Desconstruindo o mito sobre a origem do Dia Internacional da Mulher
No excelente vídeo produzido em divulgado em março de 2017 pela Boitempo (cf. link no final deste texto), por ocasião do Dia Internacional da Mulher, a socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes discorre sobre as origens comunistas e socialistas da data. Ela recupera as condições históricas, políticas e econômicas do surgimento do movimento de massas das mulheres, comentando a importância de figuras como a ativista, jornalista, deputada e professora alemã Clara Josephine Zetkin (1857-1933) e Alexandra Mikhaylovna Kollontai (1872-1952) na criação do Dia Internacional da Mulher, e como ele serviu de estopim para desencadear a Revolução Russa. "Trotski cita também o 26 de fevereiro (8 de março, no calendário gregoriano) como "o primeiro dia da revolução. E é esta data que é, desde 1921, comemorada na Rússia Soviética e pelo movimento comunista internacional" (Françoise Picq).
Segundo a historiadora Françoise Picq, uma das principais responsáveis pela desconstrução do mito mito de origem do 8 de março como sendo novaiorquino, "Foi em agosto de 1910, na Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas em Copenhague, por iniciativa de Clara Zetkin, uma ativista alemã, que foi tomada a decisão de celebrá-la. O objetivo era mobilizar mulheres, políticos e sindicatos proletários em torno da mesma causa. O movimento feminista não está na iniciativa deste dia. Pelo contrário. É precisamente para neutralizar a influência de grupos feministas sobre as mulheres do povo que Clara Zetkin propôs este dia". (cf. La véritable histoire de la Journée internationale des droits des femmes).
A data de 8 de março não é tão consensual assim, mas o princípio é aceito: mobilizar as mulheres de acordo com as organizações políticas e sindicais do proletariado dotadas de consciência de classe.
É importante a principal tese de Maria Lygia (corroborada por pesquisadores mundo afora): O Dia da Mulher é, portanto, a iniciativa do movimento socialista e não do movimento feminista, que era muito ativo na época. Segundo Picq, "É precisamente para neutralizar a influência de grupos feministas sobre as mulheres do povo que Clara Zetkin propõe neste dia". Ela rejeitou a aliança com as "feministas da burguesia". Neste embate, fica evidenciado a cisão entre dois recortes: ser feminista e ser socialista nem sempre combina.
Pode parecer confuso ou incongruente? Nem tanto. Esta é a mesma tensão que bagunça a cabeça de muita gente, quando negros e gays norte-americano ajudaram a eleger Trump; ou no Brasil, negros, gays e mulheres brasileiras ajudaram a eleger o governo Bolsonaro. Para um negro (ou um gay ou uma mulher) neoliberal radical, a pauta homofóbica ou machista dos dois governos pesa menos do que a proposta liberalizante de suas agendas econômicas, com as quais se sentem mais identificados. Esta constatação torna as análises sócio históricas bem mais complexas do que gostaríamos. Mas a história é assim: nada simples.
Refletindo sobre como a historiografia hegemônica buscou apagar e falsear o elo entre o feminismo e o socialismo nas origens do 8 de março, para produzir uma celebração mais domesticada e até comercializável do Dia Da Mulher, no vídeo da Boitempo, Maria Lygia defende uma retomada radicalidade da data como um dia da luta.
Importante enfatizar que esta análise de Maria Lygia está baseada no trabalho da historiadora francesa (mencionada acima) Françoise Picq que, em 1970, desconstruiu o mito da origem novaiorquina do Dia da Mulher a partir de um fato que sequer ocorreu, pois não há um só registro histórico dele: a alardeada greve das costureiras em Nova Iorque.
Nas palavras de Picq: "Naquela época, toda a imprensa militante, o Partido Comunista Francês e a Confederação Geral dos Trabalhadores, assim como os chamados "grupos de mulheres" do Movimento de Libertação das Mulheres, ratificada pelos diários nacionais, escreveu que o Dia da Mulher comemorava o dia 8 de março de 1857, dia de manifestação de costureiras em Nova York. Este evento nunca aconteceu! Os jornais americanos de 1857, por exemplo, nunca mencionaram isso", diz Françoise Picq. Este fato nem sequer foi lembrado por aqueles que tomaram a iniciativa do Dia Internacional da Mulher: os líderes do movimento socialista internacional das mulheres.
Costureiras de Nova York, um mito nascido em 1955
Mas como nasceu o mito das costureiras de Nova York? "É em 1955, no jornal L'Humanité, que a demonstração de 8 de março de 1857 é citada pela primeira vez", diz Françoise Picq. E a origem lendária, transmitida todos os anos na imprensa, tem precedência sobre a realidade. Por que separar o 8 de março de sua história soviética? "De acordo com uma das minhas suposições, continua ela, Madeleine Colin, que então chefiava a CGT quis superar o domínio da UFF2 e do Partido Comunista para que ele seguisse os seus próprios slogans durante 8 de março. A celebração comunista do Dia da Mulher se tornou muito tradicional e reacionária para o gosto dela. "E é por isso que, ao se referir aos trabalhadores americanos, ela a apresenta sob uma nova luz: a da luta das mulheres trabalhadoras.".
Maria Lydia Quartim de Moraes |
Para saber mais sobre o trabalho de Françoise Picq, remeto ao excelente artigo (infelizmente, em francês, o que limitará a leitura pelo público lusófono). Journée internationale des femmes : à la poursuite d'un mythe (Dia Internacional da Mulher - investigando um Mito.)
Mais artigos sobre o Dia Internacional da Mulher:
Le mythe des origines du 8 mars
8 mars, du mythe à la réalité.
Les histoires du 8 mars
8 mars: Quand la journée des femmes était une fête des mères communiste et antiféministe
KANDEL (L.) & PICQ (F.), JOURNÉE DES FEMMES : LE MYTHE DES ORIGINES (1982)
Histoire de la Journée internationale des femmes – Démêler le vrai et le faux
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* Este texto é uma compilação minha de vários textos obtidos dos seguintes sites:
a) Página do YouTube da Editora Boitempo, onde está o vídeo de Maria Lygia Q. de Moraes (link acima);
b) Matéria do Jornal do CNRS (Centre Nationale de Recherche Scientifique, da Université de Paris).
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