Introdução:
Recentemente,
numa atitude ousada da atual administração municipal, São Paulo vem vivenciando
um dos mais significativos avanços na construção de um espaço urbano de melhor
qualidade: a implementação da primeira malha cicloviária de forma consistente e
significativa. Uma demanda antiga da população, esta iniciativa requer dos
gestores municipais muita coragem porque, seguramente, têm que lidar com
medidas antipopulares que implicam em uma alteração substancial nos esquemas
simbólicos já consolidados de uma sociedade para a qual o carro é não somente
meio de locomoção mas sinônimo (quase sempre ilusório, diga-se de passagem) de
conforto e qualidade de vida. Além, claro, de símbolo de status social. Mais do que propor uma alteração do espaço urbano,
trata-se de uma revolução cultural. E isso, é o mais difícil e desgastante. O
custo não está sendo baixo (e não falo de custo financeiro) mas se o está
enfrentando com coragem e determinação. Principalmente quando estamos falando -
temos que reconhecer este diagnóstico pouco simpático - de uma sociedade
acostumada a reclamar muito e a fazer pouco. E mais: uma sociedade igualmente habituada a
pensar que o esforço para a mudança sempre tem que vir do outro, não de mim!
Não é à toa que este assunto vem levantando reações mal humoradas acirradas,
principalmente dos seus setores mais conservadores. Finalmente, alguém
teve coragem de, cumprindo o plano diretor da cidade, colocar o problema na
mesa e provocar essas mudanças necessárias (mas que ninguém quer fazer).
Não
quero agora entrar nesta polêmica instaurada (e necessária - diga-se de
passagem), até porque, como tudo o que diz respeito à realidade, possui uma
contradição básica entre erros e acertos. Vou fazê-lo mais à frente. Em momentos assim, sempre me vem à
mente uma frase da Elis Regina da qual gosto muito, em uma entrevista ao
programa Ensaio da TV Cultura: nós cometemos "zil" erros; mas só erra
quem está tentando fazer alguma coisa. E, como tudo o que se faz, os erros têm
que ser revistos e ajustados e os acertos aprimorados. O que desejo é, a
partir da polêmica instaurada, elaborar, nas próximas semanas, uma breve e
livre reflexão sobre os vários aspectos trazidos pela questão da
"mobilidade urbana" e que fazem parte do pacote proposto por um
movimento que, desde fins da década de 1990, foi ganhando escala mundial: O Dia
Mundial Sem Carro.
Num mundo acostumado a transferir para a esfera do Estado a responsabilidade pelo gerenciamento (e, consequentemente, pela busca de solução dos problemas) este é mais um movimento que vem colocando na pauta dos moradores das grandes cidades uma revisão sobre o papel de cada um nesse processo naquilo que concerne à melhoria da qualidade de vida como um todo: mobilidade, lazer, saúde, poluição (aérea e sonora, principalmente), estresse, crise de energia etc. O automóvel, como bem nos lembram James Womack, Daniel Jones e Daniel Roos ("A máquina que mudou o mundo"), talvez seja o filho da revolução industrial que mais trouxe mudanças significativas na vida privada das pessoas com consequências para o espaço público. Numa perspectiva antropológica, diria que redefiniu o próprio homem: reelaborou as cidades, aproximou distâncias, construiu um estilo de vida, determinou a velocidade de uma era, as relações com as pessoas, com o trabalho, com o lazer. No entanto, o inchaço dos grandes centros potencializou esse processo, trazendo-nos, em mais esta esfera, uma relação adicional de dependência (frente a tantas outras), quase uma verdadeira adicção. E, como todo adicto, experimentamos uma resistência incrível em nos libertar. Quero deixar claro que, até pela escolha do verbo (libertar-se e não livrar-se), não pretendo aqui fazer uma demonização maniqueísta do automóvel. Eu seria um cavernário platônico se caísse nessa armadilha da ingenuidade. Pelo contrário, como tudo o que criamos, o problema (quando existe) não está na coisa em si mas na relação que estabelecemos com ela. E sobre isso, é preciso pensar. Aberto ao debate, vou procurar manter uma criticidade na reflexão, tentando caminhar por esta trilha sujeita às contribuições dos leitores. Como o tema é complexo e o espaço de um blog é curto, vou fazê-lo em drops de pontos bons para pensar. Sem a pretensão de exauri-lo.
Num mundo acostumado a transferir para a esfera do Estado a responsabilidade pelo gerenciamento (e, consequentemente, pela busca de solução dos problemas) este é mais um movimento que vem colocando na pauta dos moradores das grandes cidades uma revisão sobre o papel de cada um nesse processo naquilo que concerne à melhoria da qualidade de vida como um todo: mobilidade, lazer, saúde, poluição (aérea e sonora, principalmente), estresse, crise de energia etc. O automóvel, como bem nos lembram James Womack, Daniel Jones e Daniel Roos ("A máquina que mudou o mundo"), talvez seja o filho da revolução industrial que mais trouxe mudanças significativas na vida privada das pessoas com consequências para o espaço público. Numa perspectiva antropológica, diria que redefiniu o próprio homem: reelaborou as cidades, aproximou distâncias, construiu um estilo de vida, determinou a velocidade de uma era, as relações com as pessoas, com o trabalho, com o lazer. No entanto, o inchaço dos grandes centros potencializou esse processo, trazendo-nos, em mais esta esfera, uma relação adicional de dependência (frente a tantas outras), quase uma verdadeira adicção. E, como todo adicto, experimentamos uma resistência incrível em nos libertar. Quero deixar claro que, até pela escolha do verbo (libertar-se e não livrar-se), não pretendo aqui fazer uma demonização maniqueísta do automóvel. Eu seria um cavernário platônico se caísse nessa armadilha da ingenuidade. Pelo contrário, como tudo o que criamos, o problema (quando existe) não está na coisa em si mas na relação que estabelecemos com ela. E sobre isso, é preciso pensar. Aberto ao debate, vou procurar manter uma criticidade na reflexão, tentando caminhar por esta trilha sujeita às contribuições dos leitores. Como o tema é complexo e o espaço de um blog é curto, vou fazê-lo em drops de pontos bons para pensar. Sem a pretensão de exauri-lo.
Em
vários países do mundo, setembro é um mês dedicado a se pensar questões
relativas à mobilidade urbana. Isso se deve, principalmente, ao fato de que no
dia 22 deste mês é celebrado o "Dia
Mundial Sem Carro" e, na Comunidade Europeia, a "Semana da Mobilidade" (que vai de 16 a 22). Para
nós, no hemisfério sul (e mais ainda no Brasil), isso ainda ganha um
significado maior: por ser o mês de início da Primavera (estação muito ligada
ao imaginário ecológico) e, talvez por isso, o mês dedicado às questões
ambientais (sendo o dia 21, dedicado à "Àrvore") é um momento fértil
para se propor reflexões a respeito do tema.
Uma
rápida pesquisa revela uma inconsistência nas explicações do porquê o dia 22 de
setembro foi escolhido como o "O
dia mundial sem carro", uma iniciativa que teria ocorrido em
Reykjavik, Islândia, em 1996, mas que se consolidaria a partir de um evento
ocorrido em La Rochele (França), em 1997 (ou 1998 - as fontes variam quanto a
isso), espalhando-se rapidamente por várias cidades europeias. Estas
iniciativas, de longe, foram as pioneiras.(1) Várias crises mundiais que já
apontavam para a escassez de combustível (a começar pela Guerra de Suez, em
1956, que comprometeu o abastecimento de petróleo na Europa, vindo o Oriente
Médio por aquele canal; e também a grande crise mundial do petróleo em 1973) e
que mobilizaram várias cidades europeias com o objetivo de buscar alternativas
ao transporte motorizado, principalmente aquelas dependentes do petróleo.
Fato é
que estas iniciativas, alimentadas pela preocupação com o aquecimento global,
níveis alarmantes de poluição, a crise de combustível, a superpopulação em
alguns centros urbanos, congestionamentos crescentes - sem falar no crescente
sedentarismo e problemas de saúde dele decorrentes - englobadas no grande
debate sobre qualidade de vida nas cidades fez com que se tornassem, na virada
do milênio, um movimento em escala mundial. E, ao que tudo indica, sem
volta!
Aqui no
Brasil, ela só vai chegar em vários grandes centros no início do milênio, em
2001 (com adesão de cidades como Vitória, Porto Alegre, Belo Horizonte entre
outras). Em São Paulo, especificamente, ela só terá início em 2004, ganhando
mais força no ano seguinte (considerado por alguns como o efetivo ano de adesão
da cidade) até que, finalmente, é incorporada no seu calendário oficial (com
apoio institucional) a partir de 2007. O curioso é que, apesar de já ter
completo mais de uma década, as iniciativas de mobilização nesse campo ainda se
coloca de modo muito tímido, principalmente no que diz respeito à sua real
incorporação pelo poder público.
Se nos
lembrarmos que na trilha do mote das passeatas de 2013 (questionamento da
aumento das passagens dos ônibus urbanos) esteve fortemente uma crítica sobre a qualidade da mobilidade como um todo, ainda estamos muito longe de
repensar nossa relação com a locomoção. E isso vale não somente para a esfera
privada mas, principalmente, para a pública. Muito se discutiu. Pouquíssimo se
fez. E, pior, o que se está fazendo está muito mais sujeito às críticas das
pessoas do que a contribuições efetivas para que seja aprimorado. A resistência
que a implementação das ciclovias em São Paulo vem enfrentando é um sinal muito
evidente disso. Óbvio que esta é uma medida que terá que alterar hábitos,
provocar mudanças de comportamento. Isso em várias esferas. Afinal, onde as
pessoas que dizem que apoiam as ciclovias mas reclamam de sua instalação querem
que elas sejam implementadas? Na subsolo, na rede de esgoto, no éter
aristotélico da estratosfera? Sua implementação é concreta e para que ocorra é necessário uma alteração global. Seu principal efeito imediato é alterar o espaço de ocupação do
carro. E isso, claro, implica na alteração do comportamento das pessoas como um
todo (e não falo apenas de motoristas não). É preciso uma leitura crítica das ações do poder público. Mas é preciso que isto seja acompanhado de uma real vontade de abrir mão de um estilo de vida habitual para incorporar novas perspectivas e práticas. Isso dá muito trabalho.
E para não pensarmos que isso é uma exclusividade brasileira, é só lembrar que, entre outras cidades, NYC teve que enfrentar este desafio há alguns anos, quando resolveu implementar uma malha cicloviária que hoje beira os 600 km, segundo especialistas, o que resultou num enorme estardalhaço por parte de alguns. Hoje, passado um tempo, esta mudança foi incorporada aos hábitos das pessoas e as avaliações indicam uma grande adesão e apoio.
E para não pensarmos que isso é uma exclusividade brasileira, é só lembrar que, entre outras cidades, NYC teve que enfrentar este desafio há alguns anos, quando resolveu implementar uma malha cicloviária que hoje beira os 600 km, segundo especialistas, o que resultou num enorme estardalhaço por parte de alguns. Hoje, passado um tempo, esta mudança foi incorporada aos hábitos das pessoas e as avaliações indicam uma grande adesão e apoio.
Em suma, esta mudança requer que seja repensada nossa relação com a cidade que queremos; demanda sair da ambiguidade entre o desejado (aquilo que imaginamos como ideal) e
o efetivamente concreto (o que é preciso e possível ser feito). Uma reorganização da perspectiva de vida no espaço urbano.
Brincando
com uma metáfora da época das manifestações de 2013, parece que o gigante se
levantou, andou um pouco e agora está retido em algum congestionamento
existencial. (Continua.)
NOTAS:
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