de qualquer ciência.
Dito isto, eu chamaria a atenção para um grande erro tendencioso da matéria: o título. Na verdade, nem a Teresa Caldeira, nem o S. Roché buscam "modelo", no sentido de algo congelado, estanque, sólido e essencialista. O que eles estão buscado é encontrar, em eventos parecidos que ocorreram recentemente, casualmente os dois na França (1968 e 2005), envolvendo jovens, questionamento da ordem estabelecida, mobilização popular etc., quais elementos poderiam ajudar a compreender o que está acontecendo hoje no Brasil. Isso é o procedimento padrão de qualquer cientista social. Nós vimos isso o tempo todo nas entrevistas dadas aqui no Brasil por vários deles.
Isso que está acontecendo hoje no Brasil é inédito (pelo menos em nossa história) e reúne elementos de uma grande complexidade. Portanto, o segundo ponto importante é que qualquer fato histórico só vai ser devidamente compreendido e esclarecido a posteriori. Jamais conseguimos ter uma compreensão das coisas no exato momento em que elas acontecem. Por isso, qualquer tentativa de "rotular", de "definir" é, não só, desaconselhada, como imprópria. O momento é de fazer exatamente o que muitos meios de comunicação têm feito: procurar especialistas para promover um debate para "ensaiar" caminhos de interpretação. Isso é extremamente importante. Com isso, reunimos elementos de várias áreas do conhecimento para ter uma compreensão mais abrangente do que está acontecendo. Para mentes mais superficiais e afoitas, isso é perda de tempo e não saber por onde caminhar. Ao afirmar isso, essas pessoas demonstram um total desconhecimento do que é o processo histórico e de quão complexos são os fenômenos sociais. Este exercício não é mera verborragia ou perda de tempo. Se não o fizermos, aí sim, caímos na armadilha dos reducionismos que nada explicam, muito pelo contrário, só acumulam inverdades sobre os acontecimentos.
Eu acho importante que isso seja pontuado porque tenho visto muitas pessoas (professores, inclusive por escrito no próprio Nota Alta) menosprezando este exercício de interpretação que tem sido feito, desqualificando as análises e afirmando que elas não levam a nada. Isso só consolida um enorme preconceito contra as ciências humanas (neste caso aqui, as Sociais em particular) de que, por não serem tão "objetivas", não levam a nada. Curiosamente, muitos chamam Antropologia, Sociologia, Psicologia etc. de "subjetivas". Isso é um erro primário que precisa ser combatido. Não é porque elas não se pautam pelos mesmos princípios das hard sciences que elas não têm objetividade, que não são ciências. Aí, uma boa leitura de T. Kuhn ajudaria.
Pelo que li da matéria (é preciso afirmar que não tomamos conhecimento direto das declarações de Caldeira ou de Rocher), as análises dos dois não são excludentes. Existem elementos importantíssimos nas constatações da antropóloga brasileira (talvez a mais relevante seja a possibilidade de uma inclusão política da periferia por meio da tomada de uma consciência de participação - até agora praticamente presente somente nas manifestações artísticas). Isso é muito importante. Aliás, ontem foi divulgado no Fantástico, uma pesquisa feita pelo IBOPE, a pedido da Rede Globo, sobre o perfil dos manifestantes. Como disse um entrevistado a telejornal da emissora: "Não é só playboy que tá aqui. Tem trabalhador. Eu sou trabalhador e estudo! Sou da periferia!"
Eu só penso que não é o momento de tirarmos conclusões, mas sim, de colecionarmos hipóteses plausíveis, investigá-las, compará-las com outros elementos importantes para melhor entendermos tudo isso. Neste sentido, os dois - Teresa Caldeira e Sébastien Roché - estão corretos. Suas hipóteses não são excludentes. Se é Paris de 1968 ou Paris de 2005 é um detalhe que o tempo resolverá. É preciso entender que "modelo", em Ciências Sociais, não é uma capsula para aprisionar qualquer interpretação da realidade, mas é um guia para que seja possível fazer as comparações necessárias, que o método destas ciências requer. Talvez não seja nem um nem outro. Talvez seja Brasil 2013.
Reflexão rápida, mas espero ter contribuído para aguçar a necessidade de continuar a pensar sobre o assunto e, mais, da necessidade de mais análises nesse momento que pode ser (ainda está cedo para afirmar) histórico. Muita coisa ainda precisa e será dita. Aos poucos, o conhecimento sobre este momento vai-se acumulando e nos ensinando uma lição muito importante: é assim que se faz história!!!
Espero que nossa classe política entenda esta lição das ruas. É simbólica a relação entre uma das imagens mais criticadas do nosso Hino (o "Gigante Eternamente Adormecido"), com o despertar de um povo que se sentia completamente impotente para alterar, com as próprias forças, aquilo que está ruim e que precisa ser mudado na sociedade. Talvez, sem perceber, o MPL tenha cumprido este importante papel histórico: despertou toda a demanda reprimida da sociedade. Como disse um dos cartazes que fotografei numa das manifestações: "Não é por preço$, mas por valores!".
Espero que nossa classe política entenda esta lição das ruas. É simbólica a relação entre uma das imagens mais criticadas do nosso Hino (o "Gigante Eternamente Adormecido"), com o despertar de um povo que se sentia completamente impotente para alterar, com as próprias forças, aquilo que está ruim e que precisa ser mudado na sociedade. Talvez, sem perceber, o MPL tenha cumprido este importante papel histórico: despertou toda a demanda reprimida da sociedade. Como disse um dos cartazes que fotografei numa das manifestações: "Não é por preço$, mas por valores!".
Grande abraço.
Fred Lucio.
Parabéns li seu texto e te confesso não sou expert em ciências sociais ou qualquer outra formação ligada ao humanismo, mas através de minhas lentes eu aprendi a ler o sentimento do povo de cada lugar que passo, e o que vc escreveu é fabuloso, e representa bem o pensar de nosso povo que pede de volta simplesmente os valores humanos, que tem direito nada mais Espero um dia poder escrever como você e repassar o meu pensar durante esses meus seis anos de andanças pela França e Suiça . BRAVO!!
ResponderExcluirMuito bom seu texto Prof. Fred.
ResponderExcluirParis 1968, Paris 2005 ou Paris 1789? rsrs