"Este é um país em que as prostitutas gozam, os
traficantes cheiram e em que um carro usado vale mais que um carro novo. É ou
não é um país de cabeça para baixo?"
Tom Jobim
A super exposição midiática a que
o Brasil está sendo submetido por protagonizar grandes eventos que o projetam
internacionalmente nos trouxe alguns questionamentos sobre nós mesmos. Estes
vão desde perguntas sobre nossa "capacidade" performática com relação
ao gerenciamento de um mega evento internacional de dimensões continentais frente
aos (imaginariamente) cobiçados cidadãos do "primeiro mundo", até
mesmo a capacidade de concretização daquilo a que nós nos comprometemos em
realizar no campo da infraestrutura.
O cenário da Copa
do Mundo e a série de reflexões e debates que vem ocorrendo (no âmbito acadêmico,
no senso comum, na vida política, na imprensa, enfim, nas mais variadas
esferas) vem comprovando isso. O desenrolar dos acontecimentos que precederam a
concretização do evento também evidenciou uma certa característica cultural
pela qual nós mesmos nos reconhecemos: uma indolência que vai procrastinando
todos os compromissos até que chegue a "última hora", a "linha
da morte" (adoro esta expressão traduzida literalmente do inglês) e aí, damos
de ombro e dizemos: "Ah, vai assim mesmo, do jeito que está!". Muito
já se escreveu sobre isso desde a época em que se confirmou o Brasil como sede
da Copa este ano e das Olimpíadas em 2016. Se é certo também que não é o
primeiro grande evento internacional que o Brasil sedia, é certo que é o
primeiro em dimensões continentais que ocorre num momento de uma pretensa
"maturidade" do processo de modernização do Estado e da sociedade
brasileiras.
Por isso, no
limiar de sua concretização, a novidade talvez esteja, desta vez, no fato de
que vários governos dos países participantes do campeonato, de forma quase
simultânea, elaboraram algumas "cartilhas" com orientações práticas para seus
cidadãos destacando possíveis "perigos" e "dificuldades" que poderiam enfrentar aqui.[1] Tudo
bem que haja o aspecto pragmático do ponto de vista desses governos, cujo
interesse maior é o de se preservar e minimizar desgastes com eventuais
intercorrências com seus cidadãos em solo brasileiro. Afinal, qualquer sinistro
ocorrido gera algum tipo de transtorno para suas representações oficiais o que
lhes pode causar embaraços em seu próprio território. Até por este motivo, é
compreensível que os "defeitos" (e não as qualidades) sejam os
destaques dessas cartilhas. Mas esse não é o único aspecto. Está em jogo
também uma série de estereótipos construídos (por "eles" e por
"nós") sobre o que é o Brasil e quem somos nós, brasileiros.
De todas as
orientações do material em questão, é curioso observar que, de forma
direta ou indireta, estão presentes algumas "chagas" constantes e quase que
eternas dos traços arcaicos da sociedade brasileira e que aí são expostas
de maneira muito explícita. Isso gerou algum burburinho e incômodo, tanto nas
esferas oficiais quanto no próprio senso comum do brasileiro médio, o que foi
capitaneado pela grande imprensa: chamam a atenção para nossa
desorganização (nas várias esferas - pública, estatal, privada), nossa falta de
compromisso, nossa malandragem, nosso espírito de "levar vantagem"
etc. Nesse rol, até os elementos da nossa exuberante natureza são postos como
uma ameaça à integridade física dos visitantes, como que se remetesse ao
universo da anticultura, da selvageria (como indica a chamada do UOL).[2] Afinal,
por que macacos perambulando em parques ou quintais são "selvagens" e
"ameaçadores", evocando a necessidade de uma atenção especial,
enquanto os esquilinhos do hemisfério norte seriam "fofinhos" e
"bucólicos"?
À parte as
críticas que podem ser feitas a certos exageros e detalhismos desnecessários
que contêm alguns desses materiais, no fundo, o seu cerne reflete
características arcaicas muito presentes em nossa sociedade e que são um fato. E
é isso o que parece incomodar. Aí, para nós, fica a velha lição da dialética da
alteridade: se somos vistos de certa maneira por vários "outros",
alguma consistência concreta deve haver nesse olhar estrangeiro. Algo
importante ele fala sobre nós. Caberia a nós, portanto, prestar atenção a
este discurso e encarar uma reflexão sobre a sua real consistência. E, nesse
processo de reflexão, desprezar os devaneios ancorados em estereótipos que não
correspondam à realidade e até mesmo deles fazer troça. Mas é preciso olhar
para eles antes de menosprezá-los de antemão.
O que talvez
haja de mais significativo nesse caso em particular seja o fato de que esse
olhar revela traços dos quais não gostamos. Soma-se a isso o hábito de que nós
brasileiros temos (que eu, particularmente não considero muito saudável, por
ser uma prática quase exclusiva) de falar muito mal de nós mesmos. Reiteramos
no nosso cotidiano o famoso jargão rodrigueano de que "o brasileiro sofre
de um complexo de vira-latas". No entanto, quando se trata de um
"outro" a falar mal de nós, é comum torcermos o nariz e levantarmos a
voz defendendo nossas "virtudes" as quais, diga-se de passagem, não
são concretamente valorizadas no nosso cotidiano e, talvez até por isso, tornem
o nosso discurso sobre elas pouco convincente.
Voltando a esse
olhar estrangeiro que ressalta nossos traços "quasimodais",
é óbvio que ele está alicerçado num conjunto estereotipado sobre quem somos.
Mas toda construção cultural que um outro faz sobre um suposto "eu" é
estereotipada e fortemente etnocêntrica. Inclusive a nossa sobre nós mesmos. E
é bom não nos esquecermos que essa relação "eu"/"outro" é
sempre uma construção. Até porque, essas categorias não têm existência própria.
Um "outro" só é um "outro" porque um "eu" o
coloca nesse lugar de objeto, de coisa. Ele, na verdade, é um "eu",
tem uma subjetividade, como qualquer "eu".
É nesse sentido
que essas observações dos estrangeiros sobre o Brasil deveriam servir para
nos fazer pensar sobre nós mesmos. Afinal, esta é uma das lições básicas
evidenciadas pela Antropologia: o outro é um espelho a partir do qual eu me
vejo a mim mesmo. E seria interessante tomar desta máxima uma ideia menos
trivial do que uma sua simples leitura direta (aquela que me leva a tomar literalmente
o discurso do outro sobre mim). Antes, o que talvez seja mais importante é
prestar atenção sobre como eu o interpreto, como eu vejo o discurso desse
outro sobre mim. Na medida em que este procedimento revela quais os filtros
simbólicos são utilizados para concretizar esta interpretação. Isso, na
verdade, fala muito mais sobre mim do que o próprio texto do outro a meu
respeito. Assim como, todos sabemos, este é também uma construção que fala
muito mais "dele" do que "de mim".
Falando dessa
construção de estereótipo presente nessas orientações dos governos estrangeiros
sobre o Brasil, presenciei diálogos curiosos. Quero mencionar apenas um, muito
significativo. Quando mencionei para várias pessoas que, por exemplo, o Canadá orientou
seu cidadão a ter cuidado com "macacos", ouvi a seguinte fala:
"Ah, mas eles devem ter pensado no pessoal que vai ver a Copa em
Manaus!" Ora!!! Não nos portamos com os manauaras exatamente igual aos
canadenses? Não estaria no horizonte do nosso imaginário a ideia de que Manaus
é uma cidade-floresta, em que símios trafegam por todas as partes e cobras
rastejam por trilhas ao invés de carros em avenidas? Assim, é bom sempre
lembrar que se o habitante urbano do centro sul brasileiro fica muito
incomodado quando um americano pergunta se tem "macaco nas nossas praias",
mas, olhando internamente, o seu movimento em relação a outras regiões do
Brasil (principalmente aos estados do norte ou as regiões rurais) não é muito
diferente dessas construções estereotipadas.
A frase título
que escolhi para este texto é atribuída a Tom Jobim. Gosto muito dela. Marcada
pelo bom humor frequentemente mordaz, característico do compositor, ela indica
que somos complexos como nação, como país. Até aí, nada de mais. Toda sociedade
o é. Entretanto, ao contrário do que afirmam certos chavões do senso comum
muito difundidos nas mídias sociais, Jobim (incorporando - consciente ou
inconscientemente - uma perspectiva presente na obra de Darcy Ribeiro ou de
Glauber Rocha) nos chama a atenção para pensar esta complexidade e estaria aí
uma grande contribuição nossa ao mundo. Somos complexos e isso é bom! Para nos
entender, é preciso parar e pensar.
Aliás, eu
conheci esta frase de Jobim como título de um livro em homenagem aos 20 anos de "Carnavais, Malandros e
Herois", de Roberto DaMatta, um dos nossos grandes intérpretes. O
Brasil é um país que produziu muitos pensadores a respeito de si mesmo. Seja no
campo científico (antropologia, ciência política, economia, sociologia etc.) ou
no campo artístico (especialmente na literatura, mas também na música, artes
plásticas, cinema etc.), encontramos uma constelação de intelectuais do
mais alto gabarito com diferentes abordagens refletindo sobre nossa identidade,
sobre nossas peculiaridades, sobre a nossa contribuição para o mundo. Este
panteão, ao longo do século XX, projetou o país num cenário de excelência do
pensamento moderno que é muito pouco conhecido do brasileiro médio. Isso porque
quase todos são muito pouco lidos fora do mundo acadêmico.
Se quisermos nos
compreender mais para que nos valorizemos mais, assumindo nossas contradições
reconhecendo nossas virtudes (a despeito de nossos defeitos), precisaríamos
lê-los mais. Quem sabe assim, conseguiríamos dialogar melhor com a construção
desses estereótipos e decidir que tipo de sociedade queremos com um pouco mais
de consistência, antes de reproduzirmos e reiteramos, nós mesmos, alguns desses
estereótipos.[3]
Que esse momento da Copa nos dê esse ganho que, no meu entendimento, acrescentaria muito ao Brasil e aos brasileiros. Vamos aprender mais sobre nós mesmos.
[1] Com
a chamada "Atémacaco vira motivo de alerta de embaixadas para turistas na Copa", o
portal UOL fez uma síntese interessante dos pontos abordados por vários
governos de países estrangeiros.
[2]
Estado de Natureza por oposição à Cultura e à Civilização. O espaço aqui não
permite desenvolver uma ideia contrária, a de que esses elementos (sobretudo
"macacos" transitando junto a seres humanos) poderiam remeter a uma
perspectiva mais holística de um resgate da nossa convivência com a Natureza,
rompida sobretudo pela sociedade pós-industrial (como brilhantemente analisa o
historiador britânico Keith Thomas em "O Homem e o Mundo Natural").
Nesse sentido, remeteria a uma dimensão bucólica, distante hoje dos grandes
centros urbanos, da selva de concreto. Só pra citar um exemplo, é curioso notar
como nas propagandas comerciais de venda de residências em condomínios
"afastados", a presença de animais transitando em jardins floridos,
expressando esse resgate da proximidade da natureza, é "vendida" como
qualidade de vida e não o oposto.
[3] Há
alguns meses, a Editora Boitempo publicou uma entevista com o sociólogo e
ensaísta Antônio Candido (ele também, um dos nossos maiores intérpretes como
cultura e como nação) intitulada "AntonioCandido indica 10 livros para conhecer o Brasil". Nesta preciosa
entrevista, o leitor tem um guia muito bom de indicações bibliográficas
fundamentais para se entender o nosso país. É um bom começo.