domingo, 14 de setembro de 2014

Entrevista sobre os Rolezinhos - Portal Ciência e Vida, Revista de Sociologia





Esta entrevista foi concedida no dia 16/01/2014 e só foi publicada em março do mesmo ano, na edição impressa da Revista de Sociologia. Ela está disponibilizada no Portal Ciência e Vida. Decidi reproduzi-la aqui para ter uma cópia eletrônica registrada no blog, caso o site a retire do ar. 


Entrevista

Rolezinho balança a sociedade brasileira

O cientista social Fred Lucio acredita que é necessário compreender os objetivos desses eventos, porque, claramente, as classes socioeconômicas menos favorecidas estão mostrando sua insatisfação e cobrando mais eficiência do poder público
Texto: Lucas Vasques | Fotos: Arquivo pessoal

Desde o final de 2013, uma nova modalidade de encontro de jovens começou a fazer parte do dia a dia do paulistano: os "rolezinhos". Grupos de adolescentes da periferia se organizam, por meio das redes sociais, principalmente em shoppings centers da capital paulista e da Grande São Paulo, para passear, cantar, conversar, funcionando como um "grito de lazer", como os próprios organizadores definem.
O problema é que comerciantes e demais pessoas que visitam os shoppings reclamam da aglomeração, provocada pelos jovens, e denunciam a ocorrência de arrastões e furtos. Por isso, medidas legais estão sendo tomadas para que os rolezinhos sejam proibidos. Mas cabe a pergunta: essa decisão é uma iniciativa legítima ou fere o direito constitucional de todos, de frequentarem os locais que quiserem?
Fred Lucio, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), mestre em Antropologia Social e doutor em Ciências Sociais, acredita que o rolezinho precisa ser analisado sob dois prismas: há o aspecto apenas de diversão dos jovens, o que, de fato, originou o evento; e o fator político e social, o qual se transformou, após a reação negativa da mídia e dos comerciantes e, principalmente, da truculenta da polícia. Fred tem convicção de que é necessário ouvir a voz destes jovens. "O recado, me parece, ainda que não formalmente constituído e direcionado, está claro: mais uma vez as classes socioeconômicas menos favorecidas estão mostrando sua insatisfação e apresentando-se à sociedade".


EM SUA OPINIÃO, O QUE SÃO OS ROLEZINHOS, POR QUE SURGIRAM E QUAIS OS OBJETIVOS DESsA MANIFESTAÇÃO? 
Antes de mais nada, gostaria de recomendar alguma cautela em chamar os atuais rolezinhos de "manifestações", ou mesmo de "movimento". Isso porque é tudo muito recente e não se sabe qual será a sua dinâmica. Além disso, os rolezinhos somente vêm assumindo ares de "manifestação" a partir da grande repercussão (e consequente mobilização) que adquiriram. Lembremo-nos de que as manifestações de 2013 atingiram um nível de mobilização dificilmente registrado na história do Brasil, mas, rapidamente, caíram num esvaziamento (os motivos podem ser analisados num outro espaço). Assim como em 2013, esses rolezinhos começaram como um episódio pontual e, claro está que, à medida em que o tempo avança, e, com ele, os fatos, está acontecendo uma reconfiguração típica da dinâmica dos fatos históricos e sociais, que, ao que tudo indica, está conferindo este aspecto de um "movimento" reivindicatório (que, certamente, não havia no início). E a repercussão midiática (grande imprensa, blogs e mídias sociais) tem um papel importantíssimo neste processo. Como vem sendo bastante difundido pelos canais midiáticos, o fenômeno do rolezinho, tal como está sendo configurado agora, é recente e inédito. Entretanto, como se sabe, os rolezinhos de jovens, em busca de diversão, são uma tradição relativamente antiga. Juntar um grupo e "dar um rolê com a galera" por shoppings, parques, praias e demais áreas livres (ou supostamente livres, até o momento) sempre foi algo característico da juventude. Objetivo? Apenas a "curtição", diversão (como bem caracterizou um jovem entrevistado por um telejornal recentemente). O que é bem singular, neste caso específico, é a proporção e a magnitude que os rolezinhos acabaram tomando. Esses eventos, sobre os quais estamos falando agora, surgiram, pontualmente, a partir de uma grande aglomeração iniciada num shopping em São Paulo, no mês de dezembro, e que teria provocado certa comoção das pessoas: o que era para ser mais um "rolê da galera" acabou assumindo uma proporção gigantesca. Foram, segundo as notícias veiculadas, alguns milhares de jovens. O encontro acabou gerando algum tumulto, corre-corre e tensão nos eventuais consumidores do shopping Center, onde teria ocorrido. Este evento gerou duas consequências: chamou a atenção da sociedade para o fenômeno da exclusão sociocultural das periferias das grandes cidades (na medida em que muitos entrevistados disseram que marcaram num shopping por ser um lugar "bonito" e que era legal para "curtir" e porque não havia espaços como esses nos bairros mais periféricos); evidenciou como a sociedade brasileira lida muito mal com a convivência, no mesmo espaço, da diversidade socioeconômica. E qual foi a primeira reação dos empresários: a violência e a truculência. Lembremos que foi exatamente isso que conferiu às manifestações de 2013 uma magnitude muito maior do que elas vinham tendo até aquela ação truculenta da polícia. Em minha opinião, foi a partir daí que se criou, efetivamente, o fato político, social e cultural chamado de rolezinho (pelo menos, tal como o estamos discutindo) e que a sociedade está agora discutindo. Então, é bom separarmos as categorias: uma coisa é o rolezinho da galera; outra, o que estamos debatendo agora, é o fato político, econômico, cultural e social chamado rolezinho. A palavra é a mesma; as categorias, não. Embora esteja se tornando uma manifestação, na medida em que muitos de seus protagonistas estão vindo à luz da imprensa, assumindo-se como moradores da periferia, e que marcam encontros em shoppings, porque não têm áreas de lazer e a periferia está abandonada (e isso, claramente, evidencia uma crítica à ordem social estabelecida e a ineficiência do poder público em dar à periferia, pelo menos no campo da cultura, um tratamento adequado, para atender às suas necessidades), é preciso cautela para chamar estes eventos de manifestações - pelo menos no sentido clássico da política - porque ainda não há, muito claramente configurado, um direcionamento ou mesmo uma pauta reivindicatória; sequer uma liderança. Evidentemente que, ainda que tenham começado sem esta intenção e objetivo, acabaram - como as manifestações de rua de 2013 - assumindo este caráter à medida em que se vai construindo. Acho ainda muito prematuro qualquer avaliação e, mais ainda, qualquer prospecção sobre seu futuro. Estamos vivenciando o processo. É hora de compreendê-lo e aproveitar dele as lições que nos trazem. Ouvir a voz destes jovens. Ouvir o que eles estão dizendo. O recado, parece-me, ainda que não formalmente constituído e direcionado, está claro: mais uma vez as classes socioeconômicas menos favorecidas estão mostrando sua insatisfação e apresentando- se à sociedade.


Não seremos nós, cientistas sociais ou analistas, que diremos qual deverá ser o rumo desses eventos, que até pode ter surgido como uma mera diversão. Mas a repercussão acabou mostrando a esses jovens que eles poderiam dizer mais, muito mais, transformando o rolezinho num fato político e social. E estão dizendo



ESSES GRUPOS QUEREM SE FAZER OUVIR, ENQUANTO PARCELA ESQUECIDA DA SOCIEDADE, OU DESEJAM, APENAS, SE DIVERTIR? 
Eu não sei se os chamaria de "grupos" com tanta tranquilidade. É um conjunto muito heterogêneo de perspectivas, cabeças, jeitos (dos mais pacíficos até os mais violentos, por exemplo) e que, até o momento, pelo menos, estão difusos (sem nenhum demérito para essa difusão, muito pelo contrário). Em termos sociológicos, um grupo possui uma liderança, objetivos; no campo político (e cultural, como é o caso), uma pauta reivindicatória. E os rolezinhos ainda não têm isso. Nada impede que possam vir a ter. Pelo contrário, o andar dos fatos está mostrando que tudo caminha nessa direção. Tudo dependerá de como isso será conduzido. E não seremos nós, cientistas sociais ou analistas, que diremos qual deverá ser o rumo. São os próprios sujeitos desta história (a juventude excluída e aqueles que os apoiam) que precisam ter claro o fato de que abriram uma espécie de comporta de cidadania (como ocorreu com a questão das passagens de ônibus no ano passado e que resultou numa das maiores movimentações de cidadania testemunhada pelo País) e agora é aproveitar a oportunidade. Como dito antes, inicialmente, até pode ter surgido como uma mera diversão. Mas a repercussão acabou mostrando a esses jovens que eles poderiam dizer mais, muito mais, transformando o rolezinho num fato político e social. E estão dizendo.


Em nome do combate às ações mais violentas, instituem-se práticas totalmente arbitrárias e discriminatórias, acentuando, no meu entendimento, uma incompetência de empresários e do poder público de gerenciar, de forma mais inteligente e democrática, um momento de crise



OS ENCONTROS SE TRANSFORMARAM EM UMA ESPÉCIE DE MOVIMENTO DA PERIFERIA?
É cedo para dizer. Mas, como já dito, que pode ser canalizado como tal, está claro que pode. O próprio secretário de segurança do estado de São Paulo, Fernando Grella, em entrevista coletiva, já reconheceu que se trata de "um movimento no campo da cultura" e não é assunto de segurança pública. Concordo em parte porque, neste sentido, os fatos da cultura estão muito imbricados nos fatos da política: os jovens estão clamando por maior inserção cultural e de lazer. É uma necessidade. O prefeito Fernando Haddad deu entrevistas raciocinando no mesmo sentido e reconhecendo que o recado que estes jovens estão dando fala sobre a deficiência de políticas públicas na área de entretenimento, diversão, lazer e cultura para a periferia. Então, reiterando: pode não ter surgido com essa intenção (e muito provavelmente não surgiu). Mas está caminhando para ela. Mas, insisto, é cedo para afirmar no que tudo isso vai dar.

Ainda que consideremos legal que o patrimônio e a integridade das pessoas sejam preservados, pensemos na questão ética de como implementar esta ação de impedimento de ingresso. Como operacionalizá-la, sem incorrer na grotesca falha da discriminação, com base em critérios arbitrários de "quem pode" e "quem não pode"


EXISTE ALGUMA RELAÇÃO COM AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO? 
Há muitas coisas em comum; e muitas diferenças também. Algumas já ditas. Pode até ser (e isso é um mero exercício hipotético e não futurista) que tudo isso esteja sendo um grande laboratório (totalmente espontâneo e involuntário) para grandes ocorrências, que poderão acontecer para a Copa de 2014. Numa perspectiva mais holística e sistêmica, eu vejo tudo como parte de um grande processo de retomada, reconquista da cidadania por parte do cidadão brasileiro. Nós nos vemos como um povo indolente, que não luta por seus direitos, que não reivindica. E, de fato, não temos no Brasil uma tradição de participação de cidadania consolidada. Vivemos, em nossa história republicana, muito mais períodos ditatoriais e de dominação coronelística do que, propriamente, de exercício da democracia participativa. Em junho de 2013, eu já havia dito isso numa entrevista a um canal de TV: a questão das passagens foi um estopim para escancarar, de um lado, a ineficácia, a inoperância e a incompetência do Estado brasileiro como um todo de atender, com dignidade mínima, aos anseios da população (em que pese a elevadíssima carga tributária que pagamos).
Os nossos traços mais arcaicos. Deu no que deu: uma mobilização popular como não se via há muito tempo! Mas, no meu entendimento, não foi devidamente aproveitada. Agora, o tema dos rolezinhos começa a despertar uma reação da sociedade, que está extrapolando os nichos daqueles que os criaram. Eu vejo, de forma bem ampla e genérica, nós brasileiros como um povo com pouca experiência de participação política e cidadã efetiva. Mas, paradoxalmente, ansiamos muito por ela e invejamos as nações que a exercem de forma plena e construtiva. Talvez estejamos construindo isso. Mas é um caminho longo. Não dá pra dizer que vai ser agora ou daqui a alguns meses. Em todo caso, é um caminho necessário a ser trilhado. Não nos esqueçamos que as nações, que exercem hoje a democracia e a cidadania com mais vigor que a nossa, um dia foram tão arcaicas quanto nós somos. E eu não vejo como questão de tempo (eles teriam mais experiência), mas como questão de visão: é como se enxergam as coisas. Tenho dito que vejo semelhanças e diferenças entre as manifestações de junho e os rolezinhos. Semelhanças: começaram com fatos pontuais, circunscritos a um nicho específico da sociedade; utilizaram-se do poder de mobilização das mídias sociais para atingir o objetivo de aglutinação de pessoas; grande repercussão midiática ajudou no seu crescimento e, até mesmo, na sua configuração como um movimento; suscitaram na população, como um todo, o desejo de participação e mudança da realidade social e política; crítica da sociedade como um todo; as duas tiveram, por parte do poder público, uma reação imediata marcada pela truculência e pela violência, o que ampliou sua repercussão. A principal diferença que vejo entre estes dois eventos é que as manifestações de junho tiveram (ainda que eles não o reconhecessem) a liderança do Movimento Passe Livre (MPL) - e até mesmo a tentativa de cooptação de partidos políticos -, enquanto os rolezinhos não têm um grupo específico (até por ser algo de natureza cultural), que reivindique a sua organização; tudo é feito com o forte poder de mobilização das mídias sociais. E, agora, os rolezinhos estão acontecendo num momento em que muito já se aprendeu a partir daquelas manifestações. No fundo, está acontecendo como na dinâmica dos grandes fatos históricos, que tiveram potencial para provocar mudanças: aquilo que começa como algo pontual pode se transformar em algo estrutural (e estruturante), alterando a realidade social. Mas acredito que esteja cedo para fazer qualquer prognóstico.


OS ORGANIZADORES DEFINEM OS ENCONTROS COMO "GRITO DE LAZER" E NEGAM QUALQUER INTENÇÃO ILEGAL. NO ENTANTO, VIRARAM ALVO DE INVESTIGAÇÕES E ATUAÇÕES POLICIAIS, EM FUNÇÃO DA DENÚNCIA DE ARRASTÕES E ROUBOS NOS SHOPPINGS ONDE SE REÚNEM. COMO AVALIA ESSA QUESTÃO?
Evidentemente que, como aconteceu nas manifestações, quando se reúnem grupos tão heterogêneos e tão numerosos, não se tem controle sobre os objetivos daqueles que estão ali presentes. Oportunistas, gente sem objetivo e com más intenções sempre estarão presentes. Isso faz parte de qualquer movimentação de massa. Aliás, eu diria que um dos motivos para o esvaziamento das manifestações de 2013 foi um certo cansaço que a população sentiu dos constantes atos de vandalismo que se seguiram a quase toda manifestação. Isso, sem dúvida, é um elemento de fragilidade do movimento. Entretanto, como não há uma "organização", uma "liderança" ou um interlocutor constituído, fica, praticamente, impossível resolver esta questão. Nesse sentido, vejo, por parte da imprensa e do poder público, uma espécie de "caça" aos organizadores dos "rolezinhos", no sentido de "construir" (artificialmente mesmo) uma liderança que o movimento não tem. E o fator principal que tem levado a isso é a necessidade de combater a violência, que vem ocorrendo (roubos, assaltos, depredações etc).


O COMÉRCIO NOS SHOPPINGS ESTÁ COM MEDO. ESTE RECEIO É JUSTIFICÁVEL OU SE TRATA, APENAS, DE PRECONCEITO, POIS OS ADOLESCENTES QUE PARTICIPAM SÃO DE BAIRROS E CLASSES SOCIAIS MENOS FAVORECIDOS?
Em minha opinião, um evento como este requereria, por parte dos envolvidos (Estado e empresários), uma capacidade de gerenciamento de crise, com ações mais inteligentes, planejadas. É o que se espera de um lugar que, como diria Max Weber, é um locus privilegiado da racionalidade (empresas e Estado). Evidentemente que, na perspectiva dos empresários, medo é justificável. Os fatos têm evidenciado razões para isso. Entretanto, o que tenho visto é que este medo da violência tem evidenciado uma característica típica da sociedade brasileira, que é o preconceito e a discriminação velados. Em nome do combate a essas ações mais violentas, instituem-se práticas totalmente arbitrárias e discriminatórias, acentuando, no meu entendimento, uma incompetência de empresários e do poder público de gerenciar, de forma mais inteligente e democrática, um momento de crise.


AINDA DENTRO DO TEMA, ENTIDADES LOJISTAS INGRESSARAM NA JUSTIÇA PARA IMPEDIR A REALIZAÇÃO DOS ROLEZINHOS. VOCÊ CONSIDERA O FATO LEGÍTIMO OU SE TRATA DE UMA ATITUDE ARBITRÁRIA, QUE IMPEDE A LIVRE CIRCULAÇÃO E MANIFESTAÇÃO DAS PESSOAS EM LOCAIS PÚBLICOS (EMBORA OS SHOPPINGS SEJAM CONSIDERADOS LOCAIS PRIVADOS)?
Não sou jurista e não quero cometer a leviandade de fazer uma discussão nesse campo. Entretanto, quero chamar a atenção para o fato de que existem duas esferas que não podem ser misturadas. A da Ética e a do Direito. Mesmo na área jurídica, tenho visto depoimentos de advogados bastante dissonantes. E todos sabemos como o Direito é construído com base em interpretações (muitas vezes subjetivas, a despeito da alegada objetividade da área). Mas, ainda que consideremos legal que o patrimônio e a integridade das pessoas sejam preservados, pensemos na questão ética de como implementar esta ação de impedimento de ingresso? Como operacionalizá- la, sem incorrer na grotesca falha da discriminação, com base em critérios arbitrários de "quem pode" e "quem não pode". Em meu entendimento, esta não foi a melhor saída e faltou aquela inteligência de gerenciamento de crise que já mencionei. Foi uma ação que, sem dúvida, acabou ampliando ainda mais a repercussão do movimento, na medida em que foi mais um indicador da discriminação e do preconceito que existem no Brasil.

Falta no Brasil alguma instituição que capitalize toda esta energia positiva. Numa sociedade baseada na democracia representativa, isso seria esperado de partidos políticos. Entretanto, toda a ineficácia e inoperância, sem falar da falta de compromisso ideológico, de nossos partidos provocaram uma reação quase que "alérgica" da sociedade a eles

UM ATO PÚBLICO EM SÃO PAULO PROMETE "DENUNCIAR O CARÁTER RACISTA" DOS SHOPPINGS, UMA VEZ QUE, SEGUNDO UM DOS ORGANIZADORES, A MAIORIA DOS QUE PARTICIPAM É NEGRA. O QUE PENSA DISSO? 
A questão racial, no Brasil, é um capítulo à parte e extremamente complexa. Difícil abordá-la num espaço tão curto. Mas entendo que, neste caso específico, não se trata, apenas, de racismo, mas de preconceito de classe também. Os dois componentes são muito fortes e interligados. Para operar esta segregação de "quem entra" e "quem não entra", muito provavelmente importa mais o estilo de vestuário e postura da pessoa do que, propriamente, a cor da pele ou o tipo físico. Apesar disso, vejo isso como mais um momento em que esta característica racista da sociedade brasileira (ainda que recusada por seus atores e, por isso, velada) é evidenciada. Até porque, como dizia Florestan Fernandes, "temos preconceito de ter preconceito no Brasil". Não o assumimos. Ele é oculto. Isso é um fato. Do outro lado, entrando numa linha mais crítica (sem desmerecer o seu importante papel e sua grande contribuição) com relação à atuação dos movimentos sociais, todo grupo que, efetivamente, sofre preconceito e discriminação, quando se organiza em movimentos reativos críticos na sociedade, tende a hipertrofiar os fatos, a partir de sua percepção de excluído. Isso não é prerrogativa do movimento negro: movimentos de gênero (homossexuais, mulheres), operários, lavradores, indígenas etc. Lidei com isso durante boa parte da minha vida profissional. Falar em criminalização me parece um exagero. Entretanto, não é possível perder de vista que se trata de uma discriminação e não apenas racial (embora esteja meio óbvio que a questão racial esteja aí muito presente). Isso me parece muito claro.

ALGUNS ESPECIALISTAS ENTENDEM QUE ESSE FATO PODE REPRESENTAR, NO FUNDO, UM VETO A GRUPOS SOCIAIS ESPECÍFICOS, COMO CRIMINOSOS, QUE APROVEITAM O ANONIMATO DA MULTIDÃO PARA COMETEREM DELITOS. COMO COMBATER ESSE FATOR? 
O gerenciamento de crise, com um bom serviço de inteligência, poderia pensar em estratégias para administrar isso. Entretanto, isso não foi feito. Nem na época das manifestações, em que um suposto grupo organizado (os Black Blocs) tinha uma presença mais constante isso aconteceu. A grande dificuldade de lidar com a presença de pessoas mal intencionadas (e até mesmo crime organizado - como aconteceu nas manifestações) é porque elas vêm acontecendo sem a configuração de uma organização específica. Isso é a realidade dos processos participativos convocados por mídias sociais: forma-se uma rede de desconhecidos no campo virtual, que agem como se fizessem parte de um grupo constituído. Esta nova realidade (proporcionada pela virtualidade) carece de análise e compreensão para que se possa pensar em como agir.



sábado, 13 de setembro de 2014

Crimes de intolerância: a ação passiva de todos



Recentemente, voltamos a testemunhar crimes de intolerância no país. Não que eles tenham acabado e, de repente, ressurgido: acabaram e regressaram na mídia, não da realidade. Do racismo flagrante de alguns integrantes da torcida do Grêmio, ao linchamento moral da jovem Patrícia e a consequente pressão "terrorista" que se instalou sobre ela e seus familiares, levando ao recente atentado à sua casa (curioso como não se percebe que os dois atos são criminosos, como já analisei em um outro texto no Blog da ESPM), o caso do menino do Rio de Janeiro impedido de ingressar na escola por portar guias de candomblé, passando pelo atentado ao CTG de Santana do Livramento (RS) ao assassinato brutal do jovem João Donati (em Goiânia), os dois últimos relacionados a um tipo de crime que é tratado de forma muito pouco incisiva e relativamente branda pela mídia: a homofobia. 

Como em outras duas formas de violência (racismo e machismo), a homofobia é muito forte no Brasil. E, assim como nas outras duas formas de violência, não lhe é dada a devida importância, pelo menos não a importância proporcional ao seu impacto. A seu respeito, os dados estatísticos no Brasil são alarmantes. E a grande mídia praticamente se cala frente a eles. Segundo um dos mais completos estudos já feitos, conduzido pelo Grupo Gay da Bahia (uma das mais atuantes organizações dos direitos homossexuais no país), em 2013 foram cometidos um assassinato por homofobia a cada 26 horas no Brasil (Cf. matéria no portal UOL). Num estudo prévio, bem mais abrangente, a mesma ONG fez um levantamento entre as décadas de 1960 e 2007 (Cf. dados no Portal do Observatório de Segurança), confirmando sua gravidade no país. 

É certo que, junto com esses dados, também experimentamos significativos avanços no campo social. Seja no reconhecimento dos direitos dos casais homossexuais (direitos conquistados com muita luta e, literalmente, sangue - pois muita gente foi assassinada por causa disso), na visibilidade e ampliação da aceitação da convivência em espaços fora dos tradicionais "guetos" (tão comuns até os anos 1990), seja na criação de instâncias jurídicas específicas para acolher e investigar casos de violência homofóbica (São Paulo, por exemplo, criou a primeira delegacia especializada neste tipo de crime após o brutal e covarde assassinato, promovido por um grupo de skinheads, do jovem Edson Neri da Silva, em 2000). Poderia aqui elencar uma série de outros avanços. Por outro lado, parece que quanto mais pensamos que estamos vivendo tempos de modernidade, de usufruir conquistas das gerações passadas que tanto batalharam para a construção de uma "civilização" da qual nos orgulhássemos, mais nos deparamos com exemplos que nos remetem à barbárie. É como se nós não aprendêssemos e, malgrado tudo o que conquistamos de bom e de nobre, insistimos em não abandonar a violência (concreta e simbólica) que existe em  nós.

Afinal, um princípio básico da relação de alteridade nos coloca diante do paradoxo. Uma vez que o "estranho", o "bizarro" é aquilo com o qual eu não estou acostumado, uma das principais formas de promover o fim da intolerância - pelo menos de maneira mais espontânea - é estimular a convivência com a diferença, com a diversidade. Assim, aprendemos que o "estranho" só existe no meu referencial e que, no referencial do outro, eu posso até ser bem mais estranho do que imagino. Em tese, a convivência diluiria este estranhamento minimizando o potencial de intolerância. Paradoxalmente, esse mesmo mecanismo vai gerar, em alguns nichos - sobretudo entre os menos esclarecidos, fundamentalistas, reacionários e conservadores -, exatamente a reação contrária: a diferença incomoda, perturba e, consequentemente, desperta sentimentos de insegurança e ódio. É um ciclo difícil de ser rompido e, nesses casos mais específicos, somente a força da lei pode obrigar o intolerante a respeitar a diferença (com relação ao que ele entende como igual, deixo claro). 

E, nesse sentido, instituições sociais como a família, igrejas, escola e o Estado como um todo tem um papel fundamental. Os valores passados e as ações praticadas vão ser um forte referencial na orientação do comportamento. Não nascemos intolerantes: aprendemos a sê-lo. E, contrariamente, podemos aprender a tolerância (e até desaprender a intolerância). 

Com relação ao assassinato do  jovem João Donati, uma mensagem interessante circula pelas mídias sociais. Uma mensagem que conclama a nós todos a pensarmos sobre nossas responsabilidades por esse crime brutal (como de resto, completo eu, por todos os outros crimes de intolerância, em especial o machismo e o racismo) nas piadas que fazemos, nas humilhações que não combatemos, nos preconceitos que ajudamos a difundir por nossa omissão. Nossa responsabilidade em nos posicionarmos claramente frente ao fato de que a intolerância e o ódio nascem, muitas vezes, de forma branda e impercetível (como bem mostra o filme "A Onda"). Quando nos damos conta dela, já pode ser tarde. Claro que sua mensagem  é simbólica e não literal, mas tem uma eficácia contumaz para uma reflexão. Vejamos um trecho

 "Sim, foi você que matou João Donati. Você mesmo, que faz piadinhas sobre seu amigo gay pelas costas. Você que ridiculariza travestis (ou transexuais, ou transgêneros, ou qualquer que seja sua concepção da letra T). Você, político, que diz que gays não são uma minoria digna de ser protegida, você que luta contra a criminalização da homofobia. Você, padre ou pastor, que condena a homossexualidade no púlpito ou no altar, espalhando seu discurso de ódio e você, fiel, que dá glória à deus ao ouvir esta afirmação. Você, pai ou mãe, que não aceita o próprio filho. Você que se cala ao presenciar uma agressão. (...) Porque o ódio que você ajuda a espalhar é o mesmo ódio que o matou."

Pensamos não ter responsabilidade direta, mas a omissão e até mesmo uma certa "colaboração" acaba alimentando um elemento importante na composição do caldo da intolerância: o ódio. 

A passividade pode ser mais ativa do que pensamos. E isso nos torna, não culpados, mas responsáveis por cada ato de violência, por cada assassinato gerado pela intolerância. 


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Pensando um setembro verde: reflexões sobre a mobilidade (parte 2)




Considerando todo o complexo que envolve pensar soluções para o grave problema da mobilidade urbana (especialmente nas grande metrópoles), enxergo alguns pontos fundamentais que, no meu entendimento, precisam ser levados em conta: a) adensamento demográfico; b) consequente adensamento da frota de veículos (públicos e privados; pequenos, médios e grandes); c) eficácia e eficiência do sistema de transporte público; d) descentralização das atividades econômicas e, consequentemente, dos postos de trabalho; e) equacionamento e adequação das malhas de locomoção.  

Desta forma, o que se vem constatando no Brasil nos últimos tempos é que um dos maiores problemas relacionados à mobilidade urbana está na total falta de planejamento das políticas de desenvolvimento urbano no país como um todo. Isso, a partir da segunda década do século XX levou a um "inchaço" demográfico em algumas regiões metropolitanas que, aliado à falta de investimento em políticas de locomoção - que, como é fácil constatar, priorizou o transporte privado motorizado, em detrimento do transporte público de massa, em especial, aquele sobre trilhos -, promoveu o agravamento da crise da mobilidade urbana como ficou evidenciado a partir das manifestações de junho de 2013.

No caso brasileiro, pensar este problema envolve, pois, um emaranhado de variáveis que precisam ser consideradas pelos gestores municipais. Elas vão desde as mais diretamente ligadas à demanda por transporte (população, malha viária, frota disponível, tipo e porte de transporte) como aquelas indiretas, como é o caso do planejamento de descentralização dos postos de trabalho e áreas de lazer em função da localização dos bairros mais populosos, o que minimizaria os efeitos dos deslocamentos de massa. Isso ficou um pouco evidente nas últimas eleições municipais, quando houve algumas tímidas propostas de incentivos fiscais para que empresas migrassem para áreas densamente populosas de São Paulo mas com pouca oferta de emprego. 

No post anterior, propus pensarmos uma solução  emergente nesse emaranhado que é o da implementação das ciclovias na cidade de São Paulo. Embora esta seja uma demanda antiga, principalmente daqueles que desejam a melhoria da qualidade do ar (uma vez que a emissão de CO2 pelos carros é um dos principais causadores da poluição), é evidente que, como alternativa de transporte, está longe de ser considerada a única ou mesmo a melhor para resolver o problema da locomoção em massa. Claro que a medida é necessária e ajuda muito. Sob vários aspectos. Mas não é a única que precisa ser tomada.  

Mesmo não sendo especialista em urbanismo, gostaria de propor aqui um exercício simples - com um peso simbólico - que tenho feito em sala de aula: qual o tamanho da nossa frota na cidade de São Paulo e qual extensão efetiva, em quilômetros, das vias disponibilizadas para sua circulação? Junto com isso, vamos pensar essa interrelação (frota veicular x vias para circulação) com o dado de crescimento populacional. Sei que a matemática não é direta e tampouco simples, mas é bastante simbólica para nos apontar o tamanho do problema e indicar, pela força dos números, que é urgente encontrar  uma solução definitiva e adequada. Vamos lá. 

Segundo dados da Associação Nacional de Infraestrutura de Transportes, a cidade de São Paulo possui uma malha viária de 17.000 km, dos quais cerca de 4.000 km não são pavimentadas. Esse é o total de ruas, ruelas, alamedas e avenidas na cidade. Este dado não traz, claro, a precisão do número de faixas de rolamento de cada uma. Mas, como veremos abaixo, vai ser compensado com outros dados. Por isso, optei por mantê-lo como referência para pensar o problema.

Na outra ponta, as estimativas do Detran-SP apontam para uma frota veicular com um total estimado em 7,5 milhões de veículos (somente aqueles emplacados na cidade de São Paulo), assim especificados: 

1 - Ciclomoto, motoneta, motociclo, triciclo e quadriciclo: 970.265
2 - Micro ônibus, camioneta, caminhonete e utilitário: 819.152
3 - Automóvel: 5.345.468
4 - Ônibus: 43.509
5 - Caminhão: 148.513
6 - Reboque e semi-reboque: 78.813
7 - Outros: 6.897
(Fonte: http://www.nossasaopaulo.org.br; esses dados são de 2013)

Brincando com esta tabela, podemos estabelecer um cálculo da extensão desses veículos somados, baseado num tamanho médio aproximado deles, obtendo o seguinte resultado: 

1 - Ciclomoto, motoneta, motociclo, triciclo e quadriciclo: 970.265 x 1,5m = 1.355.397,5m
2 - Micro ônibus, camioneta, caminhonete e utilitário: 819.152 x 4,0m = 3.276.608m
3 - Automóvel: 5.345.468 x 3,5m = 18.709.138m
4 - Ônibus: 43.509 x 5m = 217.545m
5 - Caminhão: 148.513 x 5m = 742.565m
6 - Reboque e semi-reboque: 78.813 x 4m = 315.252m
7 - Outros: 6.897 x 3m = 17.242,5

Total da frota: 24.733.748m ou 24.733,75 Km.

Assim, o tamanho do brinquedo que temos na cidade de São Paulo seria uma frota de 24.700 km para um total de vias de 17.000 km. Note-se que os dados da frota fornecidos pelo Detran são apenas relativos aos veículos emplacados em São Paulo. Como sabemos, por ser metrópole, aqui diariamente circulam veículos de outras localidades (principalmente os caminhões, já que a cidade ainda é um elo importante de ligação entre as principais rodovias do centro sul do país). Por isso, proponho aqui não levarmos em conta o fato de que, dos 17.000 km de vias, muitas sejam vias mais de uma faixa de rolamento o que poderia implicar num abrandamento do choque estatístico. Ou seja, mesmo levando isso em conta, concluímos aquela verdade óbvia que constatamos quando temos, por exemplo, greve de metrô e que mais pessoas tiram os carros da garagem: se todos os veículos circulassem simultaneamente, faltariam cerca de 7.000 km de vias para comportar toda a frota da cidade. E nem estou propondo pensar o fato de que a densidade de veículos nas regiões centrais é muito maior que nas periféricas, o que agrava mais ainda o problema.

Para finalizar, este dado se torna ainda mais alarmante se levarmos em conta que a curva de crescimento demográfico segue numa intensidade menor do que a do crescimento da frota. Esta relação (entre crescimento demográfico e crescimento da frota) está acessível nos dados consolidados pela Associação Nossa São Paulo. Segundo o portal, que traz informações atualizadas em 2013, São Paulo possui atualmente uma população de aproximadamente 11 milhões de habitantes (dados esses comprovados recentemente pelo censo liberado pelo IBGE). O gráfico abaixo fornecido pela associação mostra a evolução dos dados ao longo de 2005 (1) a 2011 (7). Curioso à parte o crescimento da população e da frota de carros, caminhões e motos, a frota de ônibus permaneceu praticamente estável.

Ou seja, desesperador.

E o poder público ainda insiste em não ouvir urbanistas e especialistas em mobilidade! E muita gente insiste em não fazer a sua parte. Preocupante. 





sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Linchamento moral: A hipocrisia da barbárie


Num dos mais conhecidos de seus ensaios (Dos Canibais), Michel de Montaigne (1533-1592) nos chama a atenção para juízos precipitados e hipócritas que fazemos do comportamento alheio, a partir do horror que o canibalismo dos índios brasileiros provocava nos franceses antárticos que aqui tentaram fincar raízes. Numa Europa inquisidora e brutal, o filósofo francês, rejeitando a perspectiva comparativa que coloca o "outro" desconhecido como estranho e o "eu" como referência superior de valor e comportamento, reconhecia a necessidade de uma crítica desta prática que considerava "cruel"; mas que isso não cegasse aquele que a condena para seus próprios defeitos. Afirmou ele:

“não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. (...) Estimo que é mais bárbaro queimar um homem vivo em nome da fé, como ocorre entre nossos conterrâneos, do que o comer depois de morto. E é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou o s entregar a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé. (...) E isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado. (...) Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros em dando ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos que os excedemos em toda sorte de barbaridades.”

Observando a reação das pessoas frente à identificação como racista de uma torcedora do Grêmio no conhecido episódio do crime de injúria racial praticado contra o goleiro Aranha, do Santos, não deixo de pensar que acontece algo parecido (guardadas as devidas proporções de tempo e contexto): um verdadeiro "linchamento moral" e a destruição da vida da jovem Patrícia Moreira por parte de muitas pessoas, ajudadas pela péssima cobertura realizada pela grande imprensa. Ela já foi julgada, condenada e está sendo paulatinamente executada. E aqueles que o fazem, se sentem superiores, corretos, sem enxergar a atrocidade ainda pior que cometem.

É fato que, independentemente de opiniões subjetivas, todos os indícios de registros (imagens, testemunhas etc.) parecem evidenciar que a jovem Patrícia tenha, realmente, cometido um ato racista (injúria racial, prevista na lei Lei nº 7.716/1989 - conhecida como lei Caó) e deva ser julgada e, se for comprovado, condenada e punida. O próprio Grêmio, inclusive, numa atitude inédita e histórica no Brasil, já o foi em primeira instância pelo TSJD, tendo  recebido uma pena com um peso simbólico importante: foi expulso da Copa do Brasil. E, de quebra, a sociedade voltou a discutir seriamente um fenômeno tão neglicenciado no Brasil, como se ele fosse de importância menor ou, pior, não ocorresse. 

Entretanto, este diagnóstico, abre portas para um outro problema maior. Independentemente da sua culpa e responsabilidade sobre a atitude racista (e irresponsável) cometida no episódio - e, reiterando, que cabe à Justiça julgar -, é importante refletir como todos (a mídia e a sociedade em geral) vem cumprindo e executando uma sentença imaginária, negligenciando a própria noção de Direito, Ética e correção, e caindo na mais absoluta barbárie. 

Não é preciso ir muito longe para encontrar exemplos recentes deste tipo de comportamento condenável. Variações sobre o tema da justiça feita com as próprias mãos sob forma de linchamento que temos visto na sociedade brasileira nos últimos tempos. Desses, talvez caso mais forte e emblemático tenha sido o da dona de casa Fabiane de Jesus, no Guarujá (SP), morta no início de 2014, em um linchamento promovido por uma turba ensandecida que a havia identificado como uma aliciadora de crianças para práticas de magia negra. Um espetáculo de horror, que traduz da forma mais cruel possível a sandice de uma sociedade que, ao clamar por justiça diante de um ato concretamente ofensivo, comete atrocidades ainda maiores do que aquelas que alegadamente pretendem condenar em seus gritos. 

À parte o fato de que a sra. Fabiane de Jesus morreu fisicamente (de forma brutal), vejo muito paralelo com a morte social a que está sendo submetida a jovem Patrícia (e talvez com a mesma crueldade, pois a ela não está sendo dada, por parte da opinião pública e da imprensa, direito de defesa). Este caso nos faz pensar em várias questões envolvendo as noções de Direito, Justiça, Violência e como, apesar de todos os avanços promovidos pela sociedade em vários campos da chamada "civilização", insistimos em retomar este comportamento de barbárie. 

Sobre o caso da jovem Patrícia, penso, inclusive, que deveria ser feita uma boa reflexão (aí com base no histórico de vida desta jovem) se de fato ela é racista ou praticou um ato racista. Será que estamos avaliando se esta atitude é realmente uma atitude isolada ou faz parte de algo muito mais denso e supostamente perigoso? Realmente acreditamos que uma única atitude deve rotular a pessoa para o resto da vida? Estamos julgando o ato ou a pessoa? Em assim sendo, qual a função supostamente "redentora" das penalidades aplicadas pela Justiça? Vejo uma enorme diferença entre as duas coisas e, salvo engano, a nossa tradição jurídica também. Uma coisa é um ato racista praticado por uma pessoa com um histórico de envolvimento em práticas deste tipo; outra, bem distinta, é o ato isolado, num contexto fértil para estas atitudes mas que acabam sendo feitas no impulso do momento.

Não que isso atenue o peso do ato praticado por ela e a relevância do fato. Sou totalmente contra práticas racistas. Trabalho com este tema em sala de aula e procuro refletir as consequências (inclusive jurídicas com meus alunos). Acredito firmemente na necessidade de que atos como os praticados pela jovem Patrícia sejam punidos com rigor para que não se repitam. A sociedade precisa aprender (mesmo que seja pela força da lei) a civilidade do respeito pela dignidade alheia. Entretanto, parece-me óbvio que, numa sociedade democrática isso deveria acontecer pelas vias e processos normais do Estado. Agir da forma violenta (pelos relatos não se trata apenas de violência simbólica, mas física e moral) como se está fazendo, torna aqueles que praticam tais atos tão (ou até mais) criminosas do que o suposto crime que tentam combater. Isso cria um círculo vicioso que precisa ser interrompido.

Não se trata de absolver a jovem Patrícia. Antes, como diz Montaigne, não somente não a condenar previamente mas, com essa atitude, não enxergar as próprias atrocidades. Como este linchamento moral que ora ocorre. Eu ainda acredito na racionalidade de uma sociedade baseada na Justiça e no Direito. E que a pena seja proporcional ao contexto do delito praticado.

Racismo é crime. Linchamento é um crime ainda mais grave. 

Resgatando o Montaigne do mesmo ensaio: 

“Isso mostra a que ponto devemos desconfiar da opinião pública. Nossa razão e não o que dizem, deve influir em nosso julgamento.”





terça-feira, 2 de setembro de 2014

Pensando um setembro verde: reflexões sobre a mobilidade (Parte 1)



Introdução: 

Recentemente, numa atitude ousada da atual administração municipal, São Paulo vem vivenciando um dos mais significativos avanços na construção de um espaço urbano de melhor qualidade: a implementação da primeira malha cicloviária de forma consistente e significativa. Uma demanda antiga da população, esta iniciativa requer dos gestores municipais muita coragem porque, seguramente, têm que lidar com medidas antipopulares que implicam em uma alteração substancial nos esquemas simbólicos já consolidados de uma sociedade para a qual o carro é não somente meio de locomoção mas sinônimo (quase sempre ilusório, diga-se de passagem) de conforto e qualidade de vida. Além, claro, de símbolo de status social. Mais do que propor uma alteração do espaço urbano, trata-se de uma revolução cultural. E isso, é o mais difícil e desgastante. O custo não está sendo baixo (e não falo de custo financeiro) mas se o está enfrentando com coragem e determinação. Principalmente quando estamos falando - temos que reconhecer este diagnóstico pouco simpático - de uma sociedade acostumada a reclamar muito e a fazer pouco. E mais: uma sociedade igualmente habituada  a pensar que o esforço para a mudança sempre tem que vir do outro, não de mim! Não é à toa que este assunto vem levantando reações mal humoradas acirradas, principalmente dos seus setores mais conservadores. Finalmente, alguém teve coragem de, cumprindo o plano diretor da cidade, colocar o problema na mesa e provocar essas mudanças necessárias (mas que ninguém quer fazer). 

Não quero agora entrar nesta polêmica instaurada (e necessária - diga-se de passagem), até porque, como tudo o que diz respeito à realidade, possui uma contradição básica entre erros e acertos. Vou fazê-lo mais à frente. Em momentos assim, sempre me vem à mente uma frase da Elis Regina da qual gosto muito, em uma entrevista ao programa Ensaio da TV Cultura: nós cometemos "zil" erros; mas só erra quem está tentando fazer alguma coisa. E, como tudo o que se faz, os erros têm que ser revistos e ajustados e os acertos aprimorados. O que desejo é, a partir da polêmica instaurada, elaborar, nas próximas semanas, uma breve e livre reflexão sobre os vários aspectos trazidos pela questão da "mobilidade urbana" e que fazem parte do pacote proposto por um movimento que, desde fins da década de 1990, foi ganhando escala mundial: O Dia Mundial Sem Carro.

Num mundo acostumado a transferir para a esfera do Estado a responsabilidade pelo gerenciamento (e, consequentemente, pela busca de solução dos problemas) este é mais um movimento que vem colocando na pauta dos moradores das grandes cidades uma revisão sobre o papel de cada um nesse processo naquilo que concerne à melhoria da qualidade de vida como um todo: mobilidade, lazer, saúde, poluição (aérea e sonora, principalmente), estresse, crise de energia etc. O automóvel, como bem nos lembram James Womack, Daniel Jones e Daniel Roos ("A máquina que mudou o mundo"), talvez seja o filho da revolução industrial que mais trouxe mudanças significativas na vida privada das pessoas com consequências para o espaço público. Numa perspectiva antropológica, diria que redefiniu o próprio homem: reelaborou as cidades, aproximou distâncias, construiu um estilo de vida, determinou a velocidade de uma era, as relações com as pessoas, com o trabalho, com o lazer. No entanto, o inchaço dos grandes centros potencializou esse processo, trazendo-nos, em mais esta esfera, uma relação adicional de dependência (frente a tantas outras), quase uma verdadeira adicção. E, como todo adicto, experimentamos uma resistência incrível em nos libertar. Quero deixar claro que, até pela escolha do verbo (libertar-se e não livrar-se), não pretendo aqui fazer uma demonização maniqueísta do automóvel. Eu seria um cavernário platônico se caísse nessa armadilha da ingenuidade. Pelo contrário, como tudo o que criamos, o problema (quando existe) não está na coisa em si mas na relação que estabelecemos com ela. E sobre isso, é preciso pensar. Aberto ao debate, vou procurar manter uma criticidade na reflexão, tentando caminhar por esta trilha sujeita às contribuições dos leitores. Como o tema é complexo e o espaço de um blog é curto, vou fazê-lo em drops de pontos bons para pensar. Sem a pretensão de exauri-lo.

Em vários países do mundo, setembro é um mês dedicado a se pensar questões relativas à mobilidade urbana. Isso se deve, principalmente, ao fato de que no dia 22 deste mês é celebrado o "Dia Mundial Sem Carro" e, na Comunidade Europeia, a "Semana da Mobilidade" (que vai de 16 a 22). Para nós, no hemisfério sul (e mais ainda no Brasil), isso ainda ganha um significado maior: por ser o mês de início da Primavera (estação muito ligada ao imaginário ecológico) e, talvez por isso, o mês dedicado às questões ambientais (sendo o dia 21, dedicado à "Àrvore") é um momento fértil para se propor reflexões a respeito do tema.

Uma rápida pesquisa revela uma inconsistência nas explicações do porquê o dia 22 de setembro foi escolhido como o "O dia mundial sem carro", uma iniciativa que teria ocorrido em Reykjavik, Islândia, em 1996, mas que se consolidaria a partir de um evento ocorrido em La Rochele (França), em 1997 (ou 1998 - as fontes variam quanto a isso), espalhando-se rapidamente por várias cidades europeias. Estas iniciativas, de longe, foram as pioneiras.(1) Várias crises mundiais que já apontavam para a escassez de combustível (a começar pela Guerra de Suez, em 1956, que comprometeu o abastecimento de petróleo na Europa, vindo o Oriente Médio por aquele canal; e também a grande crise mundial do petróleo em 1973) e que mobilizaram várias cidades europeias com o objetivo de buscar alternativas ao transporte motorizado, principalmente aquelas dependentes do petróleo.

Fato é que estas iniciativas, alimentadas pela preocupação com o aquecimento global, níveis alarmantes de poluição, a crise de combustível, a superpopulação em alguns centros urbanos, congestionamentos crescentes - sem falar no crescente sedentarismo e problemas de saúde dele decorrentes - englobadas no grande debate sobre qualidade de vida nas cidades fez com que se tornassem, na virada do milênio, um movimento em escala mundial. E, ao que tudo indica, sem volta! 

Aqui no Brasil, ela só vai chegar em vários grandes centros no início do milênio, em 2001 (com adesão de cidades como Vitória, Porto Alegre, Belo Horizonte entre outras). Em São Paulo, especificamente, ela só terá início em 2004, ganhando mais força no ano seguinte (considerado por alguns como o efetivo ano de adesão da cidade) até que, finalmente, é incorporada no seu calendário oficial (com apoio institucional) a partir de 2007. O curioso é que, apesar de já ter completo mais de uma década, as iniciativas de mobilização nesse campo ainda se coloca de modo muito tímido, principalmente no que diz respeito à sua real incorporação pelo poder público. 

Se nos lembrarmos que na trilha do mote das passeatas de 2013 (questionamento da aumento das passagens dos ônibus urbanos) esteve fortemente uma crítica sobre a qualidade da mobilidade como um todo, ainda estamos muito longe de repensar nossa relação com a locomoção. E isso vale não somente para a esfera privada mas, principalmente, para a pública. Muito se discutiu. Pouquíssimo se fez. E, pior, o que se está fazendo está muito mais sujeito às críticas das pessoas do que a contribuições efetivas para que seja aprimorado. A resistência que a implementação das ciclovias em São Paulo vem enfrentando é um sinal muito evidente disso. Óbvio que esta é uma medida que terá que alterar hábitos, provocar mudanças de comportamento. Isso em várias esferas. Afinal, onde as pessoas que dizem que apoiam as ciclovias mas reclamam de sua instalação querem que elas sejam implementadas? Na subsolo, na rede de esgoto, no éter aristotélico da estratosfera? Sua implementação é concreta e para que ocorra é necessário uma alteração global. Seu principal efeito imediato é alterar o espaço de ocupação do carro. E isso, claro, implica na alteração do comportamento das pessoas como um todo (e não falo apenas de motoristas não). É preciso uma leitura crítica das ações do poder público. Mas é preciso que isto seja acompanhado de uma real vontade de abrir mão de um estilo de vida habitual para incorporar novas perspectivas e práticas. Isso dá muito trabalho.

E para não pensarmos que isso é uma exclusividade brasileira, é só lembrar que, entre outras cidades, NYC teve que enfrentar este desafio há alguns anos, quando resolveu implementar uma malha cicloviária que hoje beira os 600 km, segundo especialistas, o que resultou num enorme estardalhaço por parte de alguns. Hoje, passado um tempo, esta mudança foi incorporada aos hábitos das pessoas e as avaliações indicam uma grande adesão e apoio. 

Em suma, esta mudança requer que seja repensada nossa relação com a cidade que queremos; demanda sair da ambiguidade entre o desejado (aquilo que imaginamos como ideal) e o efetivamente concreto (o que é preciso e possível ser feito). Uma reorganização da perspectiva de vida no espaço urbano.

Brincando com uma metáfora da época das manifestações de 2013, parece que o gigante se levantou, andou um pouco e agora está retido em algum congestionamento existencial. (Continua.)



NOTAS:  

(1) A própria Wikipedia nos dá informações bastante distintas (às vezes contraditórias; às vezes complementares) quando se procura o verbete "Dia Mundial Sem Carro" em inglês, português, francês e espanhol, por exemplo (os idiomas pesquisados). 

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Porque somos racistas: o Direito e a Sociedade no combate à construção da violência simbólica


Mais uma vez o futebol brasileiro é arena para cenas de manifestações racistas por parte do público e o fato reacende um debate sobre o fenômeno em um país que, equivocadamente, parece se conceber como palco da fantasia da "democracia racial". Somente em 2014, foram cerca de 12 casos registrados por injúria racial, de acordo com levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo(1). O último, ainda repercutindo na mídia e na esfera jurídica, envolveu a torcida do Grêmio que ofendeu visivelmente (os fatos foram registrados por câmeras em vários ângulos) o goleiro Aranha do Santos, numa partida no dia 28/08/14. 

Em alguns outros momentos,(2) procurei refletir sobre o fenômeno do racismo e suas relações com aspectos diversos da sociedade. Por que somos racistas? o que significa o racismo? quais os seus fundamentos? Que implicações este fenômeno traz para a democracia? Aqui neste texto, procurei sintetizar um pequeno guia do que as principais leis brasileiras falam sobre o tema. O que o nosso sistema jurídico nos fala sobre o tema e que relações isso guarda com a construção da verdadeira democracia? Quero deixar claro que falo do lugar das Ciências Sociais, não do lugar do Direito. 

Somos uma nação multiétnica. E multirracial (em que pese a grande polêmica sobre o que seja o conceito de raça). Tem sido alvo de muita discussão o fato de que, a despeito disso, nós sejamos um país que oculta os conflitos derivados desta formação. É como se, entre nós, tivéssemos digerido bem aquelas ideias muito fortes até a primeira metade do século, de que fomos construídos a partir da fusão de povos constituídos por raças degeneradas, principalmente aqueles de origem africana. Nossa cara negra (mais até do que a indígena) nunca foi muito bem vista por nós. Além de degenerados, os negros em nossa formação sempre foram identificados com a ideia de subdesenvolvimento, de inferioridade, de brutalidade. Uma cara que nunca gostamos e que escurece nossas pretensões de termos uma origem exclusivamente europeia, sempre presente no imaginário brasileiro. Parece que, de uma certa forma, a política novecentista de branqueamento da população brasileira teria funcionado. Diluímos não só a pigmentação da pele, mas a tensão no espírito. A esse respeito, a literatura em Ciências Sociais está repleta de reflexões. E, ainda que dissimuladas e ocultas, as tensões se proliferaram em formas (às vezes nem tão dissimuladas assim) de discriminação e violência (física e simbólica). No entanto, fingimos que nada disso acontece e que isso não é um problema. Afinal, não praticamos a caracterizada segregação como os norteamericanos ou o Apartheid da África do Sul - porque isso sim seria racismo. Nossas práticas não.  Muito se pode pensar - e se tem pensado - a partir desta constatação. 

Entre tantos outros aspectos é sempre importante ressaltar que, no caso brasileiro, nós temos um edifício jurídico que desde a metade do século passado prevê a figura do racismo e da injúria racial, o que tem trazido importantes resultados para o combate desta forma brutal de violência. 

A primeira lei a reconhecer o fenômeno foi a Lei nº 1.390/1951, conhecida como Afonso Arinos, por ter sido proposta pelo jurista Afonso Arinos de Melo e Franco, que inclui entre as contravenções penais todos atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Apesar de ser considerado um significativa avanço no combate às formas de discriminação resultantes de práticas racistas (na medida em que é um seu primeiro reconhecimento oficial), esta lei sempre foi muito criticada por não prever a efetividade das punições, além de abrandar o racismo sob forma de "contravenção" e não crime efetivo. Ela, na prática, acabou entrando em desuso, sendo raramente acionada. Mas isso não apagou o brilho de sua importância aqui reiterada: pela primeira vez a legislação brasileira reconhece a existência desse fenômeno social e cria um mecanismo para combatê-lo. 

É preciso entender a elaboração desta lei no quadro das discussões internacionais sobre o racismo a partir das consequências bastante conhecidas da Segunda Guerra Mundial neste campo. Assim, fomos forçados a assumir este problema, impelidos por importantes documentos do qual o Brasil é  signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e também o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966)(3) assim como a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (conhecida como Conferência de Durban - 2001).

Lentamente, a figura do racismo foi se consolidando em nossas leis. Em 1967, ela não somente permaneceu, como foi endossada pela Constituição em pleno estado militar. 

Mas foi somente a partir da Constituição de 1988, com a valorização das contribuições das etnias indígenas e africanas (inclusive com reconhecimento de direitos importantes a povos indígenas e quilombolas especificamente) que o corpo jurídico brasileiro encontrou mais sustentação para avançar no combate ao racismo. 

Assim, com o importante suporte constitucional, foi sancionada a Lei nº 7.716/1989 (conhecida como Lei Caó, apelido do deputado proponente - Carlos Alberto de Oliveira). Considerado um dos mais expressivos avanços no combate ao racismo, esta lei o coloca não mais como uma simples contravenção, mas como um crime e, com isso, endurece no estabelecimento de suas punições. É importante sempre lembrar que formas de preconceito, discriminação e outras ações violentas não ocorrem apenas por questões raciais. Por este motivo, algumas alterações à Lei Caó se fizeram necessárias para que fossem contempladas as outras manifestações do fenômeno como problemas relativos à discriminação por idade, sexo e gênero, religião, etnia etc. inclusive já contemplando o espaço virtual da internet. Uma das últimas ações nesse sentido, foi a criação do Estatuto da Igualdade Racial (2010), e a Lei de Cotas (2012). 

Retomando o ponto inicial do texto - o do resgate da valorização da contribuição das culturas africanas na formação do Brasil - Apesar de não diretamente ligada ao racismo, gostaria de finalizar mencionando uma importante iniciativa jurídica que, na minha opinião, é de uma expressividade simbólica sui generis. Ao assumir a presidência da república em 2003, o primeiro decreto assinado pelo então presidente Lula (a lei 10.639, de 09 de janeiro daquele ano) vai alterar a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", incluindo a simbólica data de 20 de novembro (eleita pelos movimentos sociais de autoafirmação da cultura afro-brasileira) no calendário escolar. Pela primeira vez na história do Brasil, pelo menos no nível oficial e jurídico, elevamos a contribuição africana na nossa formação a um patamar que a iguala à contribuição dos povos europeus. Isso, claro, é um instrumento importante no combate ao racismo, uma vez que expressa a valorização desta herança: somos africanos também; não apenas europeus. Nesta linha de ações, também é significativa a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade (a SEPPIR) que vem promovendo esforços nos dois sentidos: valorizar as culturas afro-brasileiras e combater o racismo. 

Valorizar, de um lado, a contribuição africana e, do outro, tratar como crime o problema do racismo (e todas as outras formas de preconceito e discriminação) são mecanismos importantes para o combate do fenômeno. Como em outras esferas do comportamento social, está claro que o Direito desempenha um papel fundamental na construção de um comportamento cultural pois, como sabemos, não somente expressa mas pode gerar valores. Aqui, no caso, o valor do respeito: ainda que eu não queira, sou obrigado por lei a fazê-lo. E isso é extremamente importante na construção de uma democracia verdadeira na medida em que as pessoas são levadas a conviver com as diferenças não apenas de forma passiva (obedeço à lei porque sou obrigado), mas de forma extremamente ativa por meio de uma postura espontânea de respeito (por incorporação, ao longo de algumas gerações, desta obrigatoriedade como um valor, fazendo com que deixe de ser obrigação).  E isso é um valor que se constroi com o tempo. Para isso, sabemos todos, é preciso não apenas a existência da lei, mas a sua efetiva aplicação. E uma discussão de toda a sociedade.

Enquanto casos como o do goleiro Aranha não forem efetivamente punidos e amplamente discutidos, continuaremos a testemunhar episódios lamentáveis de racismo não somente no futebol, mas em todos os campos da sociedade.

Reconhecer a existência do fenômeno, caracterizá-lo de forma jurídica dando-lhe uma materialidade sob a forma de punições concretas, parece-me uma boa forma de acabar com ele. 



NOTAS:

(1) Confira a matéria no portal Folha de São Paulo: Futebol brasileiro já tem 12 denúncias de racismo em 2014








Palavras Iniciais

Olá,

Bem vindo a um espaço que, antes de mais nada, é despretensioso. Ou melhor, se há alguma pretensão é a de exercitar a arte da escrita, refletindo livremente sobre fatos, idéias, cinema, filosofia enfim, tudo o que valer a pena pensar.

Como se não bastasse a exigência da profissão, eu mesmo me impus a necessidade de registrar meus pensamentos os quais, reconheço, considero valiosos pela única e exclusiva razão de serem meus, de representarem meu ponto de vista sobre as coisas. Nada mais. É, pois, nesse exato sentido que me refiro à ausência de pretensão. Quero apenas falar. Falar livremente. E se o transeunte cibernético que por aqui se aventurar sentir que vale a pena iniciar um diálogo a respeito das idéias apresentadas (as quais, já adianto, não serão tão aprofundadas), vou sentir que terá alguma utilidade para além da minha própria extravasão.

Apesar de relativamente antigo, eu me esqueci completamente da criação deste espaço. Nele havia deixado, oculto, um único texto que resolvi publicar mesmo estando inacabado. A ele retorno com o propósito de alimentá-lo com mais frequência, o que para mim será extremamente benéfico, inclusive do ponto de vista pessoal. Vou aproveitar para registrar outros escritos, feitos em outras épocas - pré-internáuticas ainda - que certamente revelarão um outro Fred (principalmente para aqueles que já me conhecem).

Espero que o leitor que por aqui passar possa encontrar alguns pontos sobre os quais pensar. E, se sua generosidade permitir, deixar a contribuição de suas opiniões e seus pensamentos a respeito do que encontrar registrado para, inclusive, provocar minha contrarreflexão.

Boa leitura e obrigado pela visita.
Fred

Clique aqui para me escrever!