terça-feira, 18 de novembro de 2014

Quando "Negro" significa orgulho de uma tomada de Consciência.


O final da ditadura militar no Brasil, em meados da década de 1980, marca a eclosão de movimentos populares das chamadas bases sociais, ou minorias (não do ponto de vista numérico, mas politicamente participativo - ou seja, excluídos dos tradicionais mecanismos decisórios), como proletários urbanos e rurais, populações indígenas, sem terra, mulheres etc. No bojo deste debate, um movimento de conotação étnico-política começa a se consolidar - principalmente com um corpo jurídico específico: o chamado "movimento negro"

Muito embora as lutas antirracistas e por garantia de direitos não fossem novas no Brasil, é o ano de 1988 que serve de palco para três eventos de não tão grande relevância histórica, mas que vai reverberar internamente na "questão negra" e se refletir diretamente na militância política desses grupos. 

O primeiro deles ocorreu em maio daquele ano, quando esses movimentos provocaram um enfrentamento simbólico com o Estado brasileiro recusando-se a participar das comemorações oficiais relativas aos 100 anos da Abolição da Escravidão e organizando seus próprios festejos e ações alusivas à data. A alegação era de que a Abolição, de fato, não havia acontecido dada a condição sub humana de muitas comunidades negras no Brasil (vítimas preferenciais da violência, da miséria e da exclusão social - como resultado de uma ausência de política de inclusão pós libertação) e a proliferação do racismo velado e forte em nosso país.  

O segundo ocorreu em outubro, quando da promulgação da Nova Constituição (também apelidada popularmente de "Constituição Cidadã") e que trazia os artigos e parágrafos relativos às comunidades quilombolas e outros dispositivos antirracistas. Nesse sentido, a Constituição foi um marco importantíssimo. 

E, por último, decorrente daquela  resistência às comemorações do centenário da Abolição da Escravidão (ocorrida em maio), o movimento negro acentua as comemorações do dia 20 de novembro, data que já era dedicada a um dos pouquíssimos heróis negros reconhecidos pela historiografia brasileira (Zumbi dos Palmares) – em que pese ser esta uma figura bastante polêmica na mesma historiografia, pois sua alçada à categoria de herói é questionada por muitos historiadores –, como o "Dia da Consciência Negra"

De acordo com o historiador Aldemir Fabiani, corroborando a ideia de uma inclusão da pauta marxista no movimento negro, é possível afirmar que esta preferência pela saga de Palmares tenha se dado por alguns motivos: a maioria das lideranças do movimento negro organizado e os intelectuais ligados à causa do negro já haviam escolhido Zumbi como herói, em sentido de oposição à data da Abolição; o conceito de quilombo foi apropriado por parte da esquerda brasileira, contrária ao regime militar, como exemplo de resistência, irreverência e apelo à liberdade; a intelectualidade marxista, ou simpática ao marxismo, também havia definido o quilombo como exemplo da luta de classe, no regime escravista. Se Zumbi foi historicamente isso ou não, importa menos do que o fato de que ele tenha sido colocado neste lugar na historiografia. Lembremos que o mesmo ocorreu com Tiradentes, outro herói cuja "heroicidade" é profundamente questionada por historiadores. (Mas, certamente por ser branco, o senso comum não se questiona muito sobre isso.)

É assim que estes três eventos contribuíram para colocar a questão "negra" na pauta das discussões políticas, sociais e culturais no Brasil do final dos anos 1980, um fato de importância histórica, já que, no Brasil, o problema de assumir a segregação racial sempre foi um desafio dos mais relevantes no campo social. É preciso lembrar também que, paralelamente a esse movimento, estava ocorrendo um outro bem forte, o das nações indígenas brasileiras (mas isso é outro assunto). Em suma, todas estas questões firmam a década de 1980 como um importante marco para a consolidação do tema étnico-racial (índios e negros) como um dos protagonistas dos movimentos sociais ressurgentes.

Não obstante, ainda serão necessários alguns anos para que a questão negra, de fato, entrasse na pauta oficial do governo Brasileiro em suas várias esferas. Embora tenha havido alguma movimentação aqui e acolá, é importante que se registre que o governo Lula foi, sem sombra de dúvidas, um marco importante a esse respeito devido a várias medidas institucionais por ele criadas. Ao contrário do que o senso comum mal informado tenderia a pensar, não estou falando da questão das cotas raciais para o ensino superior. (Pauta, aliás, longe de ter sido proposta pelo governo, mas foi encapada por ele a partir do que algumas universidades estavam fazendo e também pelas diretrizes da Conferência de Durban. Mas isso é outro assunto.)

Voltando ao ponto, dessas medidas, talvez o exemplo mais significativo tenha sido a primeira lei sancionada por aquele governo, com um peso duplamente simbólico (pela data escolhida e pelo fato em si): em 09 de janeiro de 2003 (“Dia do Fico”, considerado por muitos historiadores como a data mais importante – até mesmo que mais que o 07 de setembro – que marca a ruptura dos laços entre colônia e metrópole no Brasil), o presidente assina o Decreto Lei 10.639 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir, no currículo oficial, da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", além de instituir oficialmente o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. O primeiro ponto representou uma correção histórica monumental: apesar de ter a contribuição das culturas negras vindas da África amplamente reconhecidas por pensadores como Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, nenhum livro de história do Brasil utilizado na rede pública trazia, a não ser por breves informações caricaturais, o real peso destas contribuições. Tudo se passava como se fôssemos, nós brasileiros, apenas europeus (embora nossos fenótipos neguem acintosamente as omissões dos manuais de história). O segundo item do decreto, embora controverso (pela própria polêmica em torno da figura de Zumbi), também é de uma expressividade histórica fora do comum: trata-se do reconhecimento oficial do primeiro herói negro ao qual é dedicado um dia para culto à sua memória. Outra medida, tomada em maio do mesmo ano, foi a criação de uma pasta dedicada a assuntos raciais (a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, SEPPIR) cujas funções, entre outras, seria elaborar políticas de desenvolvimento sustentável para as comunidades tradicionais de afrodescendentes no Brasil. 

Toda esta movimentação ocorre pouco tempo depois que o Brasil assina o tratado da Conferência Mundial Contra o Racismo, ocorrida na cidade de Durban em 2001 (mas que foi deixado de lado pela gestão federal anterior) que o obrigaria a desenvolver políticas de combate ao racismo e de ações afirmativas. Isso vai levar a um dos mais importantes fatos nesse campo que é justamente o debate sobre cotas. Quero deixar registrado apenas - até porque foge do tema aqui proposto - que, independentemente da posição que se tenha (contra ou a favor), este debate foi o fato que mais contribuiu para inserir a questão do racismo e do preconceito racial na pauta de discussão da nação. Fato inédito! 

É assim que, pressionada pelos movimentos sociais e aproveitando este momento de visibilidade e institucionalização (via Constituição e leis), com um amplo debate debate sobre Racismo, Preconceito, Discriminação pelo viés étnico racial que o movimento negro entra na pauta brasileira. Um outro aspecto relevante (mas não discutido aqui) é a questão quilombola e a gigantesca participação das culturas negras na nossa formação. 

Muito ainda falta por ser feito. Estamos ainda a anos-luz de qualquer perspectiva de acabar com o racismo promovendo uma inclusão étnico-racial. Mas ter um dia para nos lembrar que isso é, sim, um problema no Brasil, é muito importante e necessário. Até para que não seja mais necessário um dia como este. Por enquanto, ele é e muito! Os fatos recentes de racismo no país são uma prova evidente disso. 







segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Ética, alguém viu por aí? - reflexões sobre corrupção e cultura brasileira


Na semana passada deu-se mais um grande desdobramento da "Operação Lava Jato", deflagrada pela Polícia Federal em março de 2014: um esquema para lavagem de dinheiro envolvendo bilhões de dólares em que partidos políticos e seus representantes teriam se aproveitado para beneficiar empresas (muitas posteriormente, como revelado pelas investigações, grandes empreiteiras envolvidas com os bilionários negócios da Petrobrás) e empresários. Nesta fase da operação (7ª, desde o seu início em março de 2014), foram expedidos mais de 80 mandados de prisão contra pessoas ligadas à iniciativa privada, entre elas, altos executivos das maiores empreiteiras do país. A investida contra o chamado braço político parece que não demorará e virá nos próximos dias. Tudo com ares de algo histórico no combate à corrupção no país. 

Assim como em tantos outros esquemas de corrupção, é interessante notar que, do ponto de vista das opiniões veiculadas pelas mídias sociais, muito se fala e se enxovalha sobre o envolvimento de políticos e partidos. São nítidos os gritos de protestos (muitos histéricos) contra atitudes que dilapidam o patrimônio público. No entanto, como aconteceu na semana passada, praticamente nada se fala sobre a participação de empresas, empresários e demais funcionários que se beneficiaram deste esquema. Quase não houve reverberação nas mídias sociais e, as poucas que vi, ainda falavam dos políticos (como se não houvesse grandes interesses privados envolvidos, ou como se estes fossem de menor importância). 

Para o imaginário do senso comum, é como se a corrupção tivesse apenas um lado, o corrupto, sendo cômoda e cinicamente desprezado o outro, o do corruptor. E a coisa me parece ser de um raciocínio não tão complexo assim para escapar à compreensão das mentes mais medianas. Afinal, corrupção só existe quando há uma parte interessada em obter vantagens da esfera pública (o corruptor) que, para isso, paga propina (corrompendo) a agentes do Estado (corruptos). Aliás, isso é tão óbvio que já estava previsto no Código Penal (Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940, em vigor até hoje) que, no seu Art. 333, estabelece a figura da corrupção ativa (corruptor) como crime: 

Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.

O mesmo Código estabelece também a figura da corrupção passiva: 

Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem.

Há muitos anos, nos meus cursos que têm o Brasil como tema, eu venho trabalhando sob o viés antropológico um olhar a respeito de uma contradição que considero estrutural e estruturante na formação (e interpretação) da sociedade brasileira: uma tensão constante entre o arcaico e o moderno. Partindo do pressuposto de que a articulação entre as esferas política, econômica e social é fundamental para a estruturação da sociedade (principalmente a contemporânea), em 2011, ano em que tomou possa a presidente Dilma Rousseff, publiquei uma síntese de algumas dessas ideias num ensaio intitulado "O eterno dilema da quase modernidade brasileira". Com um título que expressa quase uma síntese de um dos seus pontos centrais, nele eu defendia a ideia de que se queremos construir a tão desejada modernidade no campo econômico (em particular no Brasil), é fundamental que façamos o mesmo na esfera política e no campo social sob pena de naufragarmos no projeto de modernização plena do país. 

Um dos argumentos fortes do texto é que nós brasileiros, no nosso imaginário, nutrimos um profundo desejo por uma modernidade idealizada, e de uma certa forma invejando (e nos comparando constantemente) com países "que deram certo" (ou seja, onde estes três campos se articulam de maneira mais ou menos harmônica - termo usado aqui com conotação simbólica e genérica, não literal). Entretanto, na vida concreta cotidiana, nossas ações constroem de forma acentuada uma sociedade arcaica. Em outras palavras, defendo no texto da ideia de que queremos os benefícios da modernidade, mas não estamos dispostos a arcar com o alto custo que ela nos cobra: o custo da ordem, da lei, do altruísmo e de pensar a coisa pública de abrir mão de interesses e vontades pessoais. E nós navegamos nesse eterno dilema de uma quase modernidade que nunca se completa. Como interpretou Roberto DaMatta há muitos anos: entre a lei e a ordem, construímos o jeitinho como nosso modo particular de navegação social. E a proliferação dos casos de corrupção (envolvendo empresas e empresários rapinando a máquina pública para atender a seus interesses) são o aspecto mais perverso de uma profunda e violenta tradição arcaica. 

Certamente o conceito de modernidade é um dos mais complexos e debatidos das ciências humanas. Para caracterizar o debate (e a argumentação), vou considerar aqui um de seus aspectos consensuais: no campo social e político se constrói uma fronteira bem definida e clara que separa de forma definitiva a esfera pública da esfera privada. Ou seja, aquilo que pertence à dimensão da coletividade, de todos e aquilo que é a esfera do privado, do íntimo. É assim que, nas chamadas sociedades modernas, quando há um choque entre os interesses privados, particulares, e os interesses coletivos há uma prevalência destes últimos expressos pelas regras formuladas em um Estado de Direito a que temos que subjugar nossas vontades pessoais. Embora a função primordial das leis seja buscar uma adequação entre essas duas esferas de interesses, há uma expressa preponderância para o último que não deve ser sacrificado em detrimento dos primeiros. Por outro lado, nas sociedades arcaicas, a vontade pessoal, o profundo desprezo e a consequente violação sistemática (e sistêmica) das regras, é o seu traço mais constante e marcante. Usa-se as instituições para atender e garantir interesses privados e particulares. 

Olhando por este prisma, toda forma de englobamento ou apropriação (simbólica ou concreta) da esfera pública pela privada, se constitui num atentado contra a construção de uma sociedade plenamente moderna. Assim, desde gestos considerados menores (o desrespeito às leis de trânsito, as trapaças escolares, o "jeitinho" - que nada mais é do que fazer valer a vontade pessoal sobre a regra -, etc.) até os grandes escândalos de corrupção no Estado, envolvendo grandes empresas e empresários renomados, estamos lidando em maior ou menor grau com o fenômeno que, em sua natureza, é o mesmo: apropriação do público pelo privado. Este tema já foi amplamente debatido por autores como Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Roberto DaMatta, Adauto Novais entre tantos outros. 

Há cerca de 23 anos, isso foi muito bem mostrado por uma jornalista da TV Cultura quando, em 1991, em pleno processo de investigação que levou ao impeachment de Fernando Collor de Melo, fez um belo documentário sobre a relação do brasileiro com a ética, principalmente quando se trata de lidar com a coisa pública. Em "Ética, alguém viu por aí?", Lúcia Moraes vai revelando em vários cenários do cotidiano como se constrói a ética dos brasileiros na relação com a coisa pública. Em 1999, o genial cineasta Fernando Mozart dirigiu um curtametragem intitulado "Os outros", em que ele expõe uma ideia central: nós brasileiros sempre achamos que, de um lado, só "o outro" é que é responsável por todo o caos e baderna (inclusive a corrupção) na sociedade; ou, do outro lado, que só "o outro" é que pode fazer algo para resolver isso. Mais recentemente, este tema também foi retomado em 2008 por um quadro no programa CQC, da Rede Bandeirantes, intitulado "Teste de Honestidade", cujo foco é mostrar que a corrupção tão discutida na esfera pública é apenas um reflexo do mesmo tipo de prática que é amplamente difundida na sociedade. Em termos de pesquisa, uma das mais completas a este respeito é o livro "A Cabeça do Brasileiro", de Alberto Carlos Almeida, resultado da Pesquisa Social Brasileira (PESB) realizada pela UFF em 2002 (o que o brasileiro pensa sobre jeitinho, malandragem, hierarquia, política, civismo, racismo etc.). É muito interessante ver esses insights do senso comum sendo traduzidos em análises estatísticas que nos ajudam a compreender este fenômeno. 

Esse mecanismo acabou gerando uma máquina tão imbricada na esfera pública do Estado brasileiro que, muitas vezes, a alegação das empresas é que negócios com órgãos estatais não são feitos sem que esse caminho perverso seja percorrido. Mas todos sabemos que não é bem assim! Afinal, o imbroglio é tamanho que todos os envolvidos (corruptos e corruptores) ganham e muito às custas da máquina do Estado.

Vejo como algo extremamente importante este braço da Operação porque enxergo uma lógica muito semelhante entre a corrupção e o narcotráfico e que orienta a prática de investigação da Polícia Federal: não adianta combater o corrupto porque, havendo o corruptor querendo que seus interesses prevaleçam (sobretudo quando envolve milhões), a cada corrupto preso aparecerão dezenas de outros na fila para receber gordas propinas dos corruptores. Mudam-se os atores, mas o cenário e os efeitos nocivos permanecem. É óbvio que é necessário limpar a máquina dos corruptos. Mas aparecerão outros se os corruptores não forem punidos exemplarmente. 

Em todo caso, com relação ao cenário das mídias sociais, invadidas por gritaria e protesto contra a corrupção na esfera política, eu fico me perguntando:

1) Onde estão as manifestações de indignação contra empresários podres e corruptos que dilapidam o patrimônio público, subornando funcionários públicos para obter vantagens bilionárias em contratos de estatais?
2) Onde estão os elogios e o reconhecimento à qualidade do trabalho investigativo da Polícia Federal que, como amplamente se divulgou durante a campanha eleitoral última, teve sua ação aprimorada por meio de instrumentos legais que permitiram a consolidação de sua atuação?

Talvez, pela nossa cínica relação com a Ética (que é sempre bom cobrar dos outros, mas para nós, é um pouco diferente), por levarmos vantagens nas nossas práticas mesquinhas cotidianas, não tenhamos assim tanto afinco para reconhecer o grande feito histórico que é, num país como o Brasil, colocar gente deste porte na cadeia. Continuamos a construir essa visão tacanha de colocar exclusivamente na esfera política (e, o que é pior, de forma ampla e generalizada) a responsabilidade por atos tão aviltantes de corrupção, fazendo vistas grossas ao que ocorre na esfera privada).

Talvez, um dia, como sociedade, aprendamos o grande valor que é respeitar a coisa pública (em todas as suas dimensões) para construir um país justo e com uma paz social tão necessária.









quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Mas afinal, é a família universal?


Um dos temas mais clássicos e fundantes da Antropologia como ciência, os estudos sobre família, parentesco e casamento representam um campo bastante complexo de análise e, também um dos principais tópicos que consolidam aquilo que é o epicentro desta área do saber: o estudo sobre a enorme diversidade de manifestações do ser humano como sociedade e como cultura. Se você quer verificar como as sociedades se diferenciam em aspectos que você consideraria universais, observe como elas se organizam socialmente e verá que o conceito de família, em cada uma delas, pode ser profundamente diferente, cobrindo uma gama surpreendente de diversidade. Esta informação, à primeira vista, costuma chocar quem não é da área. Afinal, que história é essa? Como assim, família não é composta de pai, mãe e filhos? É possível que haja outros modelos? 

Claro que sim! E isso não acontece apenas nas sociedades consideradas, aos nossos olhos, exóticas, aquelas que não são pautadas pelos princípios religiosos ocidentais do judaísmo e do cristianismo. Acontece também entre nós, dadas às modificações culturais e de valores que nossa própria sociedade passou ao longo das últimas décadas. 

As distintas formas de organização familiar estão, sem dúvida, entre as maiores riquezas da diversidade do patrimônio cultural humano. E, diga-se de passagem, constitui um dos atestados profundos de que o ser humano se constrói se afirmando contra determinismos da natureza pretensamente afirmados pela biologia (ciência) - e frequentemente evocados pelo positivismo ocidental para "justificar" certas práticas como "naturais" ou "normais". Mas o que frequentemente se esquece é que um dos focos da construção social da família reside na regra universal da proibição do incesto que, por sua vez, é justamente nossa maior marca de "rebeldia" contra aquilo que seria considerado totalmente natural: se, do ponto de vista da natureza, a função da distinção de sexos é para mera e simplesmente procriação, o que me impedira de, em sendo um XY, copular com minha mãe, irmã ou filha, já que elas são (deste ponto de vista natural) meros XX? Não é isso o que fazem os animais? [E nem adianta alegar o argumento simplório de que não o fazemos para não gerar rebentos geneticamente anômalos porque, se a humanidade não tivesse inventado a regra da proibição do incesto há milênios, a seleção natural já se teria encarregado de eliminar essas anomalias, minimizando muito a sua possibilidade de sua manifestação. E hoje, copular com mãe, irmã ou filha não me traria quase que certamente nenhum problema deste tipo. Óbvio está que este não é o motivo, e que o devemos buscar nas formulações sociais - como moral ou regras religiosas, por exemplo.] 

Reconhecendo sua importância na manutenção dos laços de sociabilidade, todas os grupos humanos construíram uma regulação para a concretização deste princípio (a proibição do incesto e, consequentemente, a regulação das relações sexuais permitidas), estabelecendo um conjunto de regras e obrigações sociais e individuais por meio de acordos com grupos distintos (utilizando-se, para isso, das uniões entre dois indivíduos) no que se convencionou chamar de "casamento" e sua unidade consequente, a família. É assim que, para além da esfera das relações entre dois indivíduos, o casamento e a família se constituem, universalmente, um núcleo importante onde direitos e obrigações são definidos para que o indivíduo possa se situar dentro e fora do seu próprio grupo social, estabelecendo-se como uma importante referência para a construção de sua identidade (tanto individual quanto coletiva). E, de quebra, estabeleceu-se uma distinção que é muito clara em sociedades sobre as quais o  peso moral e religioso é menos presente: sexo é uma coisa; casamento é outra. 

Desta maneira, o casamento assume, para cada sociedade, um significado e uma configuração bem distintos, criando uma variedade de tipos e modelos por todo o planeta que enriquece, como se disse, a diversidade cultural da humanidade. E, consequentemente, a noção de família também. Por todo o Globo, não existe uma forma (nem fórmula) única para que isso se concretize, uma vez que cada grupo sociocultural faz suas escolhas sobre como se organizar. E todas elas, como qualquer fato da cultura, possui princípios lógicos que lhes garantem uma operacionalidade compondo seu eixo funcional fundamental: a perpetuação (física e social) do grupo. 

Se, do ponto de vista etnográfico, podemos constatar esta variedade imensa de tipos de organização familiar, a modernidade trouxe, no interior da própria sociedade ocidental, também uma variação igualmente grande, na medida em que a quebra da hegemonia dos princípios religiosos como orientação da formação dos núcleos familiares abriu-a a esta possibilidade. Desde a inclusão do divórcio, com reconfigurações familiares, a consolidação da realidade das mulheres que optam por serem mães "independentes" até as relações homoafetivas, a relativização da configuração e da importância da família tradicional vem se consolidando no nosso mundo e apresentando desafios no campo jurídico e social. 

Há alguns meses, recebi pelo meu perfil no Facebook o link para votar numa enquete promovida pela Câmara dos Deputados, a respeito do conceito de família, tal como está formulado no Projeto de Lei 6583/2013 que institui o chamado "Estatuto da Família", um arrazoado de artigos que pretendem garantir direitos ao que seria, nos termos do próprio projeto, "o primeiro grupo humano organizado num sistema social, funcionando como uma espécie unidade básica da sociedade"

A pergunta da enquete é (muito provavelmente em tom proposital) pode induzir o leitor (especialmente o mais afoito) a uma armadilha lógica:

"Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?"

Na página da enquete há um link que abre uma página do site da Câmara dos Deputados, com um breve artigo explanatório sobre a proposta e o link para que se tenha acesso direto ao Projeto de Lei em questão. Nele, além da explanação dos direitos do cidadão e obrigações do Estado, vamos achar, logo nos parágrafos iniciais, o fundamento e razão de ser da enquete. 

Art. 2º Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Art. 3º É obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público em todos os níveis assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária.


Se tomarmos o cuidado de considerarmos o alvo principal do texto, garantia de direitos (e, deveres do Estado) para com aquilo que se entende por família, entendemos a importância desta discussão. Entretanto, o que passa desapercebido para muitos é o seu ponto de partida bastante retrógrado e profundamente etnocêntrico, desprezando não somente o fato de que o conceito cristão ocidental de que a configuração do que é família não é universal, como o fato de que a própria sociedade já aprovou (direta ou indiretamente) outros modelos familiares que nele não se encaixam. Fora o fato de que o projeto versa sobre temas já contemplados em outras instâncias da esfera da proteção da pessoa (seja ela sob que aspecto se quiser considerar: idoso, criança, homem, mulher etc.). 

O Estado brasileiro, herdeiro da hegemonia da tradição judaico-cristã na sua formação (e no conceito de família) tem uma dificuldade muito grande em incorporar verdadeiramente o caráter plural exigido por uma plena democracia moderna e considerar as mudanças pelas quais o mundo passou nas últimas décadas, especialmente no campo das relações familiares. Por isso mesmo, vive uma grande dificuldade em incorporar no seu escopo de discussão essas variações. Por mais que desejemos um estado laico, ainda somos muito influenciados por esse viés religioso que ainda insiste em se apresentar como conservador, arcaico e, muitas vezes, autoritário.  

A existência de uma enquete como esta é reveladora desta dificuldade. Ao afirmar o casal homem/mulher como núcleo do que se define por família, deixa-se de lado o que a jurisprudência já tem reconhecido, que é a realidade dos casais homoafetivos (masculinos e femininos), por exemplo. Além do mais, deixa bastante vaga a possibilidade de se reconhecer como família as unidades sociais formadas por uma mulher (ou homem) solteira e seus filhos ou mesmo uma mulher cujos filhos podem ter mais de um pai. Enfim, aquelas formas de configuração familiar que escapa ao dogmatismo religioso cristão. (A este respeito, já tratei num outro texto sobre o concílio de Bispos católicos a respeito da família: Tradição - sexualidade e família na visão do Vaticano.)

Ademais, por que eu tenho que decidir numa lei o que é família se esta decisão vai afetar outras pessoas que não pensam nem agem como eu penso e ajo?  Que direito tenho eu interferir no direito do outro de ser como quer ser? Que democracia é esta que condena uma massa de pessoas a ficar na margem da proteção de seus direitos e não atendidos por eles? 

Por todos estes motivos, penso que a discussão que ora se apresenta na enquete proposta na Câmara é, não somente absurda deste ponto de vista, como também totalmente desnecessária, além de reacender, sob vários aspectos, um debate bizantino e retrógrado. 

Creio que nossos deputados têm coisas muito mais prementes, urgentes e necessárias a tratar do que ficar nessas proposições retrógradas e bizantinas que só servem para tolher o direito à diferença ao invés de afirmá-las como valorosas, garantindo-lhes o direito de existir.  


Sugestão:
Leia mais sobre a proposta no link: Enquete sobre o estatuto da família bate recorde






quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Eleições e violência: algumas perguntas ensaiando respostas

Recebi de uma aluna estas perguntas. Escrevi as resposta de forma bem rápida. 



- Por que os casos de violência aumentaram nessas eleições?

Analisar este fenômeno é algo complexo. Vários fatores precisam ser levados em consideração. Vou tentar fazer aqui algo impossível: falar de forma rápida. De antemão, vários aspectos ficarão de fora. 

Antes de mais nada, eu gostaria de fazer uma distinção entre violência simbólica e violência física, concreta. Embora tivéssemos casos aqui e acolá de eventuais agressões concretas, o que se viu neste pleito foi uma acentuada agressividade no discurso, principalmente nos meios virtuais. Isso faz muita diferença. Claro que, ao longo do processo, com o acirramento dos ânimos, tivemos sim alguns registros de agressões físicas. Mas o volume e intensidade não se comparam à agressividade cibernética. Muitos analistas, inclusive, de forma acertada na minha opinião, compararam estas eleições - exatamente por estas características - com um campeonato clássico de futebol entre times altamente rivais. Até certo ponto, uma agressividade faz parte do processo. 

Dito isto, um primeiro ponto importante é, sem dúvida, o fato de que esta é uma das eleições mais polarizadas que temos em anos. É muito comum as pessoas remeterem à eleição de 1989 como a última que conseguiu converter uma polarização tão acentuada. Ou seja, muito tempo. Isso, por si só, contribui para acirrar os ânimos. Embora sempre tenhamos registrado animosidades brandas entre os eleitores de vários partidos políticos, na minha percepção, a animosidade direcionada contra o PT por uma camada bem expandida de pessoas (eleitoras ou não; militantes ou não) nesta eleição foi mais forte. Não se trata de vitimizar o partido, pelo contrário. Entendo que o PT, neste aspecto, colheu um pouco dos frutos que plantou ao longo do período bem expandido de poder. Isso é parcialmente explicado pela crescente insatisfação frente aos casos de corrupção e a profunda sensação de impunidade trazida pelo julgamento do mensalão envolvendo lideranças tradicionais petistas: o julgamento demorou muito a acontecer, se prolongou exaustivamente com recursos infindáveis e muitas penas originalmente impostas foram revistas e abrandadas. Se o PT é um partido que tradicionalmente angaria antipatia principalmente por setores da classe média e classe média alta, esses desdobramentos do Mensalão serviram para aumentar ainda mais a sensação de uma certa "aversão" ao partido. Quando falo desta impunidade, estou falando de percepção e sensação; não de um fato consumado. O fato é que a agressividade dirigida ao PT revelava muito da indignação contra a própria impunidade. Afinal, estamos falando de um partido que se construiu sob o fundamento da luta pela ética, pela coisa pública, pela boa política. E não foi exatamente isso o que se viu, embora tenha sido um governo bem acertado sob vários aspectos. A essas agressões, correspondeu um movimento de agressão contra, principalmente, o partido oponente, o PSDB. Agressões estas que não necessariamente eram reativas, mas também provocativas. O fato é que acabou virando um jogo de agressividade mútua entre pessoas que assumiram uma posição nos dois lados da luta. 

Claro que é preciso levar em conta que por trás da agressividade também escondem-se diferenças e outras questões de ordem pessoal entre aqueles que trocavam farpas pelas mídias sociais. 

Soma-se a isso o fato de que é a primeira grande eleição polarizada com mídias sociais. Isso é altamente relevante. Veja, não é a primeira com mídias sociais, mas a primeira polarizada com  mídias sociais. Todos sabemos que o fenômeno das mídias sociais hipertrofia (exatamente pelo seu caráter virtual) aquilo que ocorre no mundo real. As pessoas discutem mais e acaloram-se. E onde há discussão acalorada, há um terreno fértil para agressividades. E isso foi transposto facilmente do virtual para o real. Alguns de forma bem pesada e forte; outros, de forma mais branda e leve. Mas aconteceu. 

Finalmente, eu seria mais cauteloso quando se fala de ódio nessas discussões, como se tem falado em demasia. Embora sim, ele esteja presente em muitos casos, em boa parte das discussões que vi era manifestação de raiva pura e simples. Irritação mesmo com o interlocutor. Isso não necessariamente caracteriza um ódio, que eu entendo como sendo algo mais sistêmico e sistemático. Enquanto a raiva é uma explosão momentânea, o ódio é mais estrutural (e às vezes estruturante) na personalidade de algumas pessoas. É claro que houve manifestações de ódio e intolerância, mas também muita raiva momentânea (ou irritação) e, assim que passado o momento (ou as eleições) ela se dissipou. 


- Por que a questão política acabou sendo levada para um lado tão pessoal pelos eleitores?
Não é a primeira vez que isso acontece na história do Brasil. Houve outros tempos, antes da ditadura, em que grandes polarizações políticas eram levadas também para as relações pessoais. Sobretudo aquelas envolvendo grandes personalidades (como o caso de Getúlio Vargas), por exemplo. As pessoas discutiam nos cafés, nos bares, em casa. A grande diferença, novamente insisto, é que estamos num cenário de mídias sociais que aumentam este fenômeno, expandindo seus efeitos. Por exemplo: se antes, você precisava de um encontro presencial para discutir política, com as mídias sociais isso acabou virando quase uma constante na vida das pessoas: várias horas por dia elas entravam, viam alguma postagem, e acabavam não resistindo em entrar numa discussão. Daí para a projeção do espaço privado e íntimo (amizades e família) foi um pulo fácil. Antes, o círculo era mais restrito e as repercussões das discussões quase que se circunscreviam à esfera íntima. Agora, este círculo ficou muito alastrado (quase universal). E, nesse processo, esferas acabam se misturando. E vamos nos lembrar que, em muitas discussões, não é o assunto que importa: mas o tipo de relação e histórico de tensões que tenho com o interlocutor. É assim que, como disse acima, diferenças pessoais aparecem sob a capa de diferenças políticas, por exemplo. 

Há um outro aspecto também que ouvi de muitos alunos: como muitas relações são superficiais, muitas pessoas acabaram por conhecer os seus "amigos" de forma mais profunda (o que pensam, quais são os seus valores etc.) por meio da discussão de suas posições frente as eleições. Isso é um outro aspecto relevante e que não pode ser menosprezado. 


- Essa é a primeira eleição em que a violência chega a esse nível?
Boa parte já respondi antes. Insisto na relativização da violência simbólica. Em parte é explicado também pela polarização acentuada. 


- Esse cenário já era esperado?
Creio que ninguém ousou prever este diagnóstico. Mesmo porque, lembremos também, até a morte de Eduardo Campos esta polarização tão acentuada não se colocava nem de longe no horizonte. Até aquela época, a discussão era se Dilma seria eleita no primeiro turno ou no segundo. Quase ninguém (a não ser as lideranças dos partidos disputantes) ousava negar esta perspectiva. Com a morte de Campos, houve uma reviravolta. A novidade foi a rápida subida de Aécio e um grande aumento da chamada alienação eleitoral (termo técnico utilizado para a somatória dos votos brancos, nulos e abstenções) que chegou a terceiro lugar (mais que a votação de Marina Silva). Esse reposicionamento do PSDB trouxe a velha polarização entre os dois principais partidos, mas agora com os agravantes descritos acima aumentados ainda mais por um cenário de estagnação econômica e mais um grande escândalo ainda sob investigação mas que, automaticamente, fez as pessoas resgatarem todo o debate envolvendo o Mensalão há não muito tempo. 









segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Quem são os donos do poder? - patrimonialismo e estamento no Brasil.


Em meio à proliferação de notícias sobre a patética passeata que aconteceu em São Paulo no último sábado, clamando (entre outras coisas) pelo impedimento da presidente democraticamente eleita, duas outras notícias se perderam: a de que houve uma micromanifestação na mesma cidade protestando contra o agravamento da crise hídrica (que revela, como todos sabemos, muito mais um gravíssimo problema de gestão do que propriamente intempérie) e o absurdo de uma fiscal de trânsito no Rio de Janeiro que foi condenada a pagar danos morais a um juiz sob acusação de desacato (quando, na verdade, ela teria sido vítima de abuso de autoridade por parte do juiz). 

Este último caso (que, diga-se de passagem, não é raro e está fartamente exemplificado pelos noticiários), ainda pouco repercutido na mídia, remete a um crônico problema da sociedade brasileira que é muito bem analisado por Raymundo Faoro, no clássico "Os donos do Poder". Herdeiro de uma tradição estamentária manifesta por um forte e constante patrimonialismo, o exercício do poder no Brasil coloca em xeque seu caráter democrático quando se flagram situações como estas em que uma autoridade, colocando-se acima da lei, resolve dar uma "carteirada" em um funcionário considerado em uma posição subalterna. Uma série de equívocos estão presentes aí e, sobre eles, gostaria de propor uma reflexão. 

Antes, com fins didáticos, para desenvolvimento do argumento, é preciso esclarecer dois conceitos no campo da Sociologia: 
a) Patrimonialismo: característica de um Estado em que não existe uma clara distinção entre o que é público e o que é privado. Assim, numa sociedade patrimonialista (como nos regimes absolutistas, mas não é exclusividade deles), o Estado é apropriado por uma categoria social que o utiliza como instrumento da manutenção de seus interesses. Esta lógica está muito presente na tradição da institucionalização do poder no Brasil; 
b) Estamento: diferentemente do conceito de classes sociais (cujo foco principal é a perspectiva econômica) esta característica é típica de sociedades em que a economia não é totalmente dominada pelo mercado (como a feudal, por exemplo). Para Max Weber (clássico do pensamento sociológico que desenvolveu importantes reflexões sobre o fenômeno), estamento passa a significar uma rede personalista (relacionamentos interpessoais), formando uma teia que consolida um tipo específico de poder e que exerce influência (e até mesmo determina) um certo campo de atividade. E este poder é, quase sempre, exercido fora dos limites apropriados do poder hierárquico e impessoal conferido pela estrutura da lei: uma autoridade pública só pode ser exercida nos limites daquilo que a lei estabelece como seu campo de atuação. 

Um dos princípios básicos da teoria política contratualista (derivada dos filósofos iluministas do século XVIII) é uma ideia que é razoavelmente simples na sua concepção, mas muito complexa na sua consolidação concreta: para otimizar as relações entre as pessoas, minimizar conflitos e tornar a vida social possível, os homens estabeleceram entre si um pacto tácito de transferência de parte de sua liberdade para um poder fora deles mesmos a fim de construir as regras de organização da vida coletiva, tornando-a mais viável e eficaz. Isso minimizaria custos de várias ordens. Ao longo dos séculos sucessivos, os pensadores no campo da política vão divergir sobre como isso deveria ser construído na prática (níveis distintos de liberdades, de organização social, de participação política etc.), mas o princípio de transferência desta liberdade, fortalecendo uma instância (o Estado) que deveria governa-los é quase uma constante. Assim pensado e constituído, o construção do Estado (pelo menos na sua vertente moderna) consolidaria ainda mais a distinção entre o que é a esfera privada e o que é a esfera pública. E mais: com uma clara predominância desta última sobre a primeira quando se trata de atender a interesses coletivos nos casos em que eles conflitam com os particulares. 

Herdeira de uma tradição bastante autoritária que se consolidou ao longo do Século XX, a sociedade e a democracia brasileiras ainda penam muito para conseguir se consolidar plenamente no campo da modernidade. Neste cenário, autoridades públicas constituíram-se sob o manto do patrimonialismo que foi se transformando, segundo a análise de Raymundo Faoro, de um estamento aristocrático para um estamento burocrático que tem as autoridades públicas (em particular, magistrados e "senhores" da lei) concebidas como seres quase inatingíveis, estabelecendo-as como personas a quem a lei praticamente não atinge: é assim que muitas agem como querem, fazem o que querem e não podem ser questionadas. Quando o são, usam sua suposta autoridade hierárquica para se sobressair e, muitas vezes, massacrar seus opositores. Cria-se um valor de que a lei existe para aqueles que não tem poder de passar por cima delas, valor que acaba imperando e construindo dois dos nossos traços mais arcaicos: o personalismo e o autoritarismo. Soma-se a isso, um outro lado do caráter personalista da autoridade que acaba sendo exercida muito além dos limites estabelecidos pelas leis que, em tese, deveriam reger o seu exercício. É como se houvesse uma transposição da ideia de poder: ele não está no cargo (e, portanto, só pode ser exercido no seu espectro de atuação) mas está na "pessoa" (e, por isso, pode ser exercido em qualquer lugar). 

Uma tradução simples desta lógica de poder pessoal é o famoso "Você sabe com quem está falando?", brilhantemente analisado por Roberto DaMatta em "Carnavais Malandros e Heróis". E que foi exatamente a posição do magistrado no caso em questão. 

A cena do caso da fiscal de trânsito é um conjunto de nonsense, neste sentido. Um juiz que trafega com o veículo com documentação irregular, sem placa identificativa e sem carteira de motorista, está flagrantemente descumprindo a lei. Nada nem ninguém o autoriza a desobedecer a lei. Ao ser flagrado cometendo estes atos, deve ser punido com o rigor em que a lei se aplica às pessoas que a infringem. Do outro lado, uma autoridade de trânsito que está cumprindo sua função.

Aliás, naquele contexto, diga-se de passagem, quem sofreu desacato foi ela, a fiscal. Senão vejamos: ela é uma autoridade maior que o juiz, porque pela lei, é a responsável total pela fiscalização de irregularidades e o juiz (naquele momento, um cidadão como outro qualquer), como infrator, deveria se submeter à mesma lei que ele é responsável por zelar e fazer aplicar. E o nonsense se completa porque, em tese, este juiz, mais do que ninguém, deveria zelar e pelo cumprimento da lei. E não atropelá-la com um rolo compressor como ocorreu. Vamos lembrar que o juiz só tem autoridade de juiz num tribunal. Querer exercer esta autoridade fora deste âmbito, configura-se abuso total de autoridade. Se ele se sentiu tolhido em seus direitos deveria levar o caso a juízo, mas naquele momento, seu dever (repito, como qualquer cidadão) era o de acatar a ordem da autoridade constituída no âmbito do evento: infração de trânsito! 

Não custa lembrar, portanto: nem juiz, nem presidente, nem ninguém está acima da lei! Se queremos falar de democracia, precisamos estar atentos para este tipo de abuso. E o caso do juiz só é emblemático de uma lógica que é amplamente difundida na sociedade brasileira: essa história de que a lei é boa, mas só serve para os outros, porque no meu caso, é diferente; sempre dou um "jeitinho". Afinal, cada um com suas justificativas, "eu sou especial".

Quando vejo as remissões à Ditadura (como no caso da passeata de sábado, 01/11), sempre penso: não temos visão autoritária porque ainda respiramos ares de ditadura, mas construímos ditaduras porque temos uma forte vertente autoritária na sociedade e na cultura brasileiras. Nesse sentido, é muito expressivo o fato de que a manifestação contra a crise hídrica tenha reunido parcas 200 pessoas enquanto a outra, pelo "impeachment", teria reunido até 2.500 (no seu ápice). Protestar por um direito parece ser menos importante do que protestar contra um poder estabelecido (principalmente se meu protesto ilusoriamente me conduz à ideia de ocupar - ainda que simbolicamente - aquele poder). 

Eu me pergunto o quanto este diagnóstico é crônico e se um dia irá mudar! Tenho esperanças que sim. Mas, ando meio desanimado. 














Palavras Iniciais

Olá,

Bem vindo a um espaço que, antes de mais nada, é despretensioso. Ou melhor, se há alguma pretensão é a de exercitar a arte da escrita, refletindo livremente sobre fatos, idéias, cinema, filosofia enfim, tudo o que valer a pena pensar.

Como se não bastasse a exigência da profissão, eu mesmo me impus a necessidade de registrar meus pensamentos os quais, reconheço, considero valiosos pela única e exclusiva razão de serem meus, de representarem meu ponto de vista sobre as coisas. Nada mais. É, pois, nesse exato sentido que me refiro à ausência de pretensão. Quero apenas falar. Falar livremente. E se o transeunte cibernético que por aqui se aventurar sentir que vale a pena iniciar um diálogo a respeito das idéias apresentadas (as quais, já adianto, não serão tão aprofundadas), vou sentir que terá alguma utilidade para além da minha própria extravasão.

Apesar de relativamente antigo, eu me esqueci completamente da criação deste espaço. Nele havia deixado, oculto, um único texto que resolvi publicar mesmo estando inacabado. A ele retorno com o propósito de alimentá-lo com mais frequência, o que para mim será extremamente benéfico, inclusive do ponto de vista pessoal. Vou aproveitar para registrar outros escritos, feitos em outras épocas - pré-internáuticas ainda - que certamente revelarão um outro Fred (principalmente para aqueles que já me conhecem).

Espero que o leitor que por aqui passar possa encontrar alguns pontos sobre os quais pensar. E, se sua generosidade permitir, deixar a contribuição de suas opiniões e seus pensamentos a respeito do que encontrar registrado para, inclusive, provocar minha contrarreflexão.

Boa leitura e obrigado pela visita.
Fred

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