Esta entrevista foi concedida no dia 16/01/2014 e só foi publicada em março do mesmo ano, na edição impressa da Revista de Sociologia. Ela está disponibilizada no Portal Ciência e Vida. Decidi reproduzi-la aqui para ter uma cópia eletrônica registrada no blog, caso o site a retire do ar.
Entrevista
Rolezinho balança a sociedade brasileira
O cientista social Fred Lucio acredita que é necessário compreender os objetivos desses eventos, porque, claramente, as classes socioeconômicas menos favorecidas estão mostrando sua insatisfação e cobrando mais eficiência do poder público
Texto: Lucas Vasques | Fotos: Arquivo pessoal
Desde o final de 2013, uma nova modalidade de encontro de jovens começou a fazer parte do dia a dia do paulistano: os "rolezinhos". Grupos de adolescentes da periferia se organizam, por meio das redes sociais, principalmente em shoppings centers da capital paulista e da Grande São Paulo, para passear, cantar, conversar, funcionando como um "grito de lazer", como os próprios organizadores definem.
O problema é que comerciantes e demais pessoas que visitam os shoppings reclamam da aglomeração, provocada pelos jovens, e denunciam a ocorrência de arrastões e furtos. Por isso, medidas legais estão sendo tomadas para que os rolezinhos sejam proibidos. Mas cabe a pergunta: essa decisão é uma iniciativa legítima ou fere o direito constitucional de todos, de frequentarem os locais que quiserem?
Fred Lucio, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), mestre em Antropologia Social e doutor em Ciências Sociais, acredita que o rolezinho precisa ser analisado sob dois prismas: há o aspecto apenas de diversão dos jovens, o que, de fato, originou o evento; e o fator político e social, o qual se transformou, após a reação negativa da mídia e dos comerciantes e, principalmente, da truculenta da polícia. Fred tem convicção de que é necessário ouvir a voz destes jovens. "O recado, me parece, ainda que não formalmente constituído e direcionado, está claro: mais uma vez as classes socioeconômicas menos favorecidas estão mostrando sua insatisfação e apresentando-se à sociedade".
EM SUA OPINIÃO, O QUE SÃO OS ROLEZINHOS, POR QUE SURGIRAM E QUAIS OS OBJETIVOS DESsA MANIFESTAÇÃO?
Antes de mais nada, gostaria de recomendar alguma cautela em chamar os atuais rolezinhos de "manifestações", ou mesmo de "movimento". Isso porque é tudo muito recente e não se sabe qual será a sua dinâmica. Além disso, os rolezinhos somente vêm assumindo ares de "manifestação" a partir da grande repercussão (e consequente mobilização) que adquiriram. Lembremo-nos de que as manifestações de 2013 atingiram um nível de mobilização dificilmente registrado na história do Brasil, mas, rapidamente, caíram num esvaziamento (os motivos podem ser analisados num outro espaço). Assim como em 2013, esses rolezinhos começaram como um episódio pontual e, claro está que, à medida em que o tempo avança, e, com ele, os fatos, está acontecendo uma reconfiguração típica da dinâmica dos fatos históricos e sociais, que, ao que tudo indica, está conferindo este aspecto de um "movimento" reivindicatório (que, certamente, não havia no início). E a repercussão midiática (grande imprensa, blogs e mídias sociais) tem um papel importantíssimo neste processo. Como vem sendo bastante difundido pelos canais midiáticos, o fenômeno do rolezinho, tal como está sendo configurado agora, é recente e inédito. Entretanto, como se sabe, os rolezinhos de jovens, em busca de diversão, são uma tradição relativamente antiga. Juntar um grupo e "dar um rolê com a galera" por shoppings, parques, praias e demais áreas livres (ou supostamente livres, até o momento) sempre foi algo característico da juventude. Objetivo? Apenas a "curtição", diversão (como bem caracterizou um jovem entrevistado por um telejornal recentemente). O que é bem singular, neste caso específico, é a proporção e a magnitude que os rolezinhos acabaram tomando. Esses eventos, sobre os quais estamos falando agora, surgiram, pontualmente, a partir de uma grande aglomeração iniciada num shopping em São Paulo, no mês de dezembro, e que teria provocado certa comoção das pessoas: o que era para ser mais um "rolê da galera" acabou assumindo uma proporção gigantesca. Foram, segundo as notícias veiculadas, alguns milhares de jovens. O encontro acabou gerando algum tumulto, corre-corre e tensão nos eventuais consumidores do shopping Center, onde teria ocorrido. Este evento gerou duas consequências: chamou a atenção da sociedade para o fenômeno da exclusão sociocultural das periferias das grandes cidades (na medida em que muitos entrevistados disseram que marcaram num shopping por ser um lugar "bonito" e que era legal para "curtir" e porque não havia espaços como esses nos bairros mais periféricos); evidenciou como a sociedade brasileira lida muito mal com a convivência, no mesmo espaço, da diversidade socioeconômica. E qual foi a primeira reação dos empresários: a violência e a truculência. Lembremos que foi exatamente isso que conferiu às manifestações de 2013 uma magnitude muito maior do que elas vinham tendo até aquela ação truculenta da polícia. Em minha opinião, foi a partir daí que se criou, efetivamente, o fato político, social e cultural chamado de rolezinho (pelo menos, tal como o estamos discutindo) e que a sociedade está agora discutindo. Então, é bom separarmos as categorias: uma coisa é o rolezinho da galera; outra, o que estamos debatendo agora, é o fato político, econômico, cultural e social chamado rolezinho. A palavra é a mesma; as categorias, não. Embora esteja se tornando uma manifestação, na medida em que muitos de seus protagonistas estão vindo à luz da imprensa, assumindo-se como moradores da periferia, e que marcam encontros em shoppings, porque não têm áreas de lazer e a periferia está abandonada (e isso, claramente, evidencia uma crítica à ordem social estabelecida e a ineficiência do poder público em dar à periferia, pelo menos no campo da cultura, um tratamento adequado, para atender às suas necessidades), é preciso cautela para chamar estes eventos de manifestações - pelo menos no sentido clássico da política - porque ainda não há, muito claramente configurado, um direcionamento ou mesmo uma pauta reivindicatória; sequer uma liderança. Evidentemente que, ainda que tenham começado sem esta intenção e objetivo, acabaram - como as manifestações de rua de 2013 - assumindo este caráter à medida em que se vai construindo. Acho ainda muito prematuro qualquer avaliação e, mais ainda, qualquer prospecção sobre seu futuro. Estamos vivenciando o processo. É hora de compreendê-lo e aproveitar dele as lições que nos trazem. Ouvir a voz destes jovens. Ouvir o que eles estão dizendo. O recado, parece-me, ainda que não formalmente constituído e direcionado, está claro: mais uma vez as classes socioeconômicas menos favorecidas estão mostrando sua insatisfação e apresentando- se à sociedade.
Não seremos nós, cientistas sociais ou analistas, que diremos qual deverá ser o rumo desses eventos, que até pode ter surgido como uma mera diversão. Mas a repercussão acabou mostrando a esses jovens que eles poderiam dizer mais, muito mais, transformando o rolezinho num fato político e social. E estão dizendo
ESSES GRUPOS QUEREM SE FAZER OUVIR, ENQUANTO PARCELA ESQUECIDA DA SOCIEDADE, OU DESEJAM, APENAS, SE DIVERTIR?
Eu não sei se os chamaria de "grupos" com tanta tranquilidade. É um conjunto muito heterogêneo de perspectivas, cabeças, jeitos (dos mais pacíficos até os mais violentos, por exemplo) e que, até o momento, pelo menos, estão difusos (sem nenhum demérito para essa difusão, muito pelo contrário). Em termos sociológicos, um grupo possui uma liderança, objetivos; no campo político (e cultural, como é o caso), uma pauta reivindicatória. E os rolezinhos ainda não têm isso. Nada impede que possam vir a ter. Pelo contrário, o andar dos fatos está mostrando que tudo caminha nessa direção. Tudo dependerá de como isso será conduzido. E não seremos nós, cientistas sociais ou analistas, que diremos qual deverá ser o rumo. São os próprios sujeitos desta história (a juventude excluída e aqueles que os apoiam) que precisam ter claro o fato de que abriram uma espécie de comporta de cidadania (como ocorreu com a questão das passagens de ônibus no ano passado e que resultou numa das maiores movimentações de cidadania testemunhada pelo País) e agora é aproveitar a oportunidade. Como dito antes, inicialmente, até pode ter surgido como uma mera diversão. Mas a repercussão acabou mostrando a esses jovens que eles poderiam dizer mais, muito mais, transformando o rolezinho num fato político e social. E estão dizendo.
Em nome do combate às ações mais violentas, instituem-se práticas totalmente arbitrárias e discriminatórias, acentuando, no meu entendimento, uma incompetência de empresários e do poder público de gerenciar, de forma mais inteligente e democrática, um momento de crise
OS ENCONTROS SE TRANSFORMARAM EM UMA ESPÉCIE DE MOVIMENTO DA PERIFERIA?
É cedo para dizer. Mas, como já dito, que pode ser canalizado como tal, está claro que pode. O próprio secretário de segurança do estado de São Paulo, Fernando Grella, em entrevista coletiva, já reconheceu que se trata de "um movimento no campo da cultura" e não é assunto de segurança pública. Concordo em parte porque, neste sentido, os fatos da cultura estão muito imbricados nos fatos da política: os jovens estão clamando por maior inserção cultural e de lazer. É uma necessidade. O prefeito Fernando Haddad deu entrevistas raciocinando no mesmo sentido e reconhecendo que o recado que estes jovens estão dando fala sobre a deficiência de políticas públicas na área de entretenimento, diversão, lazer e cultura para a periferia. Então, reiterando: pode não ter surgido com essa intenção (e muito provavelmente não surgiu). Mas está caminhando para ela. Mas, insisto, é cedo para afirmar no que tudo isso vai dar.
Ainda que consideremos legal que o patrimônio e a integridade das pessoas sejam preservados, pensemos na questão ética de como implementar esta ação de impedimento de ingresso. Como operacionalizá-la, sem incorrer na grotesca falha da discriminação, com base em critérios arbitrários de "quem pode" e "quem não pode"
EXISTE ALGUMA RELAÇÃO COM AS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO?
Há muitas coisas em comum; e muitas diferenças também. Algumas já ditas. Pode até ser (e isso é um mero exercício hipotético e não futurista) que tudo isso esteja sendo um grande laboratório (totalmente espontâneo e involuntário) para grandes ocorrências, que poderão acontecer para a Copa de 2014. Numa perspectiva mais holística e sistêmica, eu vejo tudo como parte de um grande processo de retomada, reconquista da cidadania por parte do cidadão brasileiro. Nós nos vemos como um povo indolente, que não luta por seus direitos, que não reivindica. E, de fato, não temos no Brasil uma tradição de participação de cidadania consolidada. Vivemos, em nossa história republicana, muito mais períodos ditatoriais e de dominação coronelística do que, propriamente, de exercício da democracia participativa. Em junho de 2013, eu já havia dito isso numa entrevista a um canal de TV: a questão das passagens foi um estopim para escancarar, de um lado, a ineficácia, a inoperância e a incompetência do Estado brasileiro como um todo de atender, com dignidade mínima, aos anseios da população (em que pese a elevadíssima carga tributária que pagamos).
Os nossos traços mais arcaicos. Deu no que deu: uma mobilização popular como não se via há muito tempo! Mas, no meu entendimento, não foi devidamente aproveitada. Agora, o tema dos rolezinhos começa a despertar uma reação da sociedade, que está extrapolando os nichos daqueles que os criaram. Eu vejo, de forma bem ampla e genérica, nós brasileiros como um povo com pouca experiência de participação política e cidadã efetiva. Mas, paradoxalmente, ansiamos muito por ela e invejamos as nações que a exercem de forma plena e construtiva. Talvez estejamos construindo isso. Mas é um caminho longo. Não dá pra dizer que vai ser agora ou daqui a alguns meses. Em todo caso, é um caminho necessário a ser trilhado. Não nos esqueçamos que as nações, que exercem hoje a democracia e a cidadania com mais vigor que a nossa, um dia foram tão arcaicas quanto nós somos. E eu não vejo como questão de tempo (eles teriam mais experiência), mas como questão de visão: é como se enxergam as coisas. Tenho dito que vejo semelhanças e diferenças entre as manifestações de junho e os rolezinhos. Semelhanças: começaram com fatos pontuais, circunscritos a um nicho específico da sociedade; utilizaram-se do poder de mobilização das mídias sociais para atingir o objetivo de aglutinação de pessoas; grande repercussão midiática ajudou no seu crescimento e, até mesmo, na sua configuração como um movimento; suscitaram na população, como um todo, o desejo de participação e mudança da realidade social e política; crítica da sociedade como um todo; as duas tiveram, por parte do poder público, uma reação imediata marcada pela truculência e pela violência, o que ampliou sua repercussão. A principal diferença que vejo entre estes dois eventos é que as manifestações de junho tiveram (ainda que eles não o reconhecessem) a liderança do Movimento Passe Livre (MPL) - e até mesmo a tentativa de cooptação de partidos políticos -, enquanto os rolezinhos não têm um grupo específico (até por ser algo de natureza cultural), que reivindique a sua organização; tudo é feito com o forte poder de mobilização das mídias sociais. E, agora, os rolezinhos estão acontecendo num momento em que muito já se aprendeu a partir daquelas manifestações. No fundo, está acontecendo como na dinâmica dos grandes fatos históricos, que tiveram potencial para provocar mudanças: aquilo que começa como algo pontual pode se transformar em algo estrutural (e estruturante), alterando a realidade social. Mas acredito que esteja cedo para fazer qualquer prognóstico.
OS ORGANIZADORES DEFINEM OS ENCONTROS COMO "GRITO DE LAZER" E NEGAM QUALQUER INTENÇÃO ILEGAL. NO ENTANTO, VIRARAM ALVO DE INVESTIGAÇÕES E ATUAÇÕES POLICIAIS, EM FUNÇÃO DA DENÚNCIA DE ARRASTÕES E ROUBOS NOS SHOPPINGS ONDE SE REÚNEM. COMO AVALIA ESSA QUESTÃO?
Evidentemente que, como aconteceu nas manifestações, quando se reúnem grupos tão heterogêneos e tão numerosos, não se tem controle sobre os objetivos daqueles que estão ali presentes. Oportunistas, gente sem objetivo e com más intenções sempre estarão presentes. Isso faz parte de qualquer movimentação de massa. Aliás, eu diria que um dos motivos para o esvaziamento das manifestações de 2013 foi um certo cansaço que a população sentiu dos constantes atos de vandalismo que se seguiram a quase toda manifestação. Isso, sem dúvida, é um elemento de fragilidade do movimento. Entretanto, como não há uma "organização", uma "liderança" ou um interlocutor constituído, fica, praticamente, impossível resolver esta questão. Nesse sentido, vejo, por parte da imprensa e do poder público, uma espécie de "caça" aos organizadores dos "rolezinhos", no sentido de "construir" (artificialmente mesmo) uma liderança que o movimento não tem. E o fator principal que tem levado a isso é a necessidade de combater a violência, que vem ocorrendo (roubos, assaltos, depredações etc).
O COMÉRCIO NOS SHOPPINGS ESTÁ COM MEDO. ESTE RECEIO É JUSTIFICÁVEL OU SE TRATA, APENAS, DE PRECONCEITO, POIS OS ADOLESCENTES QUE PARTICIPAM SÃO DE BAIRROS E CLASSES SOCIAIS MENOS FAVORECIDOS?
Em minha opinião, um evento como este requereria, por parte dos envolvidos (Estado e empresários), uma capacidade de gerenciamento de crise, com ações mais inteligentes, planejadas. É o que se espera de um lugar que, como diria Max Weber, é um locus privilegiado da racionalidade (empresas e Estado). Evidentemente que, na perspectiva dos empresários, medo é justificável. Os fatos têm evidenciado razões para isso. Entretanto, o que tenho visto é que este medo da violência tem evidenciado uma característica típica da sociedade brasileira, que é o preconceito e a discriminação velados. Em nome do combate a essas ações mais violentas, instituem-se práticas totalmente arbitrárias e discriminatórias, acentuando, no meu entendimento, uma incompetência de empresários e do poder público de gerenciar, de forma mais inteligente e democrática, um momento de crise.
AINDA DENTRO DO TEMA, ENTIDADES LOJISTAS INGRESSARAM NA JUSTIÇA PARA IMPEDIR A REALIZAÇÃO DOS ROLEZINHOS. VOCÊ CONSIDERA O FATO LEGÍTIMO OU SE TRATA DE UMA ATITUDE ARBITRÁRIA, QUE IMPEDE A LIVRE CIRCULAÇÃO E MANIFESTAÇÃO DAS PESSOAS EM LOCAIS PÚBLICOS (EMBORA OS SHOPPINGS SEJAM CONSIDERADOS LOCAIS PRIVADOS)?
Não sou jurista e não quero cometer a leviandade de fazer uma discussão nesse campo. Entretanto, quero chamar a atenção para o fato de que existem duas esferas que não podem ser misturadas. A da Ética e a do Direito. Mesmo na área jurídica, tenho visto depoimentos de advogados bastante dissonantes. E todos sabemos como o Direito é construído com base em interpretações (muitas vezes subjetivas, a despeito da alegada objetividade da área). Mas, ainda que consideremos legal que o patrimônio e a integridade das pessoas sejam preservados, pensemos na questão ética de como implementar esta ação de impedimento de ingresso? Como operacionalizá- la, sem incorrer na grotesca falha da discriminação, com base em critérios arbitrários de "quem pode" e "quem não pode". Em meu entendimento, esta não foi a melhor saída e faltou aquela inteligência de gerenciamento de crise que já mencionei. Foi uma ação que, sem dúvida, acabou ampliando ainda mais a repercussão do movimento, na medida em que foi mais um indicador da discriminação e do preconceito que existem no Brasil.
Falta no Brasil alguma instituição que capitalize toda esta energia positiva. Numa sociedade baseada na democracia representativa, isso seria esperado de partidos políticos. Entretanto, toda a ineficácia e inoperância, sem falar da falta de compromisso ideológico, de nossos partidos provocaram uma reação quase que "alérgica" da sociedade a eles
UM ATO PÚBLICO EM SÃO PAULO PROMETE "DENUNCIAR O CARÁTER RACISTA" DOS SHOPPINGS, UMA VEZ QUE, SEGUNDO UM DOS ORGANIZADORES, A MAIORIA DOS QUE PARTICIPAM É NEGRA. O QUE PENSA DISSO?
A questão racial, no Brasil, é um capítulo à parte e extremamente complexa. Difícil abordá-la num espaço tão curto. Mas entendo que, neste caso específico, não se trata, apenas, de racismo, mas de preconceito de classe também. Os dois componentes são muito fortes e interligados. Para operar esta segregação de "quem entra" e "quem não entra", muito provavelmente importa mais o estilo de vestuário e postura da pessoa do que, propriamente, a cor da pele ou o tipo físico. Apesar disso, vejo isso como mais um momento em que esta característica racista da sociedade brasileira (ainda que recusada por seus atores e, por isso, velada) é evidenciada. Até porque, como dizia Florestan Fernandes, "temos preconceito de ter preconceito no Brasil". Não o assumimos. Ele é oculto. Isso é um fato. Do outro lado, entrando numa linha mais crítica (sem desmerecer o seu importante papel e sua grande contribuição) com relação à atuação dos movimentos sociais, todo grupo que, efetivamente, sofre preconceito e discriminação, quando se organiza em movimentos reativos críticos na sociedade, tende a hipertrofiar os fatos, a partir de sua percepção de excluído. Isso não é prerrogativa do movimento negro: movimentos de gênero (homossexuais, mulheres), operários, lavradores, indígenas etc. Lidei com isso durante boa parte da minha vida profissional. Falar em criminalização me parece um exagero. Entretanto, não é possível perder de vista que se trata de uma discriminação e não apenas racial (embora esteja meio óbvio que a questão racial esteja aí muito presente). Isso me parece muito claro.
ALGUNS ESPECIALISTAS ENTENDEM QUE ESSE FATO PODE REPRESENTAR, NO FUNDO, UM VETO A GRUPOS SOCIAIS ESPECÍFICOS, COMO CRIMINOSOS, QUE APROVEITAM O ANONIMATO DA MULTIDÃO PARA COMETEREM DELITOS. COMO COMBATER ESSE FATOR?
O gerenciamento de crise, com um bom serviço de inteligência, poderia pensar em estratégias para administrar isso. Entretanto, isso não foi feito. Nem na época das manifestações, em que um suposto grupo organizado (os Black Blocs) tinha uma presença mais constante isso aconteceu. A grande dificuldade de lidar com a presença de pessoas mal intencionadas (e até mesmo crime organizado - como aconteceu nas manifestações) é porque elas vêm acontecendo sem a configuração de uma organização específica. Isso é a realidade dos processos participativos convocados por mídias sociais: forma-se uma rede de desconhecidos no campo virtual, que agem como se fizessem parte de um grupo constituído. Esta nova realidade (proporcionada pela virtualidade) carece de análise e compreensão para que se possa pensar em como agir.