quarta-feira, 19 de junho de 2013

Todas as cores do mundo


A propósito do projeto de "Cura Gay" da CDHM em Brasília.
Texto originalmente publicado no Blog Nota Alta (ESPM) em junho de 2013.

“Não se nasce mulher. Torna-se mulher.” (Simone de Beauvoir)

Creio que seja por demais significativo o fato de que Psicanálise e Antropologia tenham sido duas ciências com surgimento tão tardio na história do pensamento ocidental. Muito mais preocupados com as questões que nos são externas (o mundo, a natureza, os processos históricos e até mesmo a transcendência, a espiritualidade etc.), fomos deixando para trás a necessidade de compreender quem somos de um ponto de vista mais holístico e completo. Foi assim que, no nem tão longínquo século XIX, formou-se a presunção de que bastava conhecermos a nossa realidade material (e natural, “biológica”) para que pudéssemos nos compreender a nós mesmos naqueles aspectos considerados mais relevantes. Afinal, afirmavam essas teses novecentistas, em última instância, somos determinados por nossas bioquímicas moleculares, neurológicas ou qualquer reducionismo biológico-comportamental que o valha. Pensar o ser humano se reduzia, pois, a pensar sua condição natural, sua animalidade.

Num primeiro momento de sua constituição como campo científico, a Antropologia e a Psicologia caíram nesta armadilha positivista e reducionista, de explicar tudo o que diz respeito às ações e comportamentos humanos (seja do ponto de vista coletivo – a primeira -, seja do individual – a segunda) com base nas relações determinantes e deterministas de sua constituição fisiológica. Esta seria alegadamente a grande “matriz” de onde emanam os eflúvios de nos ditam e, em última instância, explicariam nossas ações. E mais: poderíamos intervir sobre elas para “corrigir” eventuais erros desta mesma natureza, vista assim como nem tão perfeita e infalível. No campo da Antropologia, algumas variantes perversas deste pensamento tiveram sua concretização com consequências extremamente nefastas na história, sendo as ideias de “raça” e “sexo” duas das mais relevantes.

Com relação ao exercício da sexualidade, o mais curioso é que neste reducionismo naturalista (ou naturalizante), não se percebe o que talvez seja o maior de todos os equívocos. De um lado, nós seres humanos fazemos questão o tempo todo de manter nossa distinção (e superioridade, por que não?) contra os demais seres da natureza (afinal, nos diz o mito fundador de nossa civilização, somos “criados à imagem e semelhança da perfeição de um deus”). Inclusive relegando à esfera da animalidade (Natureza) aqueles que não estão em adequação ao espaço da Cultura: porco para aquele que é sujo; vaca ou galinha para a mulher que tem um comportamento sexual “desregrado”; garanhão, para o homem que prova sua virilidade na conquista das fêmeas etc. Do outro, para manter os padrões morais de uma sexualidade institucionalmente controlada e normatizada, construídos ao longo de séculos, jogamos no lixo esta distinção da cultura e o consequente pedestal autoconstruído, regredindo ao momento lógico da anti-cultura, da anti-sociedade. Advogamos certas características “naturais” como sendo o fundamento daquilo que é considerado “correto”, “justo” e “praticável”, evidentemente que com a consequência de condenar toda forma que não se ajusta a este quadro (isto é, não se enquadra) como sendo anômala, desviante e, muitas vezes, criminosa. Sem perceber tal incoerência lógica, estas ideias nos remete de novo à condição simbolicamente renegada da “animalidade”, desprezando justamente a nossa “humanidade”. O etnocentrismo característico da cultura ocidental vai mais longe e comete o equívoco básico da arrogância e da prepotência neste tema (entre tantos outros): pressupor uma universalização deste comportamento sexual tido como “natural” (e de suas variantes sociais tais como as práticas matrimoniais, o próprio conceito de família, paternidade, sistemas de parentesco etc.), claro que pautado pelo modelo da família ocidental europeia.

Sendo a Antropologia, no seu sentido etimológico mais puro, a “ciência do homem”, é de se esperar que ela traga luzes para sepultar deste debate os ranços tanto do determinismo biologizante do comportamento sexual, quanto do etnocentrismo que coloca o modelo europeu de sexualidade (e, correlatamente, família, casamento e parentesco) como parâmetro universal a ser seguido por todos.
A construção do conceito de gênero (tanto na Psicologia quanto na Antropologia) é um dos maiores exemplos de como a questão pode ser trabalhada de forma muito mais ampla e complexa para se compreender (sem prejulgar, condenar ou classificar como anomalias, aberrações ou, pior ainda, patologias) a enorme variedade de possibilidades que a sexualidade humana encerra. Evidentemente que a natureza nos fornece uma matriz (XX ou XY). Isso é fato. O que não se pode menosprezar (como fazem as teses do determinismo biológico – ainda que disfarçadas de uma roupagem pseudo sofisticada do péssimo e empobrecido uso que se vem fazendo de uma grande ciência como a neurociência contemporânea) é que, como característica fundamental que nos confere nossa humanidade, a nossa racionalidade nos dota de uma dimensão extremamente importante, capaz de criar construções, significações e, portanto, operacionalizações sociais destas mesmas construções: trata-se da nossa dimensão simbólica. Extremamente poderoso, nosso simbolismo está presente em várias esferas da nossa vida, e a todo momento dá um recado para a mãe-natureza: tudo bem, você me criou um ser vivo, sujeito às suas “leis”; mas eu sou mais poderoso que você e recrio, reinvento, essas leis, fazendo-as se cumprir do jeito que eu quero. Nós, seres humanos, não somos determinados por elas; ao contrário, nós a determinamos. A questão é: somos naturais e culturais ao mesmo tempo, mas o que, de fato, nos difere dos demais animais? Se a explicação do comportamento humano for, em última instância, natural ou biológica, a resposta é “nada”. Somos meros animais. Isto evidentemente escapa à percepção das mentes menos aguçadas.

A sexualidade é um entre tantos campos em que este embate entre Natureza e Cultura é operado. As inúmeras sociedades humanas espalhadas pelo globo são um celeiro de exemplos da enorme variedade disso. Assim, por exemplo, o clássico grupo Trobriandês (analisado por Malinowski no início do século XX), ignora completamente que a geração de uma criança está vinculada ao ato sexual: para eles, é um ato totalmente espontâneo e exclusivamente feminino. A consequência social disso é que construíram uma sociedade com base matrilinear e um conceito de família que não considera e existência de um pai (o homem é apenas o marido da mãe, para uma criança). Fato, aliás, que ensejou um debate entre Malinowski e Freud a respeito do pressuposto universal do complexo de Édipo. Ou, mais radicalmente ainda, a instituição do casamento entre mulheres entre os Nandi do Quênia Ocidental (analisado por Regina Oboler) que classifica uma das mulheres (a mais velha) como um “female-husband”: o mais curioso é que os filhos aí gerados são das duas (independentemente, como nos ensina nossa “biologia”, de ter havido um ato sexual com um homem). A literatura etnográfica em antropologia multiplica exemplos assim tidos, pelos olhos ocidentais, como “exóticos” e “bizarros”, mas que nos ensinam muito sobre esta enorme possibilidade e que é de fato “ser humano”: inventar, criar sobre a Natureza, afirmando nossa diferença sobre ela. O que interessa não é o dado natural, corroborado pela Biologia (ciência), mas a construção, a classificação social do que é e de como deve ser praticado o ato sexual e, por conseguinte, a construção da sexualidade. E estas sociedades funcionam muito bem assim, obrigado!

Mais próximo a nós, podemos citar a enorme variação de gêneros historicamente construída, grande parte de difícil compreensão para as pessoas. “Homem e mulher” deixam de ser a polaridade básica substituída por realidades como gays, lésbicas, transgêneros (natureza de um sexo e psiquê de outro), travestis (mulheres fálicas) etc. Uma enorme “sopa de letrinhas” em forma de sigla (GLS, GLBT, GLBTT, LBGT etc.) que vem caracterizando o movimento político da diversidade sexual, parodiando e expressão-título da dissertação de mestrado de Regina Facchini. O que dirá então de certas variantes ainda mais difíceis de serem compreendidas como um transgênero lésbico, por exemplo (o cara com um corpo de homem, psiquê de mulher e cujo desejo é ter relações sexuais com mulher como mulher – e não como homem). O fato é que a dificuldade de lidar com estas categorias leva as pessoas ao mais cômodo: ao invés de procurar compreendê-las, rotulam-nas como anomalias, quando não, patologias e com isso o assunto parece encerrado. E não está, obviamente. Ignora-se também que a única patologia aí presente é a de uma sociedade que não consegue encarar possibilidades mais ricas de exercício da diversidade no campo da sexualidade, tentando reduzir a realidade a um simplismo que ela não tem.
Gosto sempre de mencionar em minhas aulas o caso dos travestis, especialmente aqueles com quem a maior parte da população tem contato, que são os que estão na rua, prestando serviço sexual (prostituição). Talvez não exista categoria de gênero que mais escancare o moralismo e a hipocrisia da sociedade no campo da sexualidade. Diferentemente do transgênero masculino (que quer extirpar o símbolo de sua ambiguidade, o pênis), o travesti faz questão de mantê-la. Ele não quer ser uma simples mulher: quer ser mulher com falo. E o travesti que se prostitui sabe que isso é um diferencial “mercadológico”, se podemos colocar nesses termos: levantamentos feitos por sexólogos (cientistas sociais) revelam que quem o procura, em sua grande maioria, são homens casados e cujo desejo é ter uma relação passiva com uma mulher de falo. Se levarmos em conta que o que define a homossexualidade é o amor e o desejo pelo outro do mesmo gênero, o mais desafiador para a compreensão das pessoas neste caso específico é que isso não necessariamente torna este homem um homossexual, pois ele apenas quer ter prazer em uma região do seu corpo socialmente condenada aos homens. Isto é um outro campo fertilíssimo para discussão e debate. Talvez, por esse escancaramento de uma verdade que se quer ocultar, este grupo (os travestis) seja alvo das maiores violências e atrocidades, especialmente (como mostram as estatísticas) por parte de jovens.

Finalmente, em tempos de efervescência político-social por conta de direitos que atingem minorias sexuais, creio que esta discussão se afirma com toda a relevância. Principalmente no momento em que o retorno de um certo primarismo reducionista do cultural pelo biológico se faz presente com toda força em algumas esferas do debate jurídico-político (onde decisões que afetam diretamente a vida das pessoas são tomadas). Digno de nota são os levantes ocorridos na França nas duas últimas semanas contra a aprovação do chamado “casamento gay”; ou as manifestações contra o atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em Brasília, sob a acusação de homofobia e racismo e que está para apresentar nesta Comissão um projeto popularmente denominado “Cura Gay”, já comentado pelo colega Pedro de Santi neste blog.

Neste sentido, é extremamente simbólico que a bandeira do arco-íris do movimento gay – que se tornou conhecida do grande público por conta da crescente visibilidade da Parada do Orgulho Gay em São Paulo (e no resto do mundo) – não tenha as preconizadas 7 cores do fenômeno natural cujo nome ela porta: possuindo 6, não 7, cores, ela é um símbolo daquela afirmação da Cultura sobre a Natureza. O reconhecimento simbólico de que, o que importa para o ser humano, são suas criações, suas elaborações, suas construções e não uma mera reprodução do que é o campo natural. Se assim fosse, qual a vantagem de ser e nos orgulharmos de ser humanos?


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Palavras Iniciais

Olá,

Bem vindo a um espaço que, antes de mais nada, é despretensioso. Ou melhor, se há alguma pretensão é a de exercitar a arte da escrita, refletindo livremente sobre fatos, idéias, cinema, filosofia enfim, tudo o que valer a pena pensar.

Como se não bastasse a exigência da profissão, eu mesmo me impus a necessidade de registrar meus pensamentos os quais, reconheço, considero valiosos pela única e exclusiva razão de serem meus, de representarem meu ponto de vista sobre as coisas. Nada mais. É, pois, nesse exato sentido que me refiro à ausência de pretensão. Quero apenas falar. Falar livremente. E se o transeunte cibernético que por aqui se aventurar sentir que vale a pena iniciar um diálogo a respeito das idéias apresentadas (as quais, já adianto, não serão tão aprofundadas), vou sentir que terá alguma utilidade para além da minha própria extravasão.

Apesar de relativamente antigo, eu me esqueci completamente da criação deste espaço. Nele havia deixado, oculto, um único texto que resolvi publicar mesmo estando inacabado. A ele retorno com o propósito de alimentá-lo com mais frequência, o que para mim será extremamente benéfico, inclusive do ponto de vista pessoal. Vou aproveitar para registrar outros escritos, feitos em outras épocas - pré-internáuticas ainda - que certamente revelarão um outro Fred (principalmente para aqueles que já me conhecem).

Espero que o leitor que por aqui passar possa encontrar alguns pontos sobre os quais pensar. E, se sua generosidade permitir, deixar a contribuição de suas opiniões e seus pensamentos a respeito do que encontrar registrado para, inclusive, provocar minha contrarreflexão.

Boa leitura e obrigado pela visita.
Fred

Clique aqui para me escrever!